quarta-feira, 30 de abril de 2014

Da série #aartedoengodo: Como foi feita a capa da revista Época

O neojornalismo atual surgiu na revista Veja e foi seguido pela Folha a partir de meados dos anos 80. No meu livro “O jornalismo dos anos 90” analiso em detalhes esse estilo.
Trata-se de um produto típico dos grupos de mídia, onde se misturam alguns recursos jornalísticos, recursos de dramaturgia e de marketing. É o chamado show da notícia, com muito mais show do que notícia.
Consiste em levantar uma ou duas informações verdadeiras – mesmo que irrelevantes – e montar uma roteirização copiada da dramaturgia, misturando fatos inexistentes, meras deduções ou ficção pura, tudo devidamente embrulhando em um estilo subliterário típico dos tabloides. Depois, confere-se o tratamento publicitário adequado nas manchetes chamativas e no lead – em geral prometendo muito mais do que a reportagem entrega.
Esse estilo torto atingiu o auge nos escândalos produzidos entre 2006 e a campanha de 2010, como a invasão das Farcs no Brasil, os dólares transportados em garrafas de rum, o consultor respeitado que acabara de sair da cadeia, os 200 mil dólares levados em envelopes até uma sala do Planalto, o consultor que almoçou com Erenice e foi impedido até de levar caneta, para não gravar a conversa e aí por diante.

O caso Época

A capa da revista Época desta semana, no entanto, merece uma análise de caso à parte.
Em publicações respeitadas, separa-se a pauta do conteúdo publicado. A redação recebe dicas, denúncias, indícios. Aí prepara a pauta, que é o roteiro de investigações. O repórter sai a campo e procura fatos e testemunhas que comprovem ou desmintam as informações recebidas. E só publica o que é comprovável.
O jornalismo brasileiro contemporâneo desenvolveu um estilo preguiçoso. O repórter recebe as denúncias. Em vez de sair a campo e apurar, limita-se a publicar a pauta com o desmentido do acusado, sem apresentar nenhuma conclusão sobre se o fato relatado é verídico ou não.
A reportagem da Época tem 31.354 caracteres e segue esse procedimento. É bombástica. Na capa, vale-se da linguagem publicitária para vender um peixe graúdo. O leitor abre a revista e, de cara, depara-se com páginas e páginas recheada de fotos.
Quando vai a fundo na reportagem, encontra uma única informação relevante: o parecer do terceiro escalão do jurídico da Petrobras, recomendando não questionar na Justiça o resultado da câmara de arbitragem – que fixou o valor a ser pago pela Petrobras pelos 50% da Astra. Apenas isso.
É muito menos do que outras publicações vêm levantando no decorrer da semana. Uma informação que cabe em um parágrafo foi transformada em reportagem de várias páginas através dos seguintes recursos:
1.     8% do material descreve o uniforme da Petrobrás usado por Dilma Rousseff no lançamento do navio Dragão do Mar. Sobram 92%.
2.     21% é sobre a tentativa da Brasilinvest de se associar a Paulo Roberto Costa. No final do enorme calhau, fica-se sabendo que não houve associação nenhuma. Então para quê falar de algo que não aconteceu? Fica a informação falsa de que o Brasilinvest - que não tem nenhuma expressão no mercado -, é um dos maiores bancos de investimento brasileiro e que tentou fazer negócios em Cuba. Sobram 71%.
3.     5% é sobre um advogado que teria feito lobby para a Petrosul junto à Transpetro. No final do calhau tem a palavra dele, negando qualquer trabalho, e da Transpetro, negando qualquer medida. E nenhuma conclusão do repórter. Sobram 66%.
4.     11% do texto é sobre a compra da refinaria na Argentina. Joga-se no papel um amontoado de informações passadas pela Polícia Federal e recolhidas no São Google, sem uma análise, sem uma apuração adicional, sem uma conclusão sequer. Sobram 56%.
5.     6% do texto explica em linhas gerais o suposto escândalo Pasadena. É importante para contextualizar a questão, mas inteiramente feito em cima de informações públicas. Sobram 49%.
6.     15% para descrever uma lista encontrada com o doleiro Alberto Yousseff sem pescar uma informação relevante sequer. Sobram 35%.
7.     4% descreve a pendência judicial da Petrobras com a Astra, já divulgada pela mídia,  sem nenhuma informação adicional. Sobram 31%.
8.     7% é dedicado para o parecer de técnicos do jurídico recomendando não questionar a decisão da câmara de arbitragem na Justiça. É a única informação nova da matéria. O “furo” poderia ser dada usando 1% do espaço. Sobram 23%.
9.     23% para informar (com base em fontes em off) que a Astra queria a todo custo um acordo com a Petrobras. E atribui a decisão de ir para o pau ao então presidente da Petrobras José Sérgio Gabrielli. Mas qual o motivo? Como advogados ganharam honorários com a ação, logo o motivo foi montar uma jogada com os advogados.  Simples, não? Todas essas afirmações baseadas em suposições, ilações sem um reforço sequer em fatos ou em fontes em on. Em entrevista a veículos da Globo, o ex-Diretor de Gás Ildo Sauer – presente nas reuniões – afirmou que a diretoria executiva queria o acordo mas o Conselho recusou devido ao que se considerou arrogância dos executivos da Astra. As informações são desconsideradas, membros do CA não são ouvidos. Limitam-se a mencionar fontes em off para falar da simpatia e boa vontade dos executivos da Astra.
O leitor mais atilado fica com a sensação de ter comprado gato por lebre.

Fonte: Blog do Nassif
http://jornalggn.com.br/noticia/como-foi-feita-a-capa-da-revista-epoca

E por falar em mídia:

Vale a pena o documentário de Jorge Furtado:

https://www.youtube.com/watch?v=yQ0C7z4kfz8

O MERCADO DE NOTÍCIAS (94min, 2014)
Roteiro e Direção: Jorge Furtado

O MERCADO DE NOTÍCIAS é um documentário sobre mídia e democracia, que intercala depoimentos de treze jornalistas brasileiros com trechos da peça "The Staple of News", escrita pelo inglês Ben Jonson em 1625, quando do surgimento do jornalismo, e traduzida por Jorge Furtado e Liziane Kugland. A comédia de Jonson, montada e encenada especialmente para a produção do filme, revela sua espantosa visão crítica, capaz de perceber na imprensa de notícias, recém-nascida, uma invenção de grande poder e grandes riscos.

O filme traz entrevistas com importantes nomes do jornalismo brasileiro: Bob Fernandes, Cristiana Lôbo, Fernando Rodrigues, Geneton Moraes Neto, Janio de Freitas, José Robert Toledo, Luis Nassif, Leandro Fortes, Paulo Moreira Leite, Maurício Dias, Mino Carta, Raimundo Pereira, Renata Lo Prete.

www.omercadodenoticias.com.br

terça-feira, 29 de abril de 2014

Guapuruvu

O tempo deixou de ter o seu time usual para Euclides. Agora mesmo, enquanto observa a cidade pela janela do hotel, aquela folha que acabou de desprender-se dos ramos daquela árvore cujo nome ignora (diante de seus rotos conhecimentos de botânica)  parece cair em câmera lenta. O ar parece ter adquirido aquela resistência sólida. E à folha que viaja em direção ao asfalto, é quase impossível transpô-la. Há 2 semanas no hotel, Euclides não nutre interesse algum pelos seus assuntos habituais. Não faz planos para o futuro. Não assiste mais televisão. Não acompanha os fatos novos plantados pelos jornais e regados pela sociedade mesquinha. E, sobretudo, decidiu não falar mais. Tinha decidido poucos instantes antes de nos inserirmos em seus pensamentos com nossa curiosidade sombria, que não pensaria mais. Porém, por dois motivos, primeiro, pela completa impossibilidade de fazê-lo, e segundo pela absoluta ausência do que narrarmos, neste fado que vai se delineando, que essa súbita falta de nossa matéria prima mais substancial acarretaria, acabou decidindo que continuaria a pensar. Pelos menos por enquanto, ou até o fim desta narrativa, de modo que podeis ficar tranquilos quanto a quaisquer possibilidades de rescisão contratual no que atina ao fornecimento de pensamentos pela parte de Euclides. De todo modo a decisão tomada por
Euclides de não mais tornar a falar, a esta altura já é perene e irrevogável. Talvez caiba aqui alguma explicação mais ou menos necessária. Se calhar a alguém lembrar que Euclides até aqui não havia aberto a boca nem para dizer um mísero oi, devemos dizer então que enterreis por completo vossa esperança de ainda vê-lo, ou ouvi-lo, quem sabe, lê-lo, para aprimorar a expressão, falando. O tempo parara. Já haviam passado três semanas e meia, exatos 26 dias, desde o dia em que se instalara no hotel, quando enfim decidiu sair à rua novamente. Não diremos que eram nobres os motivos que o levavam a tanto. Na verdade, movia-o a simples necessidade de comprar determinados gêneros alimentícios, os quais, enfadado, o único funcionário do hotel, já relutava em comprar-lhe atendendo aos seus pedidos que agora vinham por escrito, posto que já não falasse. Nem bem dobrou a primeira esquina e Euclides protagonizou aquele que talvez seja o fato mais impactante desta obra. Dele falemos depois, deste fato. Importa saber o que se passava pela mente Euclidiana neste exato momento. Contrariando nossa exposição de motivos de 6 linhas atrás, Euclides viera à rua para observar de perto a folha que se soltara dos ramos no início deste capítulo, e que agora jazia inerte no asfalto quente, balançada vez ou outra pela brisa suave que soprava às dezesseis horas e doze minutos desta tarde de outono. É claro que existe uma forte hipótese de que não se trate exatamente da mesma folha cujo falecimento e queda Euclides assistiu à poucos instantes da janela do 5° andar do hotel. Mas ele não atina para isso. No sua mais profunda convicção foi esta a folha que enveredou-se há pouco rumo ao infinito, vindo deitar-se desfalecida no seu último leito de morte. O asfalto quente do calçadão da Av. Marechal Deodoro da Fonseca. Imbuído pelo mais sincero sentimento de compaixão ele então ajoelha-se. Afasta os outros cadáveres inertes, centenas, nos mais vários estágios de decomposição, e toma aquela em suas mãos, com imenso ar de cumplicidade. Outras semanas depois, quando recebeu o aviso de alta do hospital, rumou com sua cúmplice, no bolso esquerdo da camisa, para a biblioteca pública municipal. Com um volumoso livro de botânica nos braços, nomeou-lhe: Guapuruvu.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Um céu de margaridas negras

Euclides sonhava. Estava no céu. Um lugar florido de margaridas que floresciam e morriam a cada segundo. Milhares delas. O solo um imenso tapete de margaridas defuntas. Uma interminável planície branca. Por detrás de suas costas se estendia um longo filete de sangue a se perder no horizonte. Eram os pés de Euclides que sangravam. E com seu sangue Euclides maculava toda aquela alvura celeste. Em vão o sacrifício das margaridas. Ele estava ali. Com seu corpo sujo, com seu sangue imundo misturando-se às pétalas alvas. Sentia pairar sobre si o bafejo de mil anjos negros translúcidos acompanhando seus passos arrastados. No horizonte longínquo distinguia-se uma luz opaca, negra. A luz ao contrário do sol, irradiava escuridão. Lançando lampejos de sombra pela planície. A medida que avançava sentia suas pernas mais pesadas. Seus pés inchavam. Doíam e sangravam mais e mais a cada passo. O hálito dos demônios que pairavam sobre sua cabeça tornava a respiração insuportável. Náuseas hediondas invadiam-lhe o estômago. Sentiu o lençol ensopado de suor. O ar-condicionado estava desligado. O quarto extremamente abafado. Tateou no escuro o botão do abajur. Em vão ouviu o estalido da chave. Faltara energia elétrica. Com dificuldade alcançou a janela. A cidade inteira estava às escuras. Ponto algum de luz era observável. Um arrepio percorreu-lhe a espinha. Lembrou do sonho de que despertara. Aquela luz negra. E agora esta escuridão que envolvia a cidade. Uma angústia enorme instalou-se no seu peito. Desejou que amanhecesse imediatamente. Desejou profundamente poder ouvir os galos de seu vizinho Bonifácio anunciando a alvorada. Era estranho sentir isto agora. Antes, o cantar dos galos causava-lhe irritação. Perguntou-se como podia sentir falta de algo que outrora lhe desagradara tanto. Procurou por alguns instantes impor algum significado lógico para aquele sonho. Mas neste momento era impossível. A lembrança do ar imundo que respirara durante o sonho ainda causava-lhe náuseas. Na verdade ainda podia sentir aquele cheiro. Resolveu caminhar até o banheiro. Lavou o rosto como se quisesse se livrar de algo incômodo pegado à sua pele. Aos poucos em meio ao breu absoluto do cômodo apertado conseguiu distinguir seu rosto no espelho. A medida que esfregava a cara suas pupilas acostumavam-se à escuridão dilatando-se. Tomava a água com as mãos sentindo a liquidez atravessando-se-lhe entre os dedos e lançava-a no rosto como a uma bofetada sólida. Dava vazão a um desespero crescente. Um pavor enorme assenhorava-se de si e já não era capaz de distinguir o rosto no espelho, que tornava-se agora cada vez mais líquido e líquido. Seu reflexo agitava-se com as águas. Pequenas ondulações formavam-se naquela superfície vertical. Aos poucos a água vinha chocar-se contra a superfície fluidamente sólida do espelho. Até que já não pudesse manter abertos os olhos tamanha a ferocidade das ondas arremessando-se contra seu rosto. Vagas que pareciam engolir-lhe e ao cômodo inteiro arrebentavam agora contra seus braços circundados sobre a cabeça. Uma náusea bruta brotou-lhe do fundo dos intestinos e arremessou contra o espelho de um golpe um jato de vômito esverdeado. Entre o visco indolente escorrendo pela lâmina de vidro espelhado pode constatar no reflexo castanho de seus olhos parados, que a luz regressara.

terça-feira, 22 de abril de 2014

O capital está vencendo. Como a esquerda pode barrá-lo?

"Há um quadro completo do cerco ao país: 

1 - liquidem com a Petrobras e teremos o Estado brasileiro pela metade; 

2 - acabem com os gastos sociais e teremos uma crise social mais profunda do que a das jornadas de junho;

3 - restrinjam o BNDES e o crescimento – que já é pífio - se reduzirá ainda mais;  

4 - desmoralizem os partidos e a política e a técnica neoliberal substituirá o contencioso democrático."


Por Tarso Genro

A  lenta, mas firme desagregação da esquerda européia depois da quebra da URSS, está  ancorada em fatores “objetivos”, tais como as mudanças no padrão de acumulação capitalista -“pós-industrial” como já analisavam alguns economistas  há  trinta anos - que atravessaram a sociedade de alto a baixo. Estas mudanças alteraram  as expectativas políticas, o modo de vida, as demandas do mundo do trabalho e da constelação de prestadores de serviços, dos técnicos das atividades da inteligência do capital, dos sujeitos dos novos processos do trabalho e de amplos contingentes da juventude. Estes, originários de famílias das classes médias, que perderam o seus “status” social e o seu poder aquisitivo, adquiridos na era de ouro da social-democracia. A social-democracia não se renovou, nem o comunismo, para responder a estas transformações.
A desagregação, todavia,  também está ancorada na ausência de respostas - fator “subjetivo” dominante -dos núcleos dirigentes da esquerda comunista e social-democrata. Esta falta de formulação superior pode, parcialmente, ser atribuída a uma ausência de “caráter” - pela “acomodação” teórica e doutrinária dos seus dirigentes - mas este não é, certamente, o fator preponderante: o vazio de respostas de esquerda à nova crise do capital tem outras determinações mais fortes. Mesmo aqueles que se jogaram para uma posição “movimentista” - mais, ou menos, corporativa - aparentemente radical  (ou os que se propuseram a enfrentar o retrocesso com práticas de Governo ou com novas elaborações no âmbito acadêmico) não conseguiram - nos seus respectivos espaços de interferência - abrir novos caminhos que se tornassem hegemônicos.

A adesão da social-democracia francesa, italiana, espanhola e portuguesa – para exemplificar -aos remédios exigidos pela União Européia (leia-se Alemanha), põe por terra as esperanças que algum governo europeu, num futuro próximo,  possa inspirar mesmo uma saída social-democrata novo tipo à crise atual. Tudo indica que a recuperação da Europa capitalista virá por um canal “social-liberal”, depois de um longo período de reestruturação das classes em disputa. Teremos perdas significativas para os trabalhadores do setor público e privado, para as  micro, pequenas e médias empresas, que são responsáveis pela maior parte da oferta de empregos. A isso se agregará uma forte pressão sobre os imigrantes e a crescente redução dos gastos públicos, destinados à proteção social. Paralelamente a este desmantelamento tudo indica que crescerão as alternativas nacionalistas de direita, de corte autoritário e mesmo neo-fascistas, pois o vazio que gera desesperanças pode fazer renascer o irracionalismo das utopias da direita extrema.

Se isso é verdade, o nosso problema brasileiro é bem maior do que parece. A contra-tendência instituída no Brasil, que criou dez milhões de empregos no mesmo período em que foram destruídos mais de sessenta milhões de postos de trabalho em todo o mundo, está sob assédio. O nome deste assédio é a garantia do pagamento rigoroso - com juros elevados - da dívida pública, para que o sistema financeiro global do capital possa ter reservas destinadas a bancar as reformas e por em funcionamento um novo  ciclo de crescimento das economias do núcleo orgânico do capitalismo global.

Cada uma das alternativas que sejam propostas para o próximo período, visando desenvolver o país, combatendo as suas desigualdades sociais e regionais - sejam elas de inspiração neo-keinesiana ou socialista - só poderão ter efetividade e capacidade de implementação política se mostrarem de maneira coerente como elas se comunicam, acordam ou confrontam, com este cenário global. Ou seja: como as alternativas poderão ser efetivas no território,  numa situação de domínio integral do capital financeiro sobre os cenários econômicos e políticos do mundo.

O internacionalismo hoje é, conjunturalmente,  mais democrático e social do que propriamente  “proletário”, naquele sentido clássico que foi proposto pelo filósofo de Trévèrs. As conquistas democráticas e sociais das nações estão bem mais ameaçadas depois da crise que se iniciou com o “sub-prime”, pois os governos são vítimas de uma pressão brutal para reduzir, ainda mais, a sua autonomia política e assim integrar-se, pacificamente,  nas contaminações globais da crise.  Apresentar soluções internas, portanto, é também apresentar alianças de sustentação destas políticas no cenário internacional, para que as propostas não sejam voluntaristas ou demagógicas

Caso as formações políticas e os governos não consigam apresentar alternativas aceitas pelo senso comum, dificilmente terão apoio popular para governar. O seu fracasso - e o povo sabe disso - terá reflexo imediato como aniquilamento das conquistas de inclusão social, econômica e produtiva, que ocorreram no Brasil nos últimos dez anos. Este é, na verdade – nos dias que correm - o dilema, tanto demo-tucano e marino-campista, como do extremismo corporativista e movimentista: ambos deveriam responder qual é, nos quadros da democracia política, o efeito imediato na vida das famílias - especialmente das chamadas “novas classes médias” e  dos trabalhadores - dos seus projetos concretos de Governo, demonstrando como é possível aplicá-los pela via democrática.

Os ataques à Petrobras, que vem sendo modulados, tanto pela direita neoliberal como pelas oposições anti-PT e anti-Lula - de corte direitista e esquerdista - talvez sejam a síntese mais representativa desta dificuldade. O ataque, turbinado pela grande mídia,  dá espaço para estes grupos políticos não dizerem,  de forma clara  (se fossem eleitos),  o que fariam com a economia e com as funções públicas do Estado, no próximo período. Unidos, esquerdismo e neoliberalismo, desta vez no ataque ao Estado - não somente ao Governo - ficam absolvidos de fazerem propostas para dizerem como o país deverá operar, gerando emprego e renda,  ao mesmo tempo que se defende da tutela do capital financeiro  e das pressões da dívida pública.

A desmoralização de um ativo público da dimensão da Petrobras, os ataques ao seu “aparelhismo” político, a crítica aos gastos públicos excessivos (programas sociais, na verdade), os ataques às políticas do BNDES - de forma combinada com um permanente processo de identificação da corrupção com o Estado e com os Partidos em geral - fecham um quadro completo do cerco ao país: liquidem com a Petrobras e teremos o Estado brasileiro pela metade; acabem com os gastos sociais e teremos uma crise social mais profunda do que a das jornadas de junho; restrinjam o BNDES e o crescimento – que já é pífio - se reduzirá ainda mais;  desmoralizem os partidos e a política e a técnica neoliberal substituirá o contencioso democrático.

Como os militares estão aferrados às suas funções profissionais e constitucionais e não estão para aventuras, o golpismo pós-moderno vem se constituindo através da direita  midiática. Esta, se bem sucedida no convencimento a que está devotada, encarregaria um novo Governo social-liberal da desmontagem do atual Estado Social “moderado”,  obtido no Brasil num cenário mundial adverso.

Lido este cenário de refluxo da esquerda e de retomada dos valores do neoliberalismo selvagem, que devasta as conquistas da social-democracia européia, pode-se concluir que o debate verdadeiro no processo eleitoral em curso  - momento mais importante da nossa democracia republicana concreta - é o seguinte: ou o projeto lulo-petista se renova, baseado no muito que já fez e conquista novos patamares de confiança popular; ou o refluxo direitista liberal, que assola a Europa, chegará em nosso país pela via eleitoral, legitimado por eleições democráticas.

A semeadura da insegurança, que precede as inflexões para direita, está em curso em todos os níveis e para responder a esta sensação manipulada - que vai da economia à segurança pública - é preciso dizer de maneira bem clara quais os próximos passos contra as desigualdades e contra perversão da política e das funções públicas do Estado. Chegamos a um momento de defesa política de um modelo novo combinado com a velha luta ideológica.

Recentemente o MST, no seu Congresso Nacional,  deu uma demonstração de acuidade política e clareza programática. Fez a vinculação da questão agrária do país a um novo conceito de reforma:  vinculou as demandas particulares dos deserdados da terra à produção de alimentos sadios para os cidadãos de todas as classes, numa verdadeira rebelião agroecológica, que faz a disputa no terreno da produção e da política. Particularmente ele  se reporta àqueles que mais sofrem  os efeitos “fast-foods”, turbinados por agrotóxicos  e por malabarismos genéticos, cujos efeitos sobre a espécie humana ainda não são avaliáveis na sua plenitude.

Trata-se, na verdade, da superação de uma demanda particular de classe – uma reforma agrária baseada na mera redistribuição da propriedade - para um plano universal de interesse da totalidade do povo, sem a perda das suas raízes classistas. Belo exemplo que vem do povo para ser absorvido e renovar a  cultura política da esquerda.  O capital financeiro, no mundo, está vencendo, mas pode ser barrado pela imaginação criadora de uma esquerda que seja consciente da grandeza das suas tarefas nos  momentos de refluxo. O MST deu um belo exemplo.  A esquerda o seguirá?

Quero café da manhã

quero café da manhã
na beira da minha cama
quero toalhas floridas
quero torradas e manteiga
fresca
o leite não derramado
não quero o sangue coalhado
                                                     [não quero a santa miséria
nem os 50 euros do papa
e todos os seus sub-produtos
desfilando encrespada
no diário matinal

quero que o morro seja verde só
de matos e árvores altas
que seja um bom paradeiro
para nuvens escuras

quero ser menos gentil
há que ser cordial
com quem
me alimenta de fel e veneno?

as armas estão carregadas
armadas na mão de meninos
agora nutridos pelos santos
bandidos do além-morro

um vintêm só minha tia
dois real meu patrão
a carteira
a bolsa
desce do carro playboy
duas pedrinha só
olha os homi subindo
esse mês tirei uma TV de 42

o suor 
escorrendo de graça
pelas latrinas 
a alienação de uma pá de
pós-doutor@s em telenovelas
esse deputado impune
a puta na esquina
a cachaça barata demais
a especulação financeira
o microondas queimando 
mais um menin@-rato numa viela qualquer
as igrejas lotadas 
e todos esses fiéis 
comovidos, como se fossem 
os televisores ligados
à frente de milhares e milhares
cabeças que desistiram de tentar [ousar] pensar

                                                                               [subprodutos da miséria
que cresce, 
se reproduz
e se multiplica
na exata proporção 
de neurônios que torram
movidos pelo dispositivo automático
autoregulador/autometiculador
escondido 
bem no fundo
do nosso cú
ou de algum lugar
a que não nos atrevemos mexer
dado o monte de bostas
que temos tido dificuldades
em deixar de ser


quinta-feira, 17 de abril de 2014

Euclides - XVIII -

Enquanto mastigava seu almoço a mente de Euclides trabalhava como uma máquina a vapor. O suor escorre pela sua testa e encharca o terno surrado que ele reveza com outro apenas que possui, e que a esta altura vai sendo passado a ferro por Bruna, funcionária recém contratada pela Lavanderia, instalada estratégicamente no meio do caminho entre a casa e o trabalho de Euclides. Bruna alisa com esmero o tecido. Contudo seus pensamentos divagam. Só consegue lembrar do beijo que roubou-lhe o namorado na noite anterior. A moça de apenas 17 anos certamente teria abreviado sua promissora carreira na lavanderia acaso Euclides não interviesse a seu favor. Embora no momento financeiro atual não dispusesse de reservas para comprar outro terno que substituísse aquele carbonizado pela inexperiente passadeira Euclides não poderia tomar outra atitude que não a de assumir os prejuízos pelo terno perdido a bem do emprego da jovem. Mas este fato só se desenrolaria horas mais tarde, pouco antes dos fatos já narrados e que mudariam permanentemente a vida Euclidiana. Neste momento, enquanto forma o bolo alimentar com auxílio de suas mandíbulas, dentes, língua e glândulas salivares que trabalham autônoma e frenéticamente, Euclides articula a decisão que o fez abandonar o escritório mais cedo naquela tarde, como nunca dantes ocorrera em vinte e cinco anos de advocacia. Daí a pouco retornaria ao escritório. Haviam ainda duas ou três garfadas de arroz, duas folhas de alface e meio pepino a deglutir. Euclides já era velho conhecido do dono do restaurante. Permitiam que ele almoçasse dentro da cozinha a um canto para si exclusivamente reservado. Os negócios já andavam mal e no julgamento de Euclides seria pior se os clientes o avistassem almoçando naquele restaurante barato. Duas vantagens o levavam a tal lugar: O preço e a distância mínima em relação ao escritório. Embora Euclides nem suspeitasse, entretanto, não era a sua imagem que afastava os clientes ricos e que pudessem dar-lhe uma situação pecuniária estável. O problema é que Euclides era um poço de honestidade. Incapaz de mentir mesmo em juízo, mandara à bancarrota um sem número de clientes desavisados que no passado lhe confiaram suas trapaças. Esta uma das razões que levou a Delegada da comarca a desconfiar do depoimento de Seu Bonifácio e dona Anastácia  tomados ainda no mesmo dia dos fatos. Bonifácio não conseguia explicar onde passara aquela tarde. Anastácia por sua vez mostrava-se muito agitada, e buscava imputar a culpa do que quer que tivesse acontecido à Euclides. Falava como se o vizinho tivesse matado os amantes. No entanto na residência nada havia que indicasse um homicídio além de um pouco de sangue. Simplesmente não fora encontrado corpo algum, vivo ou finado. As hipóteses eram infinitas. Podiam ter simplesmente saído juntos os três reconciliados depois de uma briga. “ A esta hora devem estar em um boteco enchendo a cara e nem suspeitam que estamos aqui a perder tempo procurando um culpado pelas suas mortes”. Estas as últimas palavras ditas pela Delegada Dr. Jurema Wulf quando saíram resmungando, seu Bonifácio e Dona Anastácia, que a polícia nunca resolvia nada mesmo. 

Euclides - XXIII -

Euclides acaba de despertar de uma noite conturbada. Os jornais que lhe serviram de cobertor durante a noite jazem espalhados pela calçada. Ele observa, encostado na parede enquanto mastiga um pão seco, como o senhor alinhado, de gravata clara num terno muito escuro, pisa com força sobre a manchete de capa da principal folha de notícias da cidade. O jornal data quinze dias atrás. Euclides imagina quantas discussões deve ter gerado aquela matéria, agora pisada com desprezo por aquele íntegro senhor. No seus nascedouro, a repórter jornalística deve ter discutido com o editor, ou o que o valha, que por interesses políticos-comerciais não deve ter achado oportuna a adoção de diferentes rumos para aquela matéria. Euclides jamais saberá, mas fora exatamente o que ocorrera. Depois de uma série de recomendações e restrições a repórter fora liberada para cobrir aquele espinhoso assunto. Ainda no carro, sentia o vento nos cabelos e imaginava o quanto era bom viver numa nação livre. O motorista ao seu lado ganhava 1/5 do seu salário que representava o piso da categoria de jornalistas e por seu turno não compartilhava dos mesmos pensamentos. Na verdade seu semblante fechado e suas respostas monossílabas às perguntas e comentários da repórter deviam-se muito mais às preocupações com contas e títulos a pagar do que à imaginada natureza fria que lhe atribuía agora a colega de trabalho. Ela conseguira autorização do chefe para tratar daquele assunto que era um calo na administração. A Secretaria de Moda e apresentação social. Haviam denúncias de desvios de recursos públicos. O Secretário de Moda usava uma fábrica de calcinhas de fachada e através de laranjas estava engordando a própria conta bancária. Assim no entender da repórter haviam duas mentiras a serem esclarecidas. A questão da falsa fábrica de calcinhas e a de que laranja não engorda. Ela, portanto, estava eufórica. Seriam dois furos de reportagem em apenas uma matéria. O editor recomendara-lhe que não tocasse no nome do Secretário nem mesmo envolvesse a Secretaria de Moda nos fatos. A instrução era para que se ativesse à malfadada fábrica de calcinhas apenas. Entretanto, mesmo depois de haver repassado esta recomendação ao suposto dono da fábrica de calcinhas o sujeito não conseguia completar uma única frase sem mencionar o nome do secretário e de ainda umas duas dúzias de outros funcionários da Secretaria de Moda. Esta foi a razão e motivo de outra discussão entre si e o Editor Chefe. Com energias renovadas por três sucos de laranja que a repórter tomara no caminho de volta. Ele vociferava contra ela argumentando que se publicasse aquela matéria o jornal seria fechado com certeza, não pela censura, que esta graças a Deus não existia mais neste pais democrático, mas pela falta de recursos, já que a Prefeitura era a principal cliente e patrocinadora daquela folha. Helena ainda buscou argumentar, mas ao final se rendeu aos fortes e práticos  motivos de seu redator. Assim a matéria de capa que agora era lambuzada também pelo suco de laranja de uma menininha distraída que tropeçou num dos buracos da absolutamente imperfeita calçada, não contou com muito mais além de uma foto da nova linha de calcinhas lançada pela Secretaria de Moda anunciando a contratação de uma nova e mais eficiente fábrica deste tão fino artigo. A denuncia de superfaturamento. Em uma coluna lateral, ainda na capa, um manchete secundária tentava atrair atenção para uma nova pesquisa sobre as propriedades calóricas da laranja. Com um sorriso nos lábios Euclides puxa para si uma folha de jornal disposto a ler a coluna de tiras, única que jamais envelhece, permanecendo incólume, enquanto os outros fatos se deterioram pelo tempo ou pelos homens que lhes contradizem a cada minuto. 

Euclides - V -

É costume acordarem bastante cedo todos os dias. Com dois galos, um ganizé e onze galinhas no pátio de casa às cinco horas da manhã as coisas já ficam um bocado agitadas na residência dos Gutier. A esta hora Bonifácio arrasta seu corpo débil e envelhecido para fora da cama. Com cinco ou seis passadas debruça-se sobre a soleira da janela, que amanheceu aberta como ocorre sempre nos dias quentes. Daí a algumas horas será possível avistar os edifícios do centro da cidade. Por enquanto a cidade esta recoberta por  uma densa neblina. O que, nos dias em que acorda de bom humor, dá a impressão a Bonifácio, de que é o mar coberto de uma espuma densa o que ele avista da janela. Muito embora não formule nestes exatos termos este pensamento. Na verdade Bonifácio pensa algo mais próximo disto: “Eita que te parece que choveu o mêsinteiro e a cidade se cobriu d' água”. O humor de Bonifácio, contudo, é o seu habitual. Dona Anastácia constata isso ainda da cama quando ouve os runhidos de Bonifácio que procura limpar a garganta e que termina com uma escarrada grosseira, no julgar de dona Anastácia, para fora da janela. Vez ou outra acontece de Bonifácio acertar sua escarrada nos galináceos do terreiro. O que causa alvoroço ainda maior já que o animal atingido passa a ser vítima de perseguição frenética dos outros que a esta altura já anseiam famintos pelo café da manhã. Quando enfim o estado de espírito matinal de Bonifácio já contagiou dona Anastácia esta resolve enfim sair também da cama e dirigir-se à cozinha. Somente depois que a água estiver fervendo na chaleira e que Bonifácio tiver sorvido o primeiro gole escaldante de chimarrão é que Dona Anastácia poderá cumprir com suas funções renais e de higiene pessoal no banheiro. Algo que Bonifácio, se lembrar de faze-lo, só o fará horas mais tarde, quando compelido pela água do mate que abasteceu sua bexiga. Bonifácio mal deitara de lado a cuia de chimarrão, satisfeito depois de uma chaleira inteira de água quente dividida com dona Anastácia, quando avistaram Euclides saindo de casa. Julgavam o vizinho como um sujeito bastante antipático. Ele jamais os cumprimentava, muito embora os visse todas as manhãs. Mesmo aos sábados e domingos, quando Euclides comparecia religiosamente ao escritório que mantinha no centro da cidade. Depois da terceira curva morro abaixo o vizinho desaparecia em meio ao nevoeiro, como se sua matéria se dissipasse evaporando para a atmosfera. Algo que Bonifácio e Anastácia traduziam mais ou menos assim. “Pronto, o home evaporo de novo”. Neste dia Anastácia perguntou a Bonifácio se deviam contar ao vizinho que sua esposa recebia visitas do encanador diariamente. “Não vai adiantar de nada, do jeito que o home é mole, não vai resolver de nada essa poucasemvergonhança. To bão de dar um jeito é eu mesmo nesse desfrute onde já se viu a mulhé faze uma coisa destas com um cabra que trabalha até em dia santo para colocar o feijão na mesa!” Dona Anastácia já estava acostumada com os blefes de seu marido. No entanto mais tarde quando a polícia bateu à sua porta perguntando pelo paradeiro de seu esposo, seus lábios trêmulos não souberam responder.

Euclides - IV -

É madrugada. Por horas, Euclides apenas ouve as histórias que lhe contam. Nas ruas das cidades, e debaixo de suas pontes, viadutos, e nos bancos de suas praças, há  muito mais filosofia do que supõem nossos preconceitos vãos. Pensa em confidenciar este pensamento que de alguma forma remete a Shakeaspeare. Porem mesmo ali acha Shakeaspeare pedante demais. Em parte também pela distância da frase original, algo que sua imaginação ébria àquela altura não consegue remediar por mais que se esforce. Impressionava-lhe o grau de normalidade que continha o cotidiano da vida na rua. Mesmo para aqueles que pelos mais variados dribles do destino passavam a viver de certa forma à margem do sistema, o cotidiano, os ciclos vitais continuavam a ser os mesmos. Neste momento, nada é mais impressionante para Euclides do que essa descoberta.  Por anos, observara de longe essas figuras, que por vezes pareciam ter sido pintadas para marginalizar um pouco o cenário. Para dar-lhe um aspecto mais realista. “Ora esta é a realidade pensava sempre consigo”. Mas nunca avançou para além desta constatação. Jamais dera a nenhum mendigo, como então se referia as estas pessoas, mais do que um olhar que durasse no máximo 3 segundos. Três segundos. Sem saber porque, sem nunca ter cronometrado esse tempo Euclides lembrou dele agora. Pensou no que seria possível fazer em três segundos. Pensou se tivera dado a todos eles, se somado todo o tempo, algo que chegasse a um minuto. Não. Euclides jamais ter-lhes ia dispensado um minuto inteiro, com todos os seus sessenta segundos. No entanto, agora chamavam-lhe a atenção. Perguntavam-lhe, quais eram as razões para que seus olhos se enchessem de lágrimas. A conversa cessara havia algum tempo. O silêncio de Euclides despertara a atenção dos outros. Seu silêncio. Quantas vezes sentira-se irritado com a insistência dalgum maltrapilho a contar-lhe seus problemas. A pedir-lhe um mínimo de atenção. No entanto, mais uma vez não teve forças, ou coragem para dizer nada. Permaneceu mudo durante ainda algum tempo. Fitou cada um daqueles homens. Fitou cada olhar. Por muito mais que três segundos. Ainda mudo Euclides busca levantar-se. Seus sentidos estão sob efeito etílico, e mesmo que seus braços fracos queiram evitar, dois daqueles seres humanos das sarjetas, sustentam seu peso e impedem-lhe que caia. Euclides repele a ajuda. Cambaleante distancia-se daqueles homens. São como anjos. Pensa consigo. Estiveram sempre aqui. E nunca dei-lhes pela existência.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Senado Aprova projeto que proíbe doações de empresas à campanhas eleitorais

O presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, Vital do Rêgo (PMDB-PB), confirmou nesta quarta-feira (16) a aprovação do projeto de lei que proíbe a doação de recursos de empresas para financiamento de campanhas eleitorais. A proposta, que já havia sido aprovada pelo colegiado há duas semanas, foi submetida a turno suplementar nesta quarta.
Como a decisão tem caráter terminativo, o texto seguirá para a Câmara dos Deputados, sem a necessidade de ser apreciado pelo plenário do Senado – a não ser que algum senador apresente recurso, em um prazo de cinco dias, pedindo que a matéria seja encaminhada ao plenário da Casa.
No mesmo dia em que os integrantes da CCJ do Senado deram a admissibilidade ao projeto, no último dia 2, o Supremo Tribunal Federal retomou o julgamento que irá definir se empresas podem fazer doações em processos eleitorais.
Na ocasião, a maioria dos ministros se posicionou contra as doações da iniciativa privada a partidos políticos e campanhas eleitorais. A decisão final, no entanto, foi adiada porque o ministro Gilmar Mendes pediu vista (mais tempo para analisar o tema).
Outra alteração proposta pelo projeto de lei prevê a revogação do artigo 81 da mesma lei, que permite doações aos comitês financeiros dos partidos ou coligações, com contribuição limitada a 2% do faturamento bruto das empresas doadoras no ano anterior à eleição.O texto avalizado pela CCJ do Senado propõe alteração no inciso VII, do artigo 24, da lei n° 9504/97. O norma em vigor proíbe a doação de pessoas jurídicas sem fins lucrativos que receba recursos do exterior. No entanto, a proposta discutida atualmente pelos congressistas pretende impedir que empresas de qualquer natureza e finalidade financiem campanhas eleitorais.
Para o relator da proposta, senador Roberto Requião (PMDB-PR), o custo das eleições faz com que candidatos e partidos procurem financiadores privados para as campanhas, o que, segundo ele, provoca “a proliferação de casos de corrupção e de abuso do poder econômico”.
Fonte: http://g1.globo.com/politica/noticia/2014/04/projeto-que-proibe-empresas-de-doarem-em-eleicoes-vai-para-camara.html
Conteúdo também aqui: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/04/1441496-senado-acaba-com-doacao-de-empresas-em-campanhas-eleitorais.shtml

terça-feira, 15 de abril de 2014

Um certo Euclides

Dentre as três opções que se lhe apresentavam Euclides, é claro, optou pela menos fácil.
Ele jamais percorreria a distancia entre dois pontos em linha reta. Assim não havia qualquer trajeto curto o bastante, que não pudesse ser alongado. Não havia questão simples o suficiente, à qual não pudesse impor uma variável complicadora. Uma vez tomada a decisão que mudaria definitivamente sua vida Euclides abandonou seu escritório invadindo a rua. Pessimista como era, não esperava que aquela manhã chuvosa de junho se convertesse naquela tarde radiante, por este motivo conservava o guarda chuva ainda úmido em uma das mão enquanto a outra empunhava a surrada bolsa que transportava os papeis e processos do escritório. Depois de vencer a pé o trajeto entre o trabalho e sua casa, aproximadamente  onze quilômetros,  dez minutos de carro, mais de uma hora de caminhada, metade do trajeto morro acima, Euclides sentou-se em uma pedra e pôs-se a pensar: “Devo entrar pela porta da frente, pela porta dos fundos, ou devo pular uma das janelas”. Nenhuma das três, a mente brilhante de Euclides ofereceu-lhe ainda uma quarta alternativa, foi assim que seus curiosos vizinhos passaram a acompanhar, pela fresta aberta na cortina, sua escalada rumo ao telhado da casa. Quando ele pulou do galho do pessegueiro que se estendia sobre a casa, Bonifácio, seu vizinho, aposentado por invalidez pela Previdência Social por obra de uma ação manejada por Euclides na Justiça, apostou com a esposa, dona Anastácia, que ele cairia, e que certamente fraturaria a clavícula. Dona Anastácia dobrou a aposta afirmando que ele ficaria “tretaplégio”. Para a infelicidade de ambos Euclides executou com maestria o seu plano e em poucos segundos já havia removido as telhas e agora enfiava-se pelo buraco aberto no telhado saindo do campo de visão de seus vizinhos, motivo por que, mais tarde, quando perguntados, pelo Delegada da Comarca, Dra. Jurema Wulf, não souberam dizer, com exatidão, embora imaginassem, o que fazia Dona Eulália, esposa de Euclides com Darci, encanador, naquela tórrida tarde em sua casa. Euclides fugiu para o México, dizem alguns. Outros afirmam com veêmencia que ele continuou na cidade por um tempo, vivendo embaixo das pontes, irreconhecível, mas que depois a Prefeitura fez uma campanha de “limpeza” e ele foi mandado para o Paraná como indigente. Seu Bonifácio e dona Anastácia apostam com qualquer um que Euclides está disfarçado na cidade, e que deve lançar-se, segundo consta, a vereador nas próximas eleições.

II

Não era dificil adivinhar o que ocorreria naquela tarde. Logo depois de abandonar mais cedo  o escritório e flagar sua esposa transando com o encanador em cima da pia que vivia quebrada, todos só poderiam supor que ele matara os dois. Não foi o que aconteceu. Quando o viram entrando pela abertura que abrira no telhado, os dois amantes tomaram susto tal que se desequilibraram. Na queda, a pia, que já andava mal, veio abaixo, e é difícil explicar como, mas a gaveta dos talheres abriu-se e as facas que aí estavam acabaram ferindo mortalmente tanto ao encanador quanto à esposa de Euclides. Deparando-se com aquela situação, Euclides não perdeu a calma. Raciocinou que seria impossível convencer os jurados de que aquilo efetivamente tinha acontecido. E que a condenação por homicídio duplo qualificado pelas várias facadas desferidas (com lâminas diferentes, e garfadas inclusive) seria inafastável. Mas Euclides sempre fora um homem estritamente racional, frio, calculista. Bem, a pá estava atrás do galinheiro, de lá certamente seria visto pelos vizinhos, o que a essa hora não seria nada bom. De qualquer forma, tinha a impressão de ter visto qualquer movimento na cortina da janela da casa ao lado, o que denunciava que seus vizinhos provavelmente estavam espreitando pela fresta, como de costume, quando subiu ao telhado. Nesse caso, certamente sabiam que estavam na casa naquele momento: o encanador, ele e sua esposa. De qualquer modo embora pudessem supor o que se passava no interior da casa, não poderiam, pelo menos por enquanto, afirmar nada de concreto. Enquanto desencadeava esse raciocínio frio e lógico Euclides permanecia sentado na cadeira da cozinha, tamborilando os dedos sobre a mesa, esperando pela fervura da água para que pudesse tomar o seu chá de erva cidreira. Dona Anastácia estranhou a mancha vermelha na barra do paletó de Euclides quando este apareceu na sua porta solicitando autorização para colher no seu quintal umas folhas de erva cidreira para preparar um chá para sua esposa, que,  pelo que pode entender de sua fala atropelada, estava se sentindo um pouco mal devido a certos produtos químicos empregados pelo encanador para desentupir os canos da pia. Ainda comentou com seu Bonifácio, quando viram sumir na última curva, a passos ébrios, Euclides ao meio, abraçado com o encanador e sua esposa,  que o mundo de fato andava pelo avesso. Como podiam estes jovens fazerem tanta “vagabundagem” em plena luz do dia, e ainda virem conversar com os vizinhos na maior cara de pau. – “Eu devia ter lhes dado era um chá de boldo.”

- III - 

Quando acordou pela manhã Euclides não abriu os dois olhos simultaneamente. Deixou-se ficar de olhos fechados por alguns momentos sentindo a consciência despertar aos poucos dos sonhos agitados que tivera naquela noite. Calculou em pensamento dezessete minutos como o tempo necessário para recobrar suficientemente sua consciência. Tempo que uma vez decorrido autorizaria a abertura suave do olho esquerdo. Justamente aquele voltado para o lado contrário em que sua esposa dormia, ou seja, para o lado da parede. Depois de ter  escrutinado o território visível ao alcance de seu olho esquerdo Euclides finalmente sentiu-se seguro para permitir que a luz matinal penetrasse também em seu olho direito. Abriu-o, não suave, desta vez, mas, bruscamente. Neste mesmo momento sua esposa levantou-se sobressaltada, como que emergindo de um mergulho profundo. Não assustara-se com a abetura repentina do olho direito de Euclides, como podeis supor. Mas com os sonhos que agitavam seu inconsciente. Eustáquia, era a filha mais nova de uma família com 27 irmãs. Conhecera Euclides no casamento de uma de suas irmãs, e a paixão fora fulminante. Euclides na época relutou em abandonar o sacerdócio, entretanto, foi impossível resistir à tentação que para si significava Eustáquia, sobretudo quando a jovem moça passou a vir diariamente ao confissionário penitenciar-se por estar apaixonada pelo sacristão recém ordenado. Fato que se agravava considerando que o confissionário era apenas um dos bancos da igreja, no qual sentavam-se frente a frente - sem nenhuma proteção - o pecador e o absolvidor. Fato agravado ainda pelas vestes sensuais das quais não relutava em abrir mão a despudorada Eustáquia. Euclides mastigou o pão seco do café da manhã e rumou para o escritório sem saber quais foram os sonhos que despertaram tão adruptamente sua esposa de seu inocente sono. Mais tarde quando tomou o corpo ensangüentado de sua esposa nos braços talvez tivesse tido importância conhecer o teor de suas aflições. Contudo, prático como era, Euclides não atinou para isso, despiu pela última vez o corpo tênue de Eustáquia e procurou livrar-lhe das manchas de sangue, que maculavam sua alvura. Se tivesse feito o curso de especialização em medicina legal na faculdade de direito, certamente não teria lhe passado desapercebido que depois de limpar todo o sangue de Eustáquia não restara nenhum ferimento visível. Por esta razão Euclides ficou feliz em poder envolver o corpo tênue e alvo de sua amada pelo menos desta vez com o vestido florido que dera-lhe no natal passado e que ela nunca havia usado. Dona Anastácia ainda comentou com seu Bonifácio antes que os três sumissem de suas vistas para sempre: Olha meu velho, que esta é a primeira vez que vejo essa sem vergonha com uma roupa que esconda sua bunda!


 -  XIII - 

Euclides agora está sentado sobre os trilhos do trem. Mede com os olhos a distância entre si e a s pessoas que ao longe conversam. Parecem felizes. Parecem realmente felizes. Parecem. Euclides leva aos lábios vermelhos o gargalo da garrafa de vinho que traz envolta em um saco de pão.Mais alguns goles e estará vazia. A escuridão da noite é rompida algumas vezes pelos veículos que cruzam a Av. Marechal. Poucos a esta hora da
madrugada. Algumas imagens, reflexos de outros tempos, projetam-se em algum ponto incerto da cabeça de Euclides. Impulsos elétricos disparados entre os neurônios. Como naquelas nas noites em que depois do reboar das trovoadas, estalam no negrume do céu, improvisando traçados incertos. As imagens, aquelas primeiras, antes da comparação com os relâmpagos que iluminavam o céu de outrora, já não conservam a mesma nitidez. São fotos velhas, amarelecidas pelo tempo, que no poço profundo dos pensamentos se misturam à outras, distorcendo a realidade, criando novas lembranças no imaginário. São fatos novos, criados por uma mente cansada. Que se alimenta do passado, para recriar, o que poderia ter sido. Euclides, o que você fará da sua vida rapaz, ou do que resta dela. A esta pergunta, Euclides não obterá já a resposta, conservemo-la, nós que a conhecemos, para o futuro. Neste momento, enquanto cuidávamos de prescrutar seus pensamentos, Euclides, movido sabe-se lá por quais motivos resolveu levantar dos trilhos. A passos curtos, do tamanho da distância entre dois dormentes, ele segue acompanhando o sentido dos trilhos em direção ao centro da cidade. Deve amanhecer daqui a pouco. E a menos que queira se juntar aos maltrapilhos que fedem na calçada impedindo a felicidade dos cidadãos que pagam em dia seus impostos, trabalham 48 horas semanais e sabem que receberão o 13° salário para quitar suas dívidas contraídas nas lojas que se amontoam ao longo das ruas quentes da cidade, deve procurar um Hotel barato para passar os próximos dias. Na recepção informam-lhe o preço da diária. E cobram adiantado. Fato que Euclides atribui ao seu estado deplorável. Próprio de um homem ébrio, que não dorme nem se banha há mais de 3 dias. Com a barba feita, e os cabelos alinhados a imagem no espelho torna-se um pouco mais tolerável. Diferente do que vira há pouco refletido nas vitrines. Mas o sono parece ter-lhe abandonado por completo. Não há mais nada a fazer nesta cidade.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

STF vai julgar ladrão de duas galinhas


Publicado por Luiz Flávio Gomes
Fonte: Jus Brasil
24
Quando a subtração de uma galinha e de um galo (valor de R$ 40,00), que foram devolvidos ao dono, se torna um processo relevante para a Justiça, desde a primeira instância (São João Nepomuceno-MG) até chegar ao STF, passando pelo TJMG assim como pelo STJ, ela emite mais um sinal inequívoco do seu degradado estado terminal, em razão da sua avançada degeneração moral e ética, geradora de embotamento mental assim como a perda da sensibilidade típica dos humanos. É a barbárie vencendo novamente a esperança iluminista de progresso e civilização, em virtude do uso da razão.
Está absolutamente falido o modelo de Justiça criminal, cruel e brutalmente injusto, desenhado no final do século XVIII pela burguesia ascendente, para a proteção dos seus interesses. Nos países em que essa Justiça desumanizada se atrelou ao capitalismo selvagem (caso do Brasil), que não tem nada a ver com o capitalismo "escandinavizado" evoluído, distributivo e tendencialmente civilizado, praticado na Dinamarca, Suécia, Holanda, Suíça, Bélgica, Nova Zelândia etc., tornou-se imensa sua brutalidade anticivilizatória.
Não é preciso ser jurista nem juiz para se saber, conforme as regras intuitivas do bom senso comum de qualquer pessoa do povo, que ninguém apoia a subtração do que quer que seja, independentemente do seu valor intrínseco; ao mesmo tempo, que é um absurdo incomensurável instaurar um processo criminal e movimentar toda máquina judiciária (até chegar à Máxima Corte) pela subtração de uma galinha e um galo.
Essa subtração constitui um fato atípico (atipicidade material, conforme o ministro Celso de Mello - HC 84.412-SP). Logo, não há que se falar em crime. Sem crime não pode haver processo. Algo que nunca deveria ter sido iniciado acaba de chegar ao STF (e o ministro Fux não deu liminar para encerrar o caso de uma vez por todas). Vamos acompanhar atentamente pela TV Justiça a sessão do STF que vai debater e julgar a acusação do furto de uma galinha e um galo, cometido por um jovem de 25 anos.
O novo modelo de sociedade e de Justiça ("escandinavizado") ainda não nasceu e o velho modelo degenerado (do capitalismo selvagem brasilianizado) ainda não morreu. Apresenta sinais evidentes do seu esgotamento terminal. Mas a desgraça é que nunca podemos esperar nada desta fase "do fim do mundo", onde tudo só tende a piorar (o modelo de Justiça que praticamos ainda vai vitimizar milhões de pessoas, até seu sepultamento final, que vai ocorrer por consenso ou, desgraçadamente, por uma nova Queda da Bastilha de 14 de julho).

Luiz Flávio Gomes
Publicado por Luiz Flávio Gomes
Jurista e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz.

terça-feira, 8 de abril de 2014

durante esta semana

durante esta semana, 
não choverão
pétalas


durante esta semana,
não haverá por-do-sol

nem restos de carroças 
com rodas vermelhas
ou amarelas 
pela beira do caminho

durante esta semana, 
os muros serão cinzas só

as estradas também

e os pássaros 
se voarem,
gralhas negras



mas não no meio
dos campos de trigo
 de Van Gogh

durante esta semana
todas as canções,
hinos fúnebres
velhas
marchas militares

todos os corações
baterão miúdo
desacelerados

durante esta semana
crisálidas
convertidas 
um luto

lágrimas
metidas 
nos bolsos
de trás
do jeans
mais surrado

durante esta semana
se chover
não haverá 
romance
nem café da tarde
com bolinhos de chuva

[jgh]