Texto publicado em:
HEILER, J. G.; OLSEN, A. C. L. ; DALRI, L. . As Decisões que Levaram o STF ao Centro do Tabuleiro: Uma Análise Político Institucional. In: Itamar Luis Gelain. (Org.). Pensamento e Movimento V. 1ed.Joinville: Dialética, 2023, v. V, p. 221-244.
As
decisões que levaram o STF ao Centro do Tabuleiro: Uma análise
político constitucional
Ana
Carolina Lopes Olsen
Jeison
Giovani Heiler
Luciene
Dal Ri
RESUMO:
O
escopo deste trabalho foi o de contextualizar os eventos e a
estrutura jurídico política que trouxe o Supremo Tribunal Federal
ao centro do tabuleiro do xadrez político brasileiro. De fato, o STF
foi o pivô de acontecimentos de maior importância para a nação ao
colocar em xeque peças importantes do tabuleiro eleitoral. Assim foi
durante o Mensalão, depois, durante a Lava Jato, e pontualmente
interferindo no processo eleitoral de 2018 ao colocar fora de jogo o
candidato que liderava todas as pesquisas ao decidir pela
possibilidade da prisão a partir da condenação em segunda
instância do ex-presidente Lula. Entretanto, o que é importante
notar, sobretudo, é o contexto em que se deu a hipertrofia do
Judiciário. descortinamos primeiro alguns dos eventos históricos
que marcaram o papel da Suprema Corte nos últimos anos. Frisando que
a partir da Constituinte que levaria a CRFB/1988 houve um esforço em
dotar o STF de um poder capaz de conter arroubos autoritários tais
como aqueles que se precipitaram a partir do Golpe de 1964. Para isso
construiu-se um Estado com um sistema de salvaguardas constitucionais
da democracia com um guardião à sua altura. Os eventos que se
descortinam daí até os dias atuais guardam reflexos desse contexto.
Palavras-chave:
Supremo
Tribunal Federal; Guardiania; Democracia; Supremocracia;
INTRODUÇÃO
É
fato que as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) têm atraído
a atenção do público de uma maneira pouco usual. Particularmente,
tem sido comum perceber o grande público comentando as decisões do
STF com relativa desenvoltura. Por exemplo, as pessoas acompanharam
os votos da prisão em segunda instância (HC 126.292) como
acompanham a final e uma partida de futebol, e algumas chegaram a
organizar carreatas para comemorar o resultado.
Claro, talvez a comparação com as finais do futebol seja um tanto
exagerada, mas o ponto é: Seriam estes sinais de amadurecimento da
democracia? Como o STF foi parar na boca do povo? E como foi trazido
ao centro do tabuleiro? Estas apenas algumas questões que
pretendemos ensaiar neste brevíssimo trabalho.
Em
primeiro lugar argumentamos que o STF está no centro do tabuleiro e
talvez esteja exercendo um protagonismo inédito. Apesar de que
algumas vozes temam uma posição encurralada do STF, defendemos que
o risco percebido
é, na verdade, o mesmo que correm todas as demais instituições: ou
seja, as ameaças de perecimento da democracia. Aquilo que tem sido
discutido por muitos pensadores como Levitsky e Ziblatt em “Como as
democracias morrem”, de Anne Aplebaum em “O crepúsculo das
democracias”, Castells em “Ruptura a crise da democracia liberal”
ou Marcos Nobre no Brasil ao escrever sobre a “Ponto Final: A
guerra
de
Bolsonaro contra a democracia”.
Entretanto,
dentro das regras do jogo democrático, no xadrez político, enquanto
for preservado o tabuleiro do jogo e suas regras, as igualitárias
condições de disputa, o STF tem exercido o que Oscar Vilhena Vieira
tem chamado de “supremocracia” (2008; 2018) e que antes dele
Robert Dahl (2012) chamara de guardiania em “A democracia e seus
críticos”. Por outro lado, a atuação da corte constitucional
pode servir à garantia do próprio jogo democrático, como
reconheceu Roberto Gargarella (2019), notadamente em sociedades
desiguais em que nem todos tem participação política e voz.
Ao
longo dos anos, o STF tem ingressado na arena política – ora
influenciando com suas decisões os processos eleitorais, ora
ingressando na seara da proteção dos direitos de grupos vulneráveis
– o que tem gerado críticas severas.
É
disso que tratará este texto. Analisaremos em perspectiva histórica
o processo de hipertrofia do STF a partir da análise político
jurídica de algumas de suas principais decisões. Para ao fim tratar
dos eventuais efeitos desse processo para a robustez da democracia no
Brasil.
OS
LANCES DECISIVOS QUE LEVARAM O STF AO CENTRO
Antes
de tratarmos dos efeitos para a democracia do centralismo ocupado
pelo STF no jogo político cabe discutir quais seriam as causas ou
sinais dessa hipertrofia do STF. O processo de democratização pós
ditadura militar trouxe em seu bojo uma preocupação com o
fortalecimento e a independência do Judiciário. Como resposta ao
sistema jurídico inconstante e ao Judiciário diminuído em face da
edição de atos institucionais, a Constituição assumiu o papel de
medida de todo o sistema jurídico, e os constituintes atribuíram ao
Supremo Tribunal Federal competência para atuar como seu guardião.
Vieira
(2008; 2018) e Santa
Brígida & Verbicaro, (2020) analisam
o papel do STF a partir do processo de reabertura democrática que
culminou na Constituição Federal de 1988. Segundo os autores,
pode-se distinguir momentos históricos em que a Suprema Corte foi
instada a agir: Impeachment
de
Collor; Governos Itamar Franco e FHC; Governo Lula; Governo Dilma; e
a Fase atual (Pós impeachment de Dilma até meados de 2021). Em cada
uma destas fases o STF expressou-se de maneira peculiar, guardadas as
circunstâncias de cada tempo e a correlação de forças presente.
No
Impeachment
de Collor,
a atuação do STF resumiu-se a acompanhar/supervisionar o
impeachment
(Vieira, 2008; 2018; Santa
Brígida & Verbicaro, 2020).
Ao mesmo tempo, foi um pouco antes deste período que ficaria marcada
a sua principal omissão: análise da MP 151 (Plano Collor). A
posição do Supremo mudou posteriormente quando declarou a
inconstitucionalidade da reedição de medidas provisórias
expressamente rejeitadas pelo Congresso Nacional.
Decisões
emblemáticas tomadas nos anos 90 acabaram por consolidar sua função
de órgão controlador do Executivo e do Legislativo, praticando
verdadeira accountability
horizontal.
Essa independência fortaleceu-se com as decisões ligadas à
implementação dos programas de bem-estar social previstos na
Constituição, muitas vezes em detrimento da racionalidade econômica
e da austeridade (SANTISO, 2003, p. 6). Como coloca Barbosa (2013,
p.175), havia verdadeiro clamor popular por “mais judiciário”,
já que ele seria o responsável pelo reconhecimento dos direitos, e
o único capaz de ordenar a Administração Pública a praticar atos
voltados a sua implementação, bem como suprir eventuais
deficiências legislativas.
Na
fase de Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso (Governo PSDB) o
Supremo ratificou as medidas econômicas, reformas constitucionais de
privatização e a primeira fase da reforma da previdência (EC
20/98). Neste período a reforma do judiciário passou a garantir ao
STF a última palavra sobre a constitucionalidade de qualquer ato
normativo mesmo que anterior à CRFB/1988 via Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF. (EC 03/93).
Vale
ressaltar que a EC 45/04, conhecida como “Reforma do Judiciário”
favoreceu o empoderamento do STF. Fruto de intensa articulação
entre o então Governo Lula (2002-2010) e os magistrados, a medida
garantiu ao STF a possibilidade de instituição das Súmulas
Vinculantes e de repercussão geral no recurso extraordinário,
instrumentos que centralizavam a posição do Judiciário Brasileiro
nas interpretações realizadas pela corte.
Outro
elemento a se considerar foi a ampliação e diversificação das
vias de acesso (com mais atores legitimados a desencadear o controle
de constitucionalidade), e o significativo aumento de processos. Todo
esse novo arranjo estrutural fortaleceu a independência do STF
(RUSSEL, O’BRIEN, 2001, p. 17).
Anos
mais tarde, no julgamento do mensalão (STF - AP 470), teve-se aquele
que pode ser considerado o auge da “supremocracia” brasileira. Ao
todo foram 69 sessões televisionadas que transcorreram em um ano e
meio de julgamento (VIEIRA, 2018, p. 198). Este julgamento também
foi um marco temporal porque relativizou o princípio da
responsabilidade penal subjetiva, para o qual é necessário
individualizar cada conduta a fim de imputar a alguém um fato
criminoso. Para isso o tribunal mudou a interpretação de três
aspectos: 1
-: a doutrina do domínio do fato; 2 - dispensou a necessidade de
comprovação de existência de ato específico como contrapartida de
vantagem indevida;3 admitiu imputações sobrepostas derivadas da
mesma conduta. (Santa
Brígida & Verbicaro, 2020).
Durante
os anos do Governo
Dilma
o STF enfrentou temas sensíveis - muitos deles tratando de direitos
fundamentais – e por esta razão entrou em choque direto com a
vontade da maioria. Ao julgar o enquadramento jurídico da união
homoafetiva (ADPF 132 e ADDI 4277 - 2011); a possibilidade de aborto
de fetos anencéfalos (ADPF 54 - 2012); autorização para publicar
biografias não autorizadas (ADI 4815). Neste momento o STF teria se
inserido em pautas cuja decisão caberia àqueles que tem voto e
representam a maioria, passando a exercer um papel contramajoritário.
A partir deste período a Suprema Corte, que entrara no radar do
grande público desde o mensalão, passou a expor-se ao desgaste
decorrente de decisões
contramajoritárias.
Além
disso a sensação de intromissão do STF em searas polêmicas
acentuou-se dado que neste período o Supremo também decidiu sobre
importantes temas no âmbito eleitoral:
considerou
que a lei da ficha limpa não viola o princípio da presunção de
inocência – bastando para a inelegibilidade a condenação em
segunda instância ou por órgão colegiado (ADC 29 e 30 e ADI
4578), o que viria a ser um impeditivo jurídico para a participação
do ex-presidente Lula no processo eleitoral de 2018;
tribunal
decidiu proibir doações privadas, o que levou o Congresso Nacional
a ampliar recursos públicos transferido para partidos 2015 (ADI
4650/2015);
e o
Supremo entrou na crise política do governo da ex-presidente Dilma,
que culminou no impedimento da posse do ex-presidente Lula como
ministro-chefe do governo Dilma por decisão monocrática, em medida
cautela do ministro Gilmar Mendes (MS/MC 34070) - em oposição à
posterior autorização da posse do Moreira Franco (MS/MC 34609)
como ministro do governo de Temer em circunstâncias semelhantes.
De
toda a intensa atuação do STF durante o período do governo de
Dilma vale destacar seu papel no seio do impeachment
autorizado por Eduardo Cunha em 02/12/2015. Assim como no caso
Collor, o Supremo foi imediatamente convocado a interferir no
processo (ADPF 378). E da mesma maneira como naquele caso, se limitou
a garantir que o impeachment transcorresse nos limites do devido
processo legal. Particularmente, não enfrentou a questão da
presença ou não de justa causa – ou seja – do crime de
responsabilidade fiscal pelas então chamadas – na falta de
designativo legal específico – “pedaladas fiscais”. Assim, por
mais que se aponte a interferência do STF no jogo político, há que
se destacar que no momento crucial aquela Corte resguardou-se,
adotando o entendimento de que “a competência para determinar a
ocorrência do crime de responsabilidade foi conferida exclusivamente
ao Senado Federal pela Constituição Federal de 1988” (VIEIRA,
2018, p. 203).
No
período
pós Impeachment – Governo Temer
– o Supremo não arrefeceu sua atuação. Em medida descrita pelos
próprios ministros como excepcional (VIEIRA, 2018, p. 204) o STF
determinou a suspensão do deputado Eduardo Cunha da presidência da
câmara e mandato (AC 4070/2016). Tal medida seria repetida contra os
Senadores Aécio Neves e Renan Calheiros, envolvidos em investigações
criminais. No entanto, feito inédito, o Senador Renan Calheiros se
negou a tomar conhecimento da ordem judicial emitida pelo Ministro
Marco Aurélio.
Outro
capítulo à parte que seria marco da supremocracia foi a decisão de
prisão em segunda instância com impacto na prisão e
inelegibilidade do ex-presidente Lula. O caso repercutiu em primeiro
lugar dada a variação ocorrida no entendimento do STF em um curto
espaço de tempo trazendo impactos direitos sobre a configuração do
tabuleiro do pleito eleitoral de 2018. Decididamente um xeque-mate na
principal peça do jogo e que acabou deixando uma coluna aberta para
os acontecimentos que iriam se descortinar em seguida.
Vale
notar que a CRFB/1988 assegurou no rol de direitos fundamentais que
"ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado
de sentença penal condenatória". Quando chamado a interpretar
o dispositivo em 2009, o STF assentou que era inconstitucional a
execução antecipada da pena. A época, por 6 votos a 5, o plenário
concedeu o HC 84.078 para permitir a um condenado pelo TJ/MG que
recorresse em liberdade. Já em 2016
-
também em HC (126.292) - e com o placar (7x4) - mas com composição
diversa, o plenário alterou a jurisprudência afirmando ser possível
a prisão após 2ª instância. Na ocasião, a guinada
jurisprudencial foi capitaneada pelo falecido ministro Teori Zavascki
– o que levaria à prisão do ex-presidente Lula. Poucos meses
depois (07/11/2019) pelo placar de 6 a 5, os ministros decidiram que
não é possível a execução da pena depois de decisão
condenatória confirmada em 2ª instância, retomando assim aquela
jurisprudência que havia sido formada em 2009.
Importante
destacar com Santa
Brígida & Verbicaro (2020) que
a agenda econômica do Governo Temer colocou em prática uma política
econômica contrária ao votado pela maioria nas urnas - com cortes
nos gastos públicos e enfraquecimento de garantias trabalhistas.
Vieira (2008) pondera que é difícil julgar se o fenômeno da
supremocracia é positivo ou negativo. Entretanto é fato que muitas
destas garantias traduzem o próprio núcleo da ideia de dignidade da
pessoa humana e a imutabilidade dos direitos humanos fundamentais.
Portanto, seria de se esperar que, como guardião da Constituição,
a atuação do STF vise a manutenção e a defesa de tais direitos.
Ou seja, um STF mais e mais atuante na medida em que as garantias
constitucionais fossem colocadas em xeque. Isso seria sinal de
vitalidade e não de fraqueza democrática. Contudo, perdura a aporia
entre o principio da maioria e o fato de que a Suprema Corte não a
representa e, daí que, atravessa crise de legitimidade, notadamente
perante a opinião pública.
É
neste sentido contramajoritário (BICKEL, 1986), que o STF também
tem atraído detratores que ancoram posições conservadoras nos
últimos processos eleitorais majoritários. No julgamento conjunto
do Mandado de Injunção 4733 e da Ação Direta de
Inconstitucionalidade por Omissão 26, o STF reconheceu, por força
do princípio da isonomia e da proibição de discriminação
presentes no texto constitucional, a equiparação da homofobia e da
transfobia ao crime de racismo previsto na Lei 7716/89. Diante do
silêncio eloquente do Congresso Nacional para a criação de lei
específica, estendeu ao grupo LGBTQl+ a proteção do Direito. Se
negros e pardos contam com a proteção constitucional e legal em
face do racismo estrutural presente na realidade brasileira, assim
também deveria ser, entendeu o STF, com aqueles que sofrem
diuturnamente a prática de agressões violentas em razão de seu
gênero e orientação sexual.
Seguindo
essa linha, o STF foi provocado a se pronunciar sobre a proteção
dos povos indígenas em razão do contágio pela COVID-19, bem como
pela invasão de suas terras por grupos garimpeiros. Na ADPF 739, o
STF vem conduzindo um processo estrutural destinado a coordenar os
esforços da Administração Pública com as necessidades daqueles
povos, a fim de resolver a grave situação de violação de direitos
humanos a que estão submetidos. Em que pese a experiência esteja se
revelando de baixa produtividade, já que o Governo não se mostrou
disposto a contribuir, no momento da definição dos grupos
prioritários para a vacinação, a ordem judicial emanada neste
processo foi observada.
Contudo,
embates particularmente enfáticos tem sido assumidos pelo STF nos
anos do Governo
Bolsonaro (2018-...).
Esse enfrentamento declarado tem se manifestado com maior intensidade
desde que o tribunal passou a adotar decisões dirigidas à contenção
das estratégias de erosão democrática e constitucional praticadas
pelo governo. Dentre elas, Meyer (2020) destaca o Inquérito das Fake
News (Inquérito 4781) destinado precisamente a investigar a produção
de notícias falsas e discurso de ódio contra o próprio STF e o
Legislativo.
Ainda
são dignas de nota (i) a liminar que impediu a nomeação para a
Chefia da Polícia Civil de pessoa próxima ao presidente com o
declarado intuito de interferir no órgão a fim de proteger seus
filhos de investigações (Inquérito 4831); (ii) o julgamento da
ADPF 672 a fim de efetivar o princípio constitucional do federalismo
cooperativo no combate à pandemia de COVID-19, reconhecendo a
validade de medidas adotadas pelos estados e municípios diante da
inércia do governo federal; (iii) julgamento da ADPF 690 garantindo
a publicidade das informações referentes à pandemia, negando
validade a ato governamental que pretendia restringi-las; (iv)
liminar proferida na ADPF 669 para interromper a veiculação de
campanha publicitária do governo incentivando o povo a desobedecer
normas de isolamento social e retornar ao trabalho durante a
pandemia; (v) interpretação do artigo 142 da constituição federal
para negar a existência de um “poder moderador” atribuído às
forças armadas, impedindo-as de interferir nos demais poderes (MI
7311) (MEYER, 2020)..
Para
cada investida anti-democrática do governo, o STF foi provocado
pelos opositores políticos e respondeu prontamente.
Ademais,
em decisão que impactou diretamente a arena política brasileira o
STF invalidou todas as condenações sofridas pelo ex-presidente Luiz
Inácio Lula da Silva em decisão confirmada pelo Plenário. Depois
de muita discussão sobre o tema da prisão em segunda instância, um
de seus processos-chave recebeu um desfecho inédito: o
reconhecimento da suspeição do então juiz Sérgio Moro e a
anulação dos processos. Ainda que a posição adotada naquele
momento (2021) tenha seguido critérios jurídicos, como apontou o
relator Min. Fachin em entrevista à imprensa (MARQUES, 2022), é
inegável que ela modifica o quadro político-eleitoral do país,
possibilitando a candidatura do ex-presidente para o pleito de 2022.
As
decisões adotadas pelo tribunal, portanto, certamente interferem nos
planos políticos do governo e seus opositores, gerando uma disputa
institucional que já havia sido chamada por Vieira (2018) como
“Batalha dos Poderes”.
CONFIGURAÇÃO
DO TABULEIRO
Utilizando
a metáfora do jogo do xadrez, até agora comentamos alguns dos
lances que levaram o STF a uma posição privilegiada. Ao centro do
tabuleiro do jogo político. Mas não é só isso. Há também
elementos relacionados à própria configuração do tabuleiro e dos
players
que ajuda a entender como
o STF chegou a tal posição. Basicamente podemos identificar:
1)
uma hipertrofia do mercado (VIEIRA, 2008; BOAVENTURA SANTOS;1999) que
confia mais no judiciário do que no parlamento ou (executivo) e seus
arroubos populistas. 2) retração do sistema representativo e crise
democracia em favor dos guardiões – guardiania – o que é
paradoxo: porque quanto mais poder for legado aos guardiões que
constituem uma minoria, haverá menos democracia; 3) efeito de
constituições rígidas que desconfiam do legislativo e legam ao STF
a guarda da democracia.
Deve-se
sublinhar que a hiper constitucionalização da vida contemporânea,
no entanto, é consequência da desconfiança na democracia e não a
sua causa. Outro ponto é que as constituições, em geral, buscam
demarcar as diferenças entre o regime deposto e aquele por elas
arquitetado. Ou seja, o propósito do legislador constituinte foi o
de varrer os traumas históricos causados por regimes
antidemocráticos. Desta forma, no afã de blindar os arroubos
autoritários, e com uma certa desconfiança do legislador futuro,
tratou-se de relacionar temas cuja alteração, no futuro, demandaria
quórum privilegiado para alterar, ou seja, via Emenda
Constitucional. Assim, o legislador constituinte premido pelas
circunstâncias históricas do passado buscou imunizar o novo sistema
contra as vicissitudes do regime precedente. Esta lógica também
esteve presente nas transições democráticas portuguesa, de 1976,
sul-africana, de 1996, argentina, de 1994, peruana, de 1993, ou mesmo
indiana, de1950, elaborada no contexto do processo de descolonização.
Até
mesmo no atual processo constituinte chileno, como reação tardia,
dentro das condições históricas do Chile (GONZALEZ, 2020), à
ditadura de Pinochet. Vale lembrar que a Constituição Chilena
anterior era aquela promulgada unilateralmente por Pinochet em 1980
com algumas reformas (principalmente as havidas em 1989 e 2005).
Esses
processos podem ser identificados pelo movimento do
constitucionalismo transformador (KLARE, 1996), em que a Constituição
assume um compromisso de transformar as estruturas sociais que
geraram exclusão política e social durante os anos de governos
autoritários, a fim de resgatar a dignidade e a cidadania. Para
tanto, como ficou característico em todas essas constituições, a
independência da Corte Constitucional passou a ser um elemento chave
para a realização de direitos humanos. Precisamente em virtude
dessa função assumida pelas cortes, para além de outros elementos
da conjuntura política, seu empoderamento passou influenciar ou até
mesmo a pautar as discussões políticas (“mega-política”) em um
fenômeno identificado por Hirschl (2008) como “juristocracia”.
Mas
como se materializou a supremocracia a partir da CRFB/1988? Para
compreendê-lo uma dupla mirada é necessária. Primeiro para o
próprio processo constituinte brasileiro como mencionamos acima e em
segundo lugar, é preciso compreender como e porque o legislador ao
longo dos anos estendeu os poderes do STF.
Por
escolha do legislador constituinte a CRFB/1988 atribui funções de
tribunal constitucional, órgão de cúpula do poder judiciário e
foro especializado à Suprema Corte brasileira. Tudo isso justamente
no contexto de uma constituição normativamente ambiciosa.
Mas
ele teve seu papel político ainda mais reforçado pelas Emendas
Constitucionais 03/93 e 45/04, bem como pelas Leis nº 9.868/99 e nº
9.882/99. O STF, por decisão do poder legislativo, é importante que
se sublinhe, tornou-se assim uma instituição singular em termos
comparativos (VIEIRA, 2008). O papel de protagonismo por ele exercido
não tem par seja na sua própria história, seja na história de
cortes existentes em outras democracias. Se desde sua criação em
1891 o Supremo sempre teve dificuldade em impor suas decisões aos
demais órgãos judicantes, esse quadro também viria a mudar em 2005
com a introdução da súmula vinculante e a consequente
possibilidade de unificação da jurisprudência dos tribunais
inferiores. Todo poder ao STF.
A
partir daí - em adição ao histórico de decisões nevrálgicas
ocorridas que relatamos acima -, pode-se falar, de acordo com Vieira
(2008, p. 445) em supremocracia em dois sentidos: a) como um órgão
supremo capaz de impor decisões judiciário abaixo; e b) com a
expansão da autoridade do Supremo em detrimento demais poderes.
Os
dados ilustram bem os efeitos dessa configuração na disparidade
temporal no número de processos recebidos pelo STF. Em primeiro
lugar, note-se o lento incremento nos números de 1940 até 1990.
Posteriormente, com o advento da CRFB/1988, há um incremento
exponencial no número de processos. E com a entrada em vigor da EC
45/2004, nitidamente, o número de processos novos cai drasticamente.
Porém, o número de processos recebidos entra em uma curva
ascendente até 2017, voltando a cair nos últimos anos.
Fonte:
Autores com base em dados de Vieira (2008) – 1940 até 2007 e
relatório estatístico do STF.
Qual
a origem destes processos? E como ocorreu este salto quantitativo no
número de processos? Tal se explica exatamente pelo acúmulo de
competências relegadas ao STF, tal como expresso no art. 102 da
CRFB/88: i) Tribunal
Constitucional,
ii) Foro
Judicial especializado
e iii) Tribunal
de recursos de última instância.
Como
tribunal constitucional ao Supremo cabe a análise, quando provocado,
da constitucionalidade dos atos legislativos, não somente da União,
mas também dos Estados.
Destaque-se ainda a possibilidade de que mesmo Emendas
Constitucionais possam ser objeto de controle por parte do STF sempre
que atentem contra cláusulas pétreas (art. 60, § 4º CRFB/88). O
Legislador ainda legou ao STF o controle de constitucionalidade por
omissão legislativa (Mandado Injunção e Ação Direta de
Inconstitucionalidade por Omissão) e conferiu um amplo rol
legitimados (Art. 103, CRFB/88)
onde antes apenas havia o Procurador-Geral da República. Como este
rol inclui Partidos e Governadores, muitas vezes tais atores utilizam
o STF como um instrumento de veto político.
No
âmbito do controle de constitucionalidade, especialmente nos últimos
anos, o STF tem sido o palco de disputas políticas tendo em vista
que os opositores do governo provocam o tribunal para invalidar
normas e medidas adotadas pelo governo, ou manobras no Congresso para
blindar suas práticas. Um dos exemplos foi a provocação do STF
para que fosse “desobstruída” a instauração da Comissão
Parlamentar de Inquérito (CPI) no Senado para investigar as condutas
governamentais (ou sua omissão) durante a Pandemia de COVID-19. Em
decisão liminar inédita, determinou ao Presidente do Senado o
processamento da CPI que já tinha preenchido todos os requisitos
constitucionais e estava sendo travada arbitrariamente (MS 37760,
julgado em 14 de abril de 2021).
Atuando
como foro judicial especializado o STF “é compelido a julgar
originariamente processos de extradição, homologação de sentenças
estrangeira, um enorme número de habeas
corpus,
mandados de segurança e outras ações cíveis em face do status
do réu” (VIERA, 2008, p. 449). Esta particularidade traz não
somente um grande volume adicional de processos como causas de
primeira instância que demandam um grau de análise deveras
minudente e aprofundado. Por exemplo, no ápice do mensalão em 2008
mais de 250 parlamentares aguardavam julgamento do Supremo.
Finalmente,
o STF é ainda um tribunal de recursos de última instância, o que
se explica pela coexistência de um sistema difuso (RE, AI, ARE e
ações originárias) e concentrado (ADI, ADC, ADPF, ADO) de controle
de constitucionalidade no Brasil. Então, além da competência para
julgar em abstrato a constitucionalidade dos atos normativos,
concretamente – em um país com uma capilaridade continental – há
a possibilidade de provocação do STF nas vias recursais cabíveis
via controle difuso ou incidental.
O
efeito é óbvio: centenas de milhares de processos chegam aos
balcões do STF a cada ano. Para se ter uma ideia deste efeito basta
dizer que no ano de 2021, por exemplo o STF, recebeu um total de
76.806 novos processos. Destes, uma minoria – apenas 572 –
referiam-se ao controle concentrado de constitucionalidade (405 ADI,
154 ADPF, 9 ADO e 4 ADC). Recursos Criminais somaram 14750 e demais
ações originárias 7.957 novos processos. A via recursal respondeu
pela maioria dos processos, um total de 53.527 processos (42279 ARE,
11.136 RE e 126 AI).
Vieira (2008) contabilizou que de 1988 até 2008 foram mais de um
milhão de recursos extraordinários e agravos de instrumento
apreciados por onze ministros, o que significou 95,10% dos casos
distribuídos e 94,13% dos casos julgados pelo tribunal no período.
A
QUESTÃO DA GUARDIANIA
Os
números do STF são notáveis, mas, segundo Marcos Paulo Veríssimo
(2008) esse dado não significa que a corte efetivamente aprecie
tantos casos. Ele desenvolveu um estudo que demonstrou que a
somatória das decisões tomadas pelas duas turmas, mais as decisões
proferidas em plenário pouco ultrapassam a 10% do total de casos
julgados pelo supremo, sendo que os casos julgados pelo plenário do
tribunal, em 2006, consistem em apenas 0,5% do total de casos
julgados, ou seja: 565 casos.
Destaca-se
assim que STF vem utilizando um alto grau de discricionariedade para
decidir, por exemplo, o que vai para os distintos colegiados e o que
pode ser decidido de maneira monocrática. Sabe-se que uma das
manifestações mais importantes do poder incide sobre o controle da
agenda daquilo que é pautado – seja no campo das discussões na
esfera pública ou no campo, que é o caso em análise, do
Judiciário. Desta feita, este poder tem um enorme significado; e
este poder se encontra nas mãos de cada um dos ministros, decidindo
monocraticamente. Vieira (2008) conclui não somente pela existência
de uma supremocracia, mas de um regime que concentra poderes nos
ministros do STF de maneira tal, que torna discutível os benefícios
da intervenção do judiciário para a democracia. Tal a razão do
mal estar tantas vezes experimentado com decisões nevrálgicas
tomadas pela Suprema Corte.
A
preocupação do autor não é isolada. Robert Dahl (2012) em
“Democracia e seus críticos” chamara de Guardiania aquele regime
cujas decisões se concentram nas mãos de poucos indivíduos,
ademais, justificando-se tal domínio em características virtuosas
dos dominantes. Este seria o caso do domínio exercido pela Suprema
Corte em momentos de desequilíbrio entre as três esferas clássicas
de poder (MONTESQUIEU). Dahl aduz que sob inspiração da sofocracia,
isto é, o governo dos mais sábios, imaginada por Platão em a
República, alguns dos críticos à democracia propõem modelos
baseados na ideia de que o governo do Estado deveria ser legado à
indivíduos mais preparados a quem caberia a verdadeira “guarda”
da sociedade.
Até
que pondo um modelo desta natureza seria possível, viável ou mesmo
desejável não é objeto deste breve ensaio. Contudo, há que se
refletir com Dahl sobre alguns dos problemas iminentes. Como garantir
que tais indivíduos, uma vez escolhidos, garantam a guarda da
sociedade e que venham a se guiar por ideais virtuosos como o
interesse público é apenas o mais óbvio deles.
Além
disso, se o caso for mesmo o de uma Guardiania, neste caso talvez a
sociedade devesse debater o processo de escolha de tais ministros.
Comparativamente vejamos alguns casos. Serrano (2015) lembra que nos
EUA é o presidente que indica e o senado aprova ou não. Não há
qualquer requisito formal para o indicado. Seja com relação à
idade, formação ou requisito formal.
Também inexistem limites para a permanência no cargo. A sociedade,
por sua vez, pode e exerce lobbies intervindo efetivamente nesse
processo. A comunidade jurídica, grupos de interesse, a ABA American
Bar Association
– a correspondente à OAB brasileira e os próprios magistrados da
Suprema Corte pressionam. Baum (1987) apresenta dois casos em que
ficou nítida a maneira como essa pressão se efetivou:
O
presidente Nixon que governou de 1969 a 1974 indicou dois candidatos
considerados qualificados pela ABA em 1969 e ambos foram rejeitados
pelo Senado - Clement Haynsworth Jr., em 21/11/1969, por 55x45 votos,
e George Harrold Carswell, em 08/04/1970, por 51x45 votos. De acordo
com Serrano (2015, p. 63) este último, Carswell, recebeu severas
críticas feitas por conceituados advogados, um deles Louis Pollack,
que considerou na ocasião que Carswell “apresenta credenciais mais
escassas do que qualquer nomeado para a suprema corte apresentou
neste século” (SERRANO, 2015, p. 67). O caso ilustra que alguns
grupos, como aqueles de defesa dos interesses de minorias, fazem
lobby aberto, assim como organizações que se posicionam a favor ou
contra determinados temas de interesse da sociedade, tais como o
aborto, uniões homoafetivas, compra e posse de armas, etc. Ou seja,
o processo de escolha é eminentemente permeável aos diferentes
interesses privados, comerciais, econômicos, trabalhistas, os quais
podem exercer pressão na forma de lobbies ou de maneira mais
indireta direcionados aos atores do processo ou aos partidos
políticos cuja representação se dá no Senado.
Já
o presidente Hoover que governou os EUA de 1929 a 1933 indicara o
candidato John Parker, em razão de suas posições conservadoras em
matéria trabalhista e em questões raciais. De acordo com Serrano
(2015) Parker recebeu a oposição de organizações civis de defesa
dos trabalhadores e dos negros, sendo razoável supor que
influenciaram na rejeição, por dois votos, que recebeu, do mesmo
modo, por razões similares, as mesmas organizações se posicionaram
contra aquelas duas indicações feitas pelo presidente Nixon, que
foram rejeitadas pelo congresso
De
acordo com a estudos comparados efetuados por Serrano para sua Tese
de Doutorado (2015) a indicação pelo presidente condicionada à
ratificação do Senado também ocorre na Argentina que possui desde
2006 cinco ministros – já foram nove – os candidatos são
submetidos a exposição pública pelo prazo de três meses.
Na
Colômbia,
a
Corte Constitucional é formada por nove membros nomeados pelo senado
dentre lista tríplice para um mandato oito anos. No país são
requisitos para a candidatura: ser advogado, não ter sido condenado
por sentença judicial a pena privativa de liberdade, salvo em crimes
culposos, ter exercido cargo, por pelo menos dez anos, no judiciário,
ministério público, advocacia ou cátedra de ensino jurídico.
Assim, a lista conta com ampla participação das Universidades, além
de outras instituições de defesa dos direitos dos cidadãos, e não
passa pela Presidência da República (COLÔMBIA, 1991, artigos 172,
232).
A
Bolívia, segundo a Constituição de 2009, possui um Tribunal
Constitucional Plurinacional formado por sete magistrados
eleitos
diretamente pelo povo, segundo “criterios
de plurinacionalidad, con representación del sistema ordinario y
del sistema indígena originario campesino”
(BOLIVIA, 2009, artigo 197, 198 e 199).
São
requisitos para a investidura: especialização ou experiência
comprovada de pelo menos oito anos nas disciplinas de direito
constitucional, administrativo ou direitos humanos. Há cota de três
vagas para mulheres e de duas vagas para indígenas ou camponeses. As
duas vagas restantes são preenchidas livremente. O mandato é
limitado a seis anos sendo vedada a reeleição.
No
México, a Suprema Corte de Justiça da Nação tinha até 1994 vinte
e seis ministros. Com a reforma constitucional de 2019 passou a uma
composição de apenas onze com mandato de quinze anos, proibida a
reeleição (MÉXICO, 1917, artigo 94). Quanto à investidura, o
presidente da república encaminha lista ao senado, que, pelo voto de
2/3 dos membros presentes à sessão, escolherá aquele que será
nomeado ministro, no prazo improrrogável de trinta dias. Passado o
prazo, o presidente nomeará qualquer um dos nomes da lista. Caso o
senado rejeite todos os nomes de uma lista, o presidente enviará uma
segunda lista. A título de garantia da independência jurisdicional,
interessante observar que o aspirante a Ministro não pode ter sido
Secretário de Estado, Procurador Geral da República, senador,
deputado federal, nem titular do Poder Executivo de alguma entidade
federativa, durante o ano anterior ao dia de sua nomeação (artigo
95, VI).
Como
pode-se observar neste breve extrato comparativo a partir dos estudos
de Serrano (2015) e das constituições apontadas, os critérios de
escolha para os juízes que compõe a Corte Constitucional são mais
abertos justamente naqueles países da América Latina que são
costumeiramente alvo de críticas dado as suas supostas limitações
democráticas. Digno de nota também é a constatação de que dentre
os projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional
vários deles propõe critérios semelhantes, adotando limitação do
mandato dos ministros e processos de escolha mais permeáveis.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
O
escopo deste modesto trabalho foi o de contextualizar os eventos e a
estrutura jurídico política que trouxe o Supremo Tribunal Federal
ao centro do tabuleiro do xadrez político brasileiro. De fato, o STF
foi o pivô de acontecimentos de maior importância para a nação ao
colocar em xeque peças importantes do tabuleiro eleitoral. Assim foi
durante o Mensalão, depois, durante a Lava Jato, e pontualmente
interferindo no processo eleitoral de 2018 ao colocar fora de jogo o
candidato que liderava todas as pesquisas ao decidir pela
possibilidade da prisão a partir da condenação em segunda
instância do ex-presidente Lula.
Entretanto,
o que é importante notar, sobretudo, é o contexto em que se deu a
hipertrofia do Judiciário. Há vários elementos que não foram
tratados aqui, tais como o crescente descrédito do parlamento e do
político profissional notadamente em casos de inércia na efetivação
de direitos fundamentais e também em escândalos de corrupção. Um
descrédito que, para repetir um jargão comum no meio político,
criminaliza a atividade política, tornando-a abjeta, desprezível.
Atraindo para a arena das decisões estatais ora o judiciário, ora o
corpo técnico burocrático, ora um decisionismo refém dos reclamos
da imprensa.
Portanto,
a centralidade do judiciário, e do STF, é também, produto de um
tipo de racionalidade que habita o imaginário coletivo. É resultado
das representações sociais ambivalentes, confusas, desorientadas
que permeiam a sociedade como um todo.
Isso
reveste de importância o trabalho aqui desenvolvido. Por tentar
trazer alguma luz para este estado de coisas. Ao tentar fazê-lo
descortinamos primeiro alguns dos eventos históricos que marcaram o
papel da Suprema Corte nos últimos anos. Frisando que a partir da
Constituinte que levaria a CRFB/1988 houve um esforço em dotar o STF
de um poder capaz de conter arroubos autoritários, tais como aqueles
que se precipitaram a partir do Golpe de 1964. Para isso construiu-se
um welfare
state,
com um sistema de salvaguardas constitucionais e um guardião à sua
altura. Os eventos que se descortinam daí até os dias atuais
guardam reflexos desse contexto.
Daí
que se pode compreender o mal-estar causado à democracia quando o
afã protetoral do STF se insurge em face da vontade majoritária.
Como ocorreu nas decisões envolvendo o tema do aborto, união
homoafetiva, liberdade de expressão e tantas outras em que foi
chamado a garantir a irrevogabilidade de garantias fundamentais da
pessoa humana. Não seria este o espirito da vontade geral em
Rousseau?
Necessário
dizer que esse mal-estar está também ligado aos grupos dominantes
que discordam das pautas progressistas e da inclusao social
viabilizada pelo STF. A legitimidade democrática da corte
constitucional pode ser, também, pensada a partir dos sujeitos que
levam para esta esfera suas demandas pleiteando a proteção dos
direitos. As decisões ali mencionadas tocam, muitas das vezes, a
grupos vulneráveis, cuja ultimo escudo de defesa é o judiciário.
A
despeito deste mal-estar, cabe lembrar que a escolha dos ministros do
STF no Brasil, recai em última análise sobre representantes eleitos
diretamente pelo povo. E da mesma forma que em outros países o
processo de escolha reflete o momento político do país e as
inflexões de força exercidas direta ou indiretamente pela
sociedade.
Basta lembrar o período de tempo que o presidente Bolsonaro precisou
para nomear seu último indicado André Mendonça – o ministro
“terrivelmente evangélico” – como o definiu o próprio
presidente em uma de suas manifestações públicas.
Ao
final é preciso ver que o xadrez deve continuar a ser jogado nas
quadras do tabuleiro. Por mais que possa gerar estranhamentos e
desconforto quando peças cruciais são capturadas, de um lado ou de
outro, é preciso lembrar que, ao fim e ao cabo, na democracia, assim
como no xadrez, as peças sempre voltam aos seus lugares e uma nova
rodada sempre será possível. Fora das regras do jogo só nos resta
a barbárie, e a força bruta como asseverou Hannah Arendt. Optemos
pelo diálogo, optemos pela democracia e que joguemos o seu jogo.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
BAUM.
Lawrence. A
Suprema Corte Americana:
uma análise da mais notória e respeitada instituição judiciária
do mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Forense, 1987. tradução
Élcio Cerqueira. Título original: The Supreme Court. p. 53-107
BARBOSA,
Cláudia Maria. A legitimidade do exercício da jurisdição
constitucional no contexto da judicialização da política. In:
Vicente de Paulo Barretto; Francisco Carlos Duarte; Germano Schwartz.
(Org.).
Direito
da Sociedade Policontextural,
v. 1, Curitiba: Appris, 2013, p. 171-194.
BICKEL,
Alexander M. The
Last Dangerous Branch:
The Supreme Court at the Bar of Politics. Yale: Yale University
Press, 1986.
BRIGIDA,
YASMIM SALGADO SANTA; VERBICARO, LOIANE PRADO. The
battle of narratives between the powers: party hyperfragmentation,
judicialization of politics and supremocracy in the Brazilian
political-institutional system.
Rev. Investig. Const., Curitiba , v. 7, n. 1, p. 137-159, Apr.
2020 . Available from
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2359-56392020000100137&lng=en&nrm=iso>.
access on 22 Mar. 2021.
Epub Nov 30, 2020.
BOLIVIA.
Constitución Política
del Estado – CPE. 7 de Febrero
de 2009. Disponível
em: https://www.oas.org/dil/esp/constitucion_bolivia.pdf.
Acesso em: 12 abr. 2022.
COLOMBIA.
Constitución Política
de la República de Colombia 1991. Disponível
em:
https://siteal.iiep.unesco.org/sites/default/files/sit_accion_files/siteal_colombia_2000.pdf.
Acesso em: 12 abr. 2022.
DAHL,
Robert. A
democracia e seus críticos.
Tradução Patrícia de Freitas Ribeiro; Revisão da tradução
Aníbal Mari. São Paulo. Ed. WMF Martins Fontes, 2012.
GARGARELLA,
Roberto.
La revisión judicial en democracias defectuosas.
Revista
Brasileira de Políticas Públicas, Brasília,
v. 9, n. 2 p.153-169, 2019.
GONZALEZ.
Eric Eduardo Palma. NOTAS SOBRE O PROCESSO CONSTITUINTE CHILENO
2019-2020. Revista
Culturas Jurídicas,
Vol. 7, Núm. 16, jan./abr., 2020
HIRSCHL,
Ran. The Judcialization of Mega politics and the Rise of Political
Courts. Annual
Review Political Science, v.
11, 2008. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=1138008.
Acesso em: 12 abr. 2022.
LEVITSKY,
Steve; ZIBLATT, Daniel. Como
as democracias morrem. 1º ed. Rio
de Janeiro: Zahar, 2018.
MARQUES,
José. Fachin
promete estender mão a Bolsonaro, mas diz que não vai 'tolerar os
intolerantes'.
FOLHA DE S. PAULO, 17 de fevereiro de 2022. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/02/fachin-promete-estender-mao-a-bolsonaro-mas-diz-que-nao-vai-tolerar-os-intolerantes.shtml.
Acesso em: 12 abr. 2022.
MÉXICO.
Constitución
Política de los Estados Unidos Mexicanos, promulgada
em 5 de fevereiro de 1917. Última reforma publicada no Diário
Oficial da Federação de 28 de maio de 2021. Disponível em:
https://www.gob.mx/cms/uploads/attachment/file/646405/CPEUM_28-05-21.pdf.
Acesso
em: 12 fev. 2022.
MEYER,
Emilio Neder. Judicial Responses to Bolsonarism: The Leading Role of
the Federal Supreme Court. Verfassungsblog,
2020. Disponível em:
<https://www.academia.edu/43366502/Judicial_Responses_to_Bolsonarism_The_Leading_Role_of_the_Federal_Supreme_Court_Verfassungsblog/>.
Acesso
em: 20 out. 2021.
RUSSEL,
Peter H.; O’BRIEN, David M. Toward
a General Theory of Judicial Independence.
In: Judicial
Independence in the Age of Democracy:
Critical Perspectives from around the World.
Virginia,
USA: University Press, 2001, p.1-25.
SARLET,
Ingo W.; MITIDIERO, Daniel; MARINONI, Luiz G. CURSO
DE DIREITO CONSTITUCIONAL:
Editora Saraiva, 2021. 9786555593402. Disponível em:
https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786555593402/.
Acesso em: 08 mar. 2022.
SANTISO,
Carlos. Economic
Reform and Judicial Governance in Brazil: balancing independence with
accountability.
In:
Congreso
Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la
Administración Pública,
8, Panamá, 28-31 Oct. 2003.
SANTOS,
Boaventura de Souza. Pela
mão de Alice. O Social e o Político na Pós Modernidade.
7. Ed. Afrontamento: Porto. 1999.
SERRANO,
Paulo Marcelo de Miranda. Caminhos
para a corte: estado e sociedade na escolha dos ministros do Supremo
Tribunal Federal.
Orientador: Eduardo de Vasconcelos Raposo. Tese (doutorado) –
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de
Ciências Sociais, – 2015.
SERRANO,
Paulo Marcelo de Miranda. A
elite governante e a escolha dos ministros do STF.
Perspectivas, São Paulo, v. 53, p. 33-57, jan./jun. 2019
VERÍSSIMO,
Marcos Paulo. A Constituição de 1988, vinte anos depois: suprema
corte e ‘ativismo judicial à brasileira’. Revista
DIREITO GV,
volume 4, número 2, jul.-dez. 2008.
VIEIRA,
Oscar Vilhena. Supremocracia.
Revista Direito GV [online].
2008, v. 4, n. 2 [Acessado 24 Fevereiro 2022] , pp. 441-463.
Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S1808-24322008000200005>.
Epub 04 Nov 2009. ISSN 2317-6172.
https://doi.org/10.1590/S1808-24322008000200005.
_______;
A
Batalha dos Poderes:
da Transição Democrática ao mal-estar constitucional. 1.ed. São
Paulo. Companhia das Letras. 2018.