Texto publicado em:
HEILER, J. G.; OLSEN, A. C. L. ; DALRI, L. . As Decisões que Levaram o STF ao Centro do Tabuleiro: Uma Análise Político Institucional. In: Itamar Luis Gelain. (Org.). Pensamento e Movimento V. 1ed.Joinville: Dialética, 2023, v. V, p. 221-244.
As decisões que levaram o STF ao Centro do Tabuleiro: Uma análise político constitucional1
Ana Carolina Lopes Olsen2
Jeison Giovani Heiler3
Luciene Dal Ri4
RESUMO: O escopo deste trabalho foi o de contextualizar os eventos e a estrutura jurídico política que trouxe o Supremo Tribunal Federal ao centro do tabuleiro do xadrez político brasileiro. De fato, o STF foi o pivô de acontecimentos de maior importância para a nação ao colocar em xeque peças importantes do tabuleiro eleitoral. Assim foi durante o Mensalão, depois, durante a Lava Jato, e pontualmente interferindo no processo eleitoral de 2018 ao colocar fora de jogo o candidato que liderava todas as pesquisas ao decidir pela possibilidade da prisão a partir da condenação em segunda instância do ex-presidente Lula. Entretanto, o que é importante notar, sobretudo, é o contexto em que se deu a hipertrofia do Judiciário. descortinamos primeiro alguns dos eventos históricos que marcaram o papel da Suprema Corte nos últimos anos. Frisando que a partir da Constituinte que levaria a CRFB/1988 houve um esforço em dotar o STF de um poder capaz de conter arroubos autoritários tais como aqueles que se precipitaram a partir do Golpe de 1964. Para isso construiu-se um Estado com um sistema de salvaguardas constitucionais da democracia com um guardião à sua altura. Os eventos que se descortinam daí até os dias atuais guardam reflexos desse contexto.
Palavras-chave: Supremo Tribunal Federal; Guardiania; Democracia; Supremocracia;
INTRODUÇÃO
É fato que as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) têm atraído a atenção do público de uma maneira pouco usual. Particularmente, tem sido comum perceber o grande público comentando as decisões do STF com relativa desenvoltura. Por exemplo, as pessoas acompanharam os votos da prisão em segunda instância (HC 126.292) como acompanham a final e uma partida de futebol, e algumas chegaram a organizar carreatas para comemorar o resultado5. Claro, talvez a comparação com as finais do futebol seja um tanto exagerada, mas o ponto é: Seriam estes sinais de amadurecimento da democracia? Como o STF foi parar na boca do povo? E como foi trazido ao centro do tabuleiro? Estas apenas algumas questões que pretendemos ensaiar neste brevíssimo trabalho.
Em primeiro lugar argumentamos que o STF está no centro do tabuleiro e talvez esteja exercendo um protagonismo inédito. Apesar de que algumas vozes temam uma posição encurralada do STF, defendemos que o risco percebido6 é, na verdade, o mesmo que correm todas as demais instituições: ou seja, as ameaças de perecimento da democracia. Aquilo que tem sido discutido por muitos pensadores como Levitsky e Ziblatt em “Como as democracias morrem”, de Anne Aplebaum em “O crepúsculo das democracias”, Castells em “Ruptura a crise da democracia liberal” ou Marcos Nobre no Brasil ao escrever sobre a “Ponto Final: A guerra de Bolsonaro contra a democracia”.
Entretanto, dentro das regras do jogo democrático, no xadrez político, enquanto for preservado o tabuleiro do jogo e suas regras, as igualitárias condições de disputa, o STF tem exercido o que Oscar Vilhena Vieira tem chamado de “supremocracia” (2008; 2018) e que antes dele Robert Dahl (2012) chamara de guardiania em “A democracia e seus críticos”. Por outro lado, a atuação da corte constitucional pode servir à garantia do próprio jogo democrático, como reconheceu Roberto Gargarella (2019), notadamente em sociedades desiguais em que nem todos tem participação política e voz.
Ao longo dos anos, o STF tem ingressado na arena política – ora influenciando com suas decisões os processos eleitorais, ora ingressando na seara da proteção dos direitos de grupos vulneráveis – o que tem gerado críticas severas.
É disso que tratará este texto. Analisaremos em perspectiva histórica o processo de hipertrofia do STF a partir da análise político jurídica de algumas de suas principais decisões. Para ao fim tratar dos eventuais efeitos desse processo para a robustez da democracia no Brasil.
OS LANCES DECISIVOS QUE LEVARAM O STF AO CENTRO
Antes de tratarmos dos efeitos para a democracia do centralismo ocupado pelo STF no jogo político cabe discutir quais seriam as causas ou sinais dessa hipertrofia do STF. O processo de democratização pós ditadura militar trouxe em seu bojo uma preocupação com o fortalecimento e a independência do Judiciário. Como resposta ao sistema jurídico inconstante e ao Judiciário diminuído em face da edição de atos institucionais, a Constituição assumiu o papel de medida de todo o sistema jurídico, e os constituintes atribuíram ao Supremo Tribunal Federal competência para atuar como seu guardião.
Vieira (2008; 2018) e Santa Brígida & Verbicaro, (2020) analisam o papel do STF a partir do processo de reabertura democrática que culminou na Constituição Federal de 1988. Segundo os autores, pode-se distinguir momentos históricos em que a Suprema Corte foi instada a agir: Impeachment de Collor; Governos Itamar Franco e FHC; Governo Lula; Governo Dilma; e a Fase atual (Pós impeachment de Dilma até meados de 2021). Em cada uma destas fases o STF expressou-se de maneira peculiar, guardadas as circunstâncias de cada tempo e a correlação de forças presente.
No Impeachment de Collor, a atuação do STF resumiu-se a acompanhar/supervisionar o impeachment (Vieira, 2008; 2018; Santa Brígida & Verbicaro, 2020). Ao mesmo tempo, foi um pouco antes deste período que ficaria marcada a sua principal omissão: análise da MP 151 (Plano Collor). A posição do Supremo mudou posteriormente quando declarou a inconstitucionalidade da reedição de medidas provisórias expressamente rejeitadas pelo Congresso Nacional.
Decisões emblemáticas tomadas nos anos 90 acabaram por consolidar sua função de órgão controlador do Executivo e do Legislativo, praticando verdadeira accountability horizontal.7 Essa independência fortaleceu-se com as decisões ligadas à implementação dos programas de bem-estar social previstos na Constituição, muitas vezes em detrimento da racionalidade econômica e da austeridade (SANTISO, 2003, p. 6). Como coloca Barbosa (2013, p.175), havia verdadeiro clamor popular por “mais judiciário”, já que ele seria o responsável pelo reconhecimento dos direitos, e o único capaz de ordenar a Administração Pública a praticar atos voltados a sua implementação, bem como suprir eventuais deficiências legislativas.
Na fase de Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso (Governo PSDB) o Supremo ratificou as medidas econômicas, reformas constitucionais de privatização e a primeira fase da reforma da previdência (EC 20/98). Neste período a reforma do judiciário passou a garantir ao STF a última palavra sobre a constitucionalidade de qualquer ato normativo mesmo que anterior à CRFB/1988 via Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF. (EC 03/93).
Vale ressaltar que a EC 45/04, conhecida como “Reforma do Judiciário” favoreceu o empoderamento do STF. Fruto de intensa articulação entre o então Governo Lula (2002-2010) e os magistrados, a medida garantiu ao STF a possibilidade de instituição das Súmulas Vinculantes e de repercussão geral no recurso extraordinário, instrumentos que centralizavam a posição do Judiciário Brasileiro nas interpretações realizadas pela corte.
Outro elemento a se considerar foi a ampliação e diversificação das vias de acesso (com mais atores legitimados a desencadear o controle de constitucionalidade), e o significativo aumento de processos. Todo esse novo arranjo estrutural fortaleceu a independência do STF (RUSSEL, O’BRIEN, 2001, p. 17).
Anos mais tarde, no julgamento do mensalão (STF - AP 470), teve-se aquele que pode ser considerado o auge da “supremocracia” brasileira. Ao todo foram 69 sessões televisionadas que transcorreram em um ano e meio de julgamento (VIEIRA, 2018, p. 198). Este julgamento também foi um marco temporal porque relativizou o princípio da responsabilidade penal subjetiva, para o qual é necessário individualizar cada conduta a fim de imputar a alguém um fato criminoso. Para isso o tribunal mudou a interpretação de três aspectos: 1 -: a doutrina do domínio do fato; 2 - dispensou a necessidade de comprovação de existência de ato específico como contrapartida de vantagem indevida;3 admitiu imputações sobrepostas derivadas da mesma conduta. (Santa Brígida & Verbicaro, 2020).
Durante os anos do Governo Dilma o STF enfrentou temas sensíveis - muitos deles tratando de direitos fundamentais – e por esta razão entrou em choque direto com a vontade da maioria. Ao julgar o enquadramento jurídico da união homoafetiva (ADPF 132 e ADDI 4277 - 2011); a possibilidade de aborto de fetos anencéfalos (ADPF 54 - 2012); autorização para publicar biografias não autorizadas (ADI 4815). Neste momento o STF teria se inserido em pautas cuja decisão caberia àqueles que tem voto e representam a maioria, passando a exercer um papel contramajoritário. A partir deste período a Suprema Corte, que entrara no radar do grande público desde o mensalão, passou a expor-se ao desgaste decorrente de decisões contramajoritárias8.
Além disso a sensação de intromissão do STF em searas polêmicas acentuou-se dado que neste período o Supremo também decidiu sobre importantes temas no âmbito eleitoral:
considerou que a lei da ficha limpa não viola o princípio da presunção de inocência – bastando para a inelegibilidade a condenação em segunda instância ou por órgão colegiado (ADC 29 e 30 e ADI 4578), o que viria a ser um impeditivo jurídico para a participação do ex-presidente Lula no processo eleitoral de 2018;
tribunal decidiu proibir doações privadas, o que levou o Congresso Nacional a ampliar recursos públicos transferido para partidos 2015 (ADI 4650/2015);
e o Supremo entrou na crise política do governo da ex-presidente Dilma, que culminou no impedimento da posse do ex-presidente Lula como ministro-chefe do governo Dilma por decisão monocrática, em medida cautela do ministro Gilmar Mendes (MS/MC 34070) - em oposição à posterior autorização da posse do Moreira Franco (MS/MC 34609) como ministro do governo de Temer em circunstâncias semelhantes.
De toda a intensa atuação do STF durante o período do governo de Dilma vale destacar seu papel no seio do impeachment autorizado por Eduardo Cunha em 02/12/2015. Assim como no caso Collor, o Supremo foi imediatamente convocado a interferir no processo (ADPF 378). E da mesma maneira como naquele caso, se limitou a garantir que o impeachment transcorresse nos limites do devido processo legal. Particularmente, não enfrentou a questão da presença ou não de justa causa – ou seja – do crime de responsabilidade fiscal pelas então chamadas – na falta de designativo legal específico – “pedaladas fiscais”. Assim, por mais que se aponte a interferência do STF no jogo político, há que se destacar que no momento crucial aquela Corte resguardou-se, adotando o entendimento de que “a competência para determinar a ocorrência do crime de responsabilidade foi conferida exclusivamente ao Senado Federal pela Constituição Federal de 1988” (VIEIRA, 2018, p. 203).
No período pós Impeachment – Governo Temer – o Supremo não arrefeceu sua atuação. Em medida descrita pelos próprios ministros como excepcional (VIEIRA, 2018, p. 204) o STF determinou a suspensão do deputado Eduardo Cunha da presidência da câmara e mandato (AC 4070/2016). Tal medida seria repetida contra os Senadores Aécio Neves e Renan Calheiros, envolvidos em investigações criminais. No entanto, feito inédito, o Senador Renan Calheiros se negou a tomar conhecimento da ordem judicial emitida pelo Ministro Marco Aurélio9.
Outro capítulo à parte que seria marco da supremocracia foi a decisão de prisão em segunda instância com impacto na prisão e inelegibilidade do ex-presidente Lula. O caso repercutiu em primeiro lugar dada a variação ocorrida no entendimento do STF em um curto espaço de tempo trazendo impactos direitos sobre a configuração do tabuleiro do pleito eleitoral de 2018. Decididamente um xeque-mate na principal peça do jogo e que acabou deixando uma coluna aberta para os acontecimentos que iriam se descortinar em seguida.
Vale notar que a CRFB/1988 assegurou no rol de direitos fundamentais que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Quando chamado a interpretar o dispositivo em 2009, o STF assentou que era inconstitucional a execução antecipada da pena. A época, por 6 votos a 5, o plenário concedeu o HC 84.078 para permitir a um condenado pelo TJ/MG que recorresse em liberdade. Já em 2016 - também em HC (126.292) - e com o placar (7x4) - mas com composição diversa, o plenário alterou a jurisprudência afirmando ser possível a prisão após 2ª instância. Na ocasião, a guinada jurisprudencial foi capitaneada pelo falecido ministro Teori Zavascki – o que levaria à prisão do ex-presidente Lula. Poucos meses depois (07/11/2019) pelo placar de 6 a 5, os ministros decidiram que não é possível a execução da pena depois de decisão condenatória confirmada em 2ª instância, retomando assim aquela jurisprudência que havia sido formada em 2009.
Importante destacar com Santa Brígida & Verbicaro (2020) que a agenda econômica do Governo Temer colocou em prática uma política econômica contrária ao votado pela maioria nas urnas - com cortes nos gastos públicos e enfraquecimento de garantias trabalhistas. Vieira (2008) pondera que é difícil julgar se o fenômeno da supremocracia é positivo ou negativo. Entretanto é fato que muitas destas garantias traduzem o próprio núcleo da ideia de dignidade da pessoa humana e a imutabilidade dos direitos humanos fundamentais. Portanto, seria de se esperar que, como guardião da Constituição, a atuação do STF vise a manutenção e a defesa de tais direitos. Ou seja, um STF mais e mais atuante na medida em que as garantias constitucionais fossem colocadas em xeque. Isso seria sinal de vitalidade e não de fraqueza democrática. Contudo, perdura a aporia entre o principio da maioria e o fato de que a Suprema Corte não a representa e, daí que, atravessa crise de legitimidade, notadamente perante a opinião pública10.
É neste sentido contramajoritário (BICKEL, 1986), que o STF também tem atraído detratores que ancoram posições conservadoras nos últimos processos eleitorais majoritários. No julgamento conjunto do Mandado de Injunção 4733 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26, o STF reconheceu, por força do princípio da isonomia e da proibição de discriminação presentes no texto constitucional, a equiparação da homofobia e da transfobia ao crime de racismo previsto na Lei 7716/89. Diante do silêncio eloquente do Congresso Nacional para a criação de lei específica, estendeu ao grupo LGBTQl+ a proteção do Direito. Se negros e pardos contam com a proteção constitucional e legal em face do racismo estrutural presente na realidade brasileira, assim também deveria ser, entendeu o STF, com aqueles que sofrem diuturnamente a prática de agressões violentas em razão de seu gênero e orientação sexual.
Seguindo essa linha, o STF foi provocado a se pronunciar sobre a proteção dos povos indígenas em razão do contágio pela COVID-19, bem como pela invasão de suas terras por grupos garimpeiros. Na ADPF 739, o STF vem conduzindo um processo estrutural destinado a coordenar os esforços da Administração Pública com as necessidades daqueles povos, a fim de resolver a grave situação de violação de direitos humanos a que estão submetidos. Em que pese a experiência esteja se revelando de baixa produtividade, já que o Governo não se mostrou disposto a contribuir, no momento da definição dos grupos prioritários para a vacinação, a ordem judicial emanada neste processo foi observada.
Contudo, embates particularmente enfáticos tem sido assumidos pelo STF nos anos do Governo Bolsonaro (2018-...). Esse enfrentamento declarado tem se manifestado com maior intensidade desde que o tribunal passou a adotar decisões dirigidas à contenção das estratégias de erosão democrática e constitucional praticadas pelo governo. Dentre elas, Meyer (2020) destaca o Inquérito das Fake News (Inquérito 4781) destinado precisamente a investigar a produção de notícias falsas e discurso de ódio contra o próprio STF e o Legislativo.
Ainda são dignas de nota (i) a liminar que impediu a nomeação para a Chefia da Polícia Civil de pessoa próxima ao presidente com o declarado intuito de interferir no órgão a fim de proteger seus filhos de investigações (Inquérito 4831); (ii) o julgamento da ADPF 672 a fim de efetivar o princípio constitucional do federalismo cooperativo no combate à pandemia de COVID-19, reconhecendo a validade de medidas adotadas pelos estados e municípios diante da inércia do governo federal; (iii) julgamento da ADPF 690 garantindo a publicidade das informações referentes à pandemia, negando validade a ato governamental que pretendia restringi-las; (iv) liminar proferida na ADPF 669 para interromper a veiculação de campanha publicitária do governo incentivando o povo a desobedecer normas de isolamento social e retornar ao trabalho durante a pandemia; (v) interpretação do artigo 142 da constituição federal para negar a existência de um “poder moderador” atribuído às forças armadas, impedindo-as de interferir nos demais poderes (MI 7311) (MEYER, 2020)..
Para cada investida anti-democrática do governo, o STF foi provocado pelos opositores políticos e respondeu prontamente.
Ademais, em decisão que impactou diretamente a arena política brasileira o STF invalidou todas as condenações sofridas pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em decisão confirmada pelo Plenário. Depois de muita discussão sobre o tema da prisão em segunda instância, um de seus processos-chave recebeu um desfecho inédito: o reconhecimento da suspeição do então juiz Sérgio Moro e a anulação dos processos. Ainda que a posição adotada naquele momento (2021) tenha seguido critérios jurídicos, como apontou o relator Min. Fachin em entrevista à imprensa (MARQUES, 2022), é inegável que ela modifica o quadro político-eleitoral do país, possibilitando a candidatura do ex-presidente para o pleito de 2022.
As decisões adotadas pelo tribunal, portanto, certamente interferem nos planos políticos do governo e seus opositores, gerando uma disputa institucional que já havia sido chamada por Vieira (2018) como “Batalha dos Poderes”.
CONFIGURAÇÃO DO TABULEIRO
Utilizando a metáfora do jogo do xadrez, até agora comentamos alguns dos lances que levaram o STF a uma posição privilegiada. Ao centro do tabuleiro do jogo político. Mas não é só isso. Há também elementos relacionados à própria configuração do tabuleiro e dos players que ajuda a entender como o STF chegou a tal posição. Basicamente podemos identificar: 1) uma hipertrofia do mercado (VIEIRA, 2008; BOAVENTURA SANTOS;1999) que confia mais no judiciário do que no parlamento ou (executivo) e seus arroubos populistas. 2) retração do sistema representativo e crise democracia em favor dos guardiões – guardiania – o que é paradoxo: porque quanto mais poder for legado aos guardiões que constituem uma minoria, haverá menos democracia; 3) efeito de constituições rígidas que desconfiam do legislativo e legam ao STF a guarda da democracia.
Deve-se sublinhar que a hiper constitucionalização da vida contemporânea, no entanto, é consequência da desconfiança na democracia e não a sua causa. Outro ponto é que as constituições, em geral, buscam demarcar as diferenças entre o regime deposto e aquele por elas arquitetado. Ou seja, o propósito do legislador constituinte foi o de varrer os traumas históricos causados por regimes antidemocráticos. Desta forma, no afã de blindar os arroubos autoritários, e com uma certa desconfiança do legislador futuro, tratou-se de relacionar temas cuja alteração, no futuro, demandaria quórum privilegiado para alterar, ou seja, via Emenda Constitucional. Assim, o legislador constituinte premido pelas circunstâncias históricas do passado buscou imunizar o novo sistema contra as vicissitudes do regime precedente. Esta lógica também esteve presente nas transições democráticas portuguesa, de 1976, sul-africana, de 1996, argentina, de 1994, peruana, de 1993, ou mesmo indiana, de1950, elaborada no contexto do processo de descolonização.
Até mesmo no atual processo constituinte chileno, como reação tardia, dentro das condições históricas do Chile (GONZALEZ, 2020), à ditadura de Pinochet. Vale lembrar que a Constituição Chilena anterior era aquela promulgada unilateralmente por Pinochet em 1980 com algumas reformas (principalmente as havidas em 1989 e 2005).
Esses processos podem ser identificados pelo movimento do constitucionalismo transformador (KLARE, 1996), em que a Constituição assume um compromisso de transformar as estruturas sociais que geraram exclusão política e social durante os anos de governos autoritários, a fim de resgatar a dignidade e a cidadania. Para tanto, como ficou característico em todas essas constituições, a independência da Corte Constitucional passou a ser um elemento chave para a realização de direitos humanos. Precisamente em virtude dessa função assumida pelas cortes, para além de outros elementos da conjuntura política, seu empoderamento passou influenciar ou até mesmo a pautar as discussões políticas (“mega-política”) em um fenômeno identificado por Hirschl (2008) como “juristocracia”.
Mas como se materializou a supremocracia a partir da CRFB/1988? Para compreendê-lo uma dupla mirada é necessária. Primeiro para o próprio processo constituinte brasileiro como mencionamos acima e em segundo lugar, é preciso compreender como e porque o legislador ao longo dos anos estendeu os poderes do STF.
Por escolha do legislador constituinte a CRFB/1988 atribui funções de tribunal constitucional, órgão de cúpula do poder judiciário e foro especializado à Suprema Corte brasileira. Tudo isso justamente no contexto de uma constituição normativamente ambiciosa.
Mas ele teve seu papel político ainda mais reforçado pelas Emendas Constitucionais 03/93 e 45/04, bem como pelas Leis nº 9.868/99 e nº 9.882/99. O STF, por decisão do poder legislativo, é importante que se sublinhe, tornou-se assim uma instituição singular em termos comparativos (VIEIRA, 2008). O papel de protagonismo por ele exercido não tem par seja na sua própria história, seja na história de cortes existentes em outras democracias. Se desde sua criação em 1891 o Supremo sempre teve dificuldade em impor suas decisões aos demais órgãos judicantes, esse quadro também viria a mudar em 2005 com a introdução da súmula vinculante e a consequente possibilidade de unificação da jurisprudência dos tribunais inferiores. Todo poder ao STF.
A partir daí - em adição ao histórico de decisões nevrálgicas ocorridas que relatamos acima -, pode-se falar, de acordo com Vieira (2008, p. 445) em supremocracia em dois sentidos: a) como um órgão supremo capaz de impor decisões judiciário abaixo; e b) com a expansão da autoridade do Supremo em detrimento demais poderes.
Os dados ilustram bem os efeitos dessa configuração na disparidade temporal no número de processos recebidos pelo STF. Em primeiro lugar, note-se o lento incremento nos números de 1940 até 1990. Posteriormente, com o advento da CRFB/1988, há um incremento exponencial no número de processos. E com a entrada em vigor da EC 45/2004, nitidamente, o número de processos novos cai drasticamente. Porém, o número de processos recebidos entra em uma curva ascendente até 2017, voltando a cair nos últimos anos.
Fonte: Autores com base em dados de Vieira (2008) – 1940 até 2007 e relatório estatístico do STF.11
Qual a origem destes processos? E como ocorreu este salto quantitativo no número de processos? Tal se explica exatamente pelo acúmulo de competências relegadas ao STF, tal como expresso no art. 102 da CRFB/88: i) Tribunal Constitucional, ii) Foro Judicial especializado e iii) Tribunal de recursos de última instância. 12
Como tribunal constitucional ao Supremo cabe a análise, quando provocado, da constitucionalidade dos atos legislativos, não somente da União, mas também dos Estados13. Destaque-se ainda a possibilidade de que mesmo Emendas Constitucionais possam ser objeto de controle por parte do STF sempre que atentem contra cláusulas pétreas (art. 60, § 4º CRFB/88). O Legislador ainda legou ao STF o controle de constitucionalidade por omissão legislativa (Mandado Injunção e Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão) e conferiu um amplo rol legitimados (Art. 103, CRFB/8814) onde antes apenas havia o Procurador-Geral da República. Como este rol inclui Partidos e Governadores, muitas vezes tais atores utilizam o STF como um instrumento de veto político.
No âmbito do controle de constitucionalidade, especialmente nos últimos anos, o STF tem sido o palco de disputas políticas tendo em vista que os opositores do governo provocam o tribunal para invalidar normas e medidas adotadas pelo governo, ou manobras no Congresso para blindar suas práticas. Um dos exemplos foi a provocação do STF para que fosse “desobstruída” a instauração da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no Senado para investigar as condutas governamentais (ou sua omissão) durante a Pandemia de COVID-19. Em decisão liminar inédita, determinou ao Presidente do Senado o processamento da CPI que já tinha preenchido todos os requisitos constitucionais e estava sendo travada arbitrariamente (MS 37760, julgado em 14 de abril de 2021).
Atuando como foro judicial especializado o STF “é compelido a julgar originariamente processos de extradição, homologação de sentenças estrangeira, um enorme número de habeas corpus, mandados de segurança e outras ações cíveis em face do status do réu” (VIERA, 2008, p. 449). Esta particularidade traz não somente um grande volume adicional de processos como causas de primeira instância que demandam um grau de análise deveras minudente e aprofundado. Por exemplo, no ápice do mensalão em 2008 mais de 250 parlamentares aguardavam julgamento do Supremo.
Finalmente, o STF é ainda um tribunal de recursos de última instância, o que se explica pela coexistência de um sistema difuso (RE, AI, ARE e ações originárias) e concentrado (ADI, ADC, ADPF, ADO) de controle de constitucionalidade no Brasil. Então, além da competência para julgar em abstrato a constitucionalidade dos atos normativos, concretamente – em um país com uma capilaridade continental – há a possibilidade de provocação do STF nas vias recursais cabíveis via controle difuso ou incidental.
O efeito é óbvio: centenas de milhares de processos chegam aos balcões do STF a cada ano. Para se ter uma ideia deste efeito basta dizer que no ano de 2021, por exemplo o STF, recebeu um total de 76.806 novos processos. Destes, uma minoria – apenas 572 – referiam-se ao controle concentrado de constitucionalidade (405 ADI, 154 ADPF, 9 ADO e 4 ADC). Recursos Criminais somaram 14750 e demais ações originárias 7.957 novos processos. A via recursal respondeu pela maioria dos processos, um total de 53.527 processos (42279 ARE, 11.136 RE e 126 AI15). Vieira (2008) contabilizou que de 1988 até 2008 foram mais de um milhão de recursos extraordinários e agravos de instrumento apreciados por onze ministros, o que significou 95,10% dos casos distribuídos e 94,13% dos casos julgados pelo tribunal no período.
A QUESTÃO DA GUARDIANIA
Os números do STF são notáveis, mas, segundo Marcos Paulo Veríssimo (2008) esse dado não significa que a corte efetivamente aprecie tantos casos. Ele desenvolveu um estudo que demonstrou que a somatória das decisões tomadas pelas duas turmas, mais as decisões proferidas em plenário pouco ultrapassam a 10% do total de casos julgados pelo supremo, sendo que os casos julgados pelo plenário do tribunal, em 2006, consistem em apenas 0,5% do total de casos julgados, ou seja: 565 casos.
Destaca-se assim que STF vem utilizando um alto grau de discricionariedade para decidir, por exemplo, o que vai para os distintos colegiados e o que pode ser decidido de maneira monocrática. Sabe-se que uma das manifestações mais importantes do poder incide sobre o controle da agenda daquilo que é pautado – seja no campo das discussões na esfera pública ou no campo, que é o caso em análise, do Judiciário. Desta feita, este poder tem um enorme significado; e este poder se encontra nas mãos de cada um dos ministros, decidindo monocraticamente. Vieira (2008) conclui não somente pela existência de uma supremocracia, mas de um regime que concentra poderes nos ministros do STF de maneira tal, que torna discutível os benefícios da intervenção do judiciário para a democracia. Tal a razão do mal estar tantas vezes experimentado com decisões nevrálgicas tomadas pela Suprema Corte.
A preocupação do autor não é isolada. Robert Dahl (2012) em “Democracia e seus críticos” chamara de Guardiania aquele regime cujas decisões se concentram nas mãos de poucos indivíduos, ademais, justificando-se tal domínio em características virtuosas dos dominantes. Este seria o caso do domínio exercido pela Suprema Corte em momentos de desequilíbrio entre as três esferas clássicas de poder (MONTESQUIEU). Dahl aduz que sob inspiração da sofocracia, isto é, o governo dos mais sábios, imaginada por Platão em a República, alguns dos críticos à democracia propõem modelos baseados na ideia de que o governo do Estado deveria ser legado à indivíduos mais preparados a quem caberia a verdadeira “guarda” da sociedade.
Até que pondo um modelo desta natureza seria possível, viável ou mesmo desejável não é objeto deste breve ensaio. Contudo, há que se refletir com Dahl sobre alguns dos problemas iminentes. Como garantir que tais indivíduos, uma vez escolhidos, garantam a guarda da sociedade e que venham a se guiar por ideais virtuosos como o interesse público é apenas o mais óbvio deles.
Além disso, se o caso for mesmo o de uma Guardiania, neste caso talvez a sociedade devesse debater o processo de escolha de tais ministros. Comparativamente vejamos alguns casos. Serrano (2015) lembra que nos EUA é o presidente que indica e o senado aprova ou não. Não há qualquer requisito formal para o indicado. Seja com relação à idade, formação ou requisito formal16. Também inexistem limites para a permanência no cargo. A sociedade, por sua vez, pode e exerce lobbies intervindo efetivamente nesse processo. A comunidade jurídica, grupos de interesse, a ABA American Bar Association – a correspondente à OAB brasileira e os próprios magistrados da Suprema Corte pressionam. Baum (1987) apresenta dois casos em que ficou nítida a maneira como essa pressão se efetivou:
O presidente Nixon que governou de 1969 a 1974 indicou dois candidatos considerados qualificados pela ABA em 1969 e ambos foram rejeitados pelo Senado - Clement Haynsworth Jr., em 21/11/1969, por 55x45 votos, e George Harrold Carswell, em 08/04/1970, por 51x45 votos. De acordo com Serrano (2015, p. 63) este último, Carswell, recebeu severas críticas feitas por conceituados advogados, um deles Louis Pollack, que considerou na ocasião que Carswell “apresenta credenciais mais escassas do que qualquer nomeado para a suprema corte apresentou neste século” (SERRANO, 2015, p. 67). O caso ilustra que alguns grupos, como aqueles de defesa dos interesses de minorias, fazem lobby aberto, assim como organizações que se posicionam a favor ou contra determinados temas de interesse da sociedade, tais como o aborto, uniões homoafetivas, compra e posse de armas, etc. Ou seja, o processo de escolha é eminentemente permeável aos diferentes interesses privados, comerciais, econômicos, trabalhistas, os quais podem exercer pressão na forma de lobbies ou de maneira mais indireta direcionados aos atores do processo ou aos partidos políticos cuja representação se dá no Senado.
Já o presidente Hoover que governou os EUA de 1929 a 1933 indicara o candidato John Parker, em razão de suas posições conservadoras em matéria trabalhista e em questões raciais. De acordo com Serrano (2015) Parker recebeu a oposição de organizações civis de defesa dos trabalhadores e dos negros, sendo razoável supor que influenciaram na rejeição, por dois votos, que recebeu, do mesmo modo, por razões similares, as mesmas organizações se posicionaram contra aquelas duas indicações feitas pelo presidente Nixon, que foram rejeitadas pelo congresso
De acordo com a estudos comparados efetuados por Serrano para sua Tese de Doutorado (2015) a indicação pelo presidente condicionada à ratificação do Senado também ocorre na Argentina que possui desde 2006 cinco ministros – já foram nove – os candidatos são submetidos a exposição pública pelo prazo de três meses.
Na Colômbia, a Corte Constitucional é formada por nove membros nomeados pelo senado dentre lista tríplice para um mandato oito anos. No país são requisitos para a candidatura: ser advogado, não ter sido condenado por sentença judicial a pena privativa de liberdade, salvo em crimes culposos, ter exercido cargo, por pelo menos dez anos, no judiciário, ministério público, advocacia ou cátedra de ensino jurídico. Assim, a lista conta com ampla participação das Universidades, além de outras instituições de defesa dos direitos dos cidadãos, e não passa pela Presidência da República (COLÔMBIA, 1991, artigos 172, 232).
A Bolívia, segundo a Constituição de 2009, possui um Tribunal Constitucional Plurinacional formado por sete magistrados eleitos diretamente pelo povo, segundo “criterios de plurinacionalidad, con representación del sistema ordinario y del sistema indígena originario campesino” (BOLIVIA, 2009, artigo 197, 198 e 199). São requisitos para a investidura: especialização ou experiência comprovada de pelo menos oito anos nas disciplinas de direito constitucional, administrativo ou direitos humanos. Há cota de três vagas para mulheres e de duas vagas para indígenas ou camponeses. As duas vagas restantes são preenchidas livremente. O mandato é limitado a seis anos sendo vedada a reeleição.
No México, a Suprema Corte de Justiça da Nação tinha até 1994 vinte e seis ministros. Com a reforma constitucional de 2019 passou a uma composição de apenas onze com mandato de quinze anos, proibida a reeleição (MÉXICO, 1917, artigo 94). Quanto à investidura, o presidente da república encaminha lista ao senado, que, pelo voto de 2/3 dos membros presentes à sessão, escolherá aquele que será nomeado ministro, no prazo improrrogável de trinta dias. Passado o prazo, o presidente nomeará qualquer um dos nomes da lista. Caso o senado rejeite todos os nomes de uma lista, o presidente enviará uma segunda lista. A título de garantia da independência jurisdicional, interessante observar que o aspirante a Ministro não pode ter sido Secretário de Estado, Procurador Geral da República, senador, deputado federal, nem titular do Poder Executivo de alguma entidade federativa, durante o ano anterior ao dia de sua nomeação (artigo 95, VI).
Como pode-se observar neste breve extrato comparativo a partir dos estudos de Serrano (2015) e das constituições apontadas, os critérios de escolha para os juízes que compõe a Corte Constitucional são mais abertos justamente naqueles países da América Latina que são costumeiramente alvo de críticas dado as suas supostas limitações democráticas. Digno de nota também é a constatação de que dentre os projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional17 vários deles propõe critérios semelhantes, adotando limitação do mandato dos ministros e processos de escolha mais permeáveis.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O escopo deste modesto trabalho foi o de contextualizar os eventos e a estrutura jurídico política que trouxe o Supremo Tribunal Federal ao centro do tabuleiro do xadrez político brasileiro. De fato, o STF foi o pivô de acontecimentos de maior importância para a nação ao colocar em xeque peças importantes do tabuleiro eleitoral. Assim foi durante o Mensalão, depois, durante a Lava Jato, e pontualmente interferindo no processo eleitoral de 2018 ao colocar fora de jogo o candidato que liderava todas as pesquisas ao decidir pela possibilidade da prisão a partir da condenação em segunda instância do ex-presidente Lula18.
Entretanto, o que é importante notar, sobretudo, é o contexto em que se deu a hipertrofia do Judiciário. Há vários elementos que não foram tratados aqui, tais como o crescente descrédito do parlamento e do político profissional notadamente em casos de inércia na efetivação de direitos fundamentais e também em escândalos de corrupção. Um descrédito que, para repetir um jargão comum no meio político, criminaliza a atividade política, tornando-a abjeta, desprezível. Atraindo para a arena das decisões estatais ora o judiciário, ora o corpo técnico burocrático, ora um decisionismo refém dos reclamos da imprensa.
Portanto, a centralidade do judiciário, e do STF, é também, produto de um tipo de racionalidade que habita o imaginário coletivo. É resultado das representações sociais ambivalentes, confusas, desorientadas que permeiam a sociedade como um todo.
Isso reveste de importância o trabalho aqui desenvolvido. Por tentar trazer alguma luz para este estado de coisas. Ao tentar fazê-lo descortinamos primeiro alguns dos eventos históricos que marcaram o papel da Suprema Corte nos últimos anos. Frisando que a partir da Constituinte que levaria a CRFB/1988 houve um esforço em dotar o STF de um poder capaz de conter arroubos autoritários, tais como aqueles que se precipitaram a partir do Golpe de 1964. Para isso construiu-se um welfare state, com um sistema de salvaguardas constitucionais e um guardião à sua altura. Os eventos que se descortinam daí até os dias atuais guardam reflexos desse contexto.
Daí que se pode compreender o mal-estar causado à democracia quando o afã protetoral do STF se insurge em face da vontade majoritária. Como ocorreu nas decisões envolvendo o tema do aborto, união homoafetiva, liberdade de expressão e tantas outras em que foi chamado a garantir a irrevogabilidade de garantias fundamentais da pessoa humana. Não seria este o espirito da vontade geral em Rousseau?
Necessário dizer que esse mal-estar está também ligado aos grupos dominantes que discordam das pautas progressistas e da inclusao social viabilizada pelo STF. A legitimidade democrática da corte constitucional pode ser, também, pensada a partir dos sujeitos que levam para esta esfera suas demandas pleiteando a proteção dos direitos. As decisões ali mencionadas tocam, muitas das vezes, a grupos vulneráveis, cuja ultimo escudo de defesa é o judiciário.
A despeito deste mal-estar, cabe lembrar que a escolha dos ministros do STF no Brasil, recai em última análise sobre representantes eleitos diretamente pelo povo. E da mesma forma que em outros países o processo de escolha reflete o momento político do país e as inflexões de força exercidas direta ou indiretamente pela sociedade19. Basta lembrar o período de tempo que o presidente Bolsonaro precisou para nomear seu último indicado André Mendonça – o ministro “terrivelmente evangélico” – como o definiu o próprio presidente em uma de suas manifestações públicas.
Ao final é preciso ver que o xadrez deve continuar a ser jogado nas quadras do tabuleiro. Por mais que possa gerar estranhamentos e desconforto quando peças cruciais são capturadas, de um lado ou de outro, é preciso lembrar que, ao fim e ao cabo, na democracia, assim como no xadrez, as peças sempre voltam aos seus lugares e uma nova rodada sempre será possível. Fora das regras do jogo só nos resta a barbárie, e a força bruta como asseverou Hannah Arendt. Optemos pelo diálogo, optemos pela democracia e que joguemos o seu jogo.
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_______; A Batalha dos Poderes: da Transição Democrática ao mal-estar constitucional. 1.ed. São Paulo. Companhia das Letras. 2018.
1 Este texto traduz uma adaptação de palestra proferida pelos autores no âmbito do Programa Pensamento e Movimento da Católica de SC em março de 2021 e é resultado das pesquisas empreendidas no âmbito do Grupo de Pesquisa “Direito, Estado e Globalização. http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/468717
2 Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Visiting Researcher no Max Planck Institute for International Public Law and Comparative Law. Professora da Escola de Direito Católica SC.
3 Pós Doutorando em Ciência Política – USP. Doutor em Ciência Política – UNICAMP. Mestre Sociologia Política – UFSC. Graduado Direito Católica de SC. Professor na Escola de Direito Católica SC. Membro do grupo de pesquisa ‘Estado, constitucionalismo e produção do direito’ ORCID: 0000-0002-2781-9724. Endereço eletrônico: jeisonheiler@gmail.com
4 Doutora em Direito pela Università degli Studi di Roma – La Sapienza. Professora na Escola de Ciências Jurídicas e Sociais e no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí. Membro do grupo de pesquisa ‘Estado, constitucionalismo e produção do direito’ ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5245-4467. Endereço eletrônico: luciene.dalri@univali.br.
5 https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/04/manifestacao-contra-habeas-corpus-de-lula-reune-centenas-em-copacabana.shtml. Acesso em 17/03/2022.
6 Este trabalho foi concebido no auge dos ataques e atentados contra o STF em 2020: Veja-se por exemplo: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/06/14/grupo-de-apoiadores-de-bolsonaro-lanca-fogos-de-artificio-contra-o-predio-do-stf.ghtml e https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2020/06/15/interna_politica,863743/fogos-contra-o-stf-repercussao-de-ataques-mobiliza-ministros-e-autori.shtml
7 Accountability significa “a habilidade de garantir que agentes públicos responsam pelo seu comportamento – forçados a justificar e informar os cidadãos sobre suas decisões e eventualmente serem sancionados por elas”. Na accountability horizontal, o controle se dá a partir de agências intra-estatais que realizam práticas de freios e contrapesos; na vertical, esse controle é feito primordialmente pelo eleitorado que realiza um controle externo, a partir do qual eleitores premiam ou punem os eleitos com o exercício do sufrágio (PERUZZOTTI; SMULOVITZ, 2006, p. 6-9).
8 Em grande parte, esses temas chegaram ao STF justamente porque estavam estruturalmente travados nas vias políticas e representavam possivel violação a direitos fundamentais.
9 “O imbróglio terminaria com um constrangido voto da ministra Carmem Lúcia reconhecendo que o Supremo não poderia determinar o afastamento de membro do parlamento sem consultar previamente a respectiva casa (ADI 5526).” (VIEIRA, 2018, p. 205)
10 https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2021/09/24/datafolha-divulga-pesquisa-com-avaliacao-do-stf.ghtml
11 Disponível em: https://transparencia.stf.jus.br/single/?appid=b282ea92-29ef-4eeb-9676-2b9615ddfabd&sheet=ef87c134-e282-47ac-8f8f-813754f74e76. Acesso em 08/03/2022.
12 Outro fator que merece atenção foi o incremento do acesso ao Judiciário. Com a ampliação das competências de controle de constitucionalidade e o avanço do processo democrático, pautas de grupos vulneráveis passaram a chegar ao STF. Especificamente neste tópico, o tribunal tem se tornado o verdadeiro “palanque” de grupos excluídos do processo político.
13 Qualquer lei ou ato normativo advindo do Poder Público pode ser objeto de controle de constitucionalidade. O órgão judicial pode deixar de aplicar, por considerá-lo inconstitucional, ato formalmente legislativo ou ato normativo emanado dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário ou editado nas esferas federal, estadual e municipal. Assim, por exemplo, emenda constitucional, lei ordinária, lei complementar, medida provisória e mesmo regulamento, resolução, portaria e normas dos regimentos internos dos tribunais (SARLET, 2021, p. 451).
14 São atualmente legitimados a propor ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade: I - o Presidente da República; II - a Mesa do Senado Federal; III - a Mesa da Câmara dos Deputados; IV - a Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal;
V - o Governador de Estado ou do Distrito Federal; VI - o Procurador-Geral da República; VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII - partido político com representação no Congresso Nacional; IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional. No caso do Mandado de Injunção, a jurisprudência do STF admitiu a sua propositura por associações civis, em representação dos direitos de seus associados, em analogia ao mandado de segurança coletivo (MI 4733).
15 Tabulação dos autores a partir de consulta disponível em no sitio do STF em: https://transparencia.stf.jus.br/single/?appid=b282ea92-29ef-4eeb-9676-2b9615ddfabd&sheet=ef87c134-e282-47ac-8f8f-813754f74e76
16 Nesse sentido difere da CRFB/88 que dispõe em seu Art. 101. O Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze Ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada. No Brasil a escolha é feita pelo presidente e também deve ser referendada por maioria, neste caso, absoluta, do Senado.
17 Acompanhe-se por exemplo as seguintes proposições: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2233866
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2172693
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=427734
https://www.conjur.com.br/2020-fev-10/pec-mudar-processo-escolha-ministros-stf-problematica
18 Tal condenação é objeto de muitas discussões acadêmicas até hoje, e aventa-se inclusive a possibilidade de responsabilização do Estado Brasileiro ante a possível violação dos direitos políticos do ex-presidente. Veja-se: CASTRO. Wellington Claudio Pinho. A responsabilidade do estado brasileiro por violação aos direitos políticos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. (Dissertação de Mestrado), Universidade Portucalense, Portugal. Disponível no Repositório UPT, http://hdl.handle.net/11328/3518.
19Veja-se por exemplo: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2021/07/19/entidades-protestam-senado-andre-mendonca-indicacao-stf.htm