A prisão em si é paradoxal, é uma estrutura corroída. Todo
o sistema prisional, de saúde, ou de infraestrutura vai ser sempre uma medida
paliativa. Nem nos EUA, nem na Inglaterra, nem na Holanda, em nenhum lugar o
sistema repressivo funciona como se idealiza, senão, como todos sabem tem
efeito inverso. (Valois).
Se historicamente os modelos repressivos são caracterizados
pela extensão do poder de punir por meio de políticas maximalistas, o processo
de descriminalização faculta visualizar os primeiros passos à obstaculizar os
nefastos efeitos decorrentes da expansão da punitividade.
Procurar responder
problemas difíceis com respostas simplificadas, evidente, não é a melhor saída,
porém, a facilidade de inserção do discurso repressivo das drogas no cotidiano,
com o desenvolvimento de cultura beligerante - de combate às drogas - é
resposta fácil, conveniente, cômoda para maior parte da sociedade, qual não é
alcançada pelas agencias punitivas, e de fácil aprovação social, por ser
intrínseca ao ser humano. Assim, no cálculo utilitário entre ônus e bônus, os
direitos individuais são apresentados, conforme afirma Salo de Carvalho, como ordinária mercadoria de troca passível
de limitação, de obstaculização ou restrição, por mais ilusório que seja o
produto de contraprestação (segurança).
Ao analisar as
políticas de intolerância (ou tolerância zero) adotadas pelas obsessões
legislativas em coibir o prazer excessivo dos outros, Hitchens ganha voz de
Zizec, que percebe espectro rondando o mundo ocidental e se refere às campanhas
contra o fumo: o espectro do cigarro. Observa a disseminação de áreas de
“não-fumantes”, como busca do ideal ascético de pureza, abstinência e tédio, do
qual o sacrifício de liberdades públicas parece ser o preço a ser pago pelo
consumo pasteurizado de segurança.
“Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor
sabe: pão ou pães, é questão de opiniães”[3]
. Uma das benesses do direito é a diversidade de correntes teóricas, que são de
livre discussão, desta forma o que está em debate já não é mais discurso
tendencioso de direita ou esquerda e sim a salvaguarda de vidas humanas, o
documentário “quebrando o tabu” é exemplo disso, com o ex-presidente do Brasil
Fernando Henrique Cardoso, bem como, Jimmy Carter e Bill Clinton ex-presidentes dos Estados
Unidos, entre outros, reconhecendo, que falharam em suas repressivas políticas
de drogas, FHC observa que cada país deve independentemente discutir “quebrar o
tabu” e encontrar seus próprios caminhos na sua política de drogas.
Contrapor os
modelos tradicionais (de guerra) aos alternativos (pluralistas) desde o enfoque
macrossociológico é o terreno
investigativo arrimado pela Criminologia Critica. Para tanto, encontramos em Gilles
Deleuze um modo figurativo de representar essa metamorfose de paradigma.
Parafraseando Deleuze quando entrevistado por sua ex-aluna Claire Parnet sobre
a Gauche em seu abecedário:
Poderíamos dizer: “a criminalização não
tem nada a ver com defesa do bem social. Se me pedissem para definir o que é ser contrario à criminalização ou
definir a descriminalização[4],
eu o faria de duas formas. Primeiro, é uma questão de percepção. A questão de
percepção é a seguinte: o que é ser pela criminalização? Ser favorável à
criminalização é como um endereço postal. Parte-se primeiro de si próprio,
depois vem a rua em que se está, depois a cidade, o país, os outros países e,
assim, cada vez mais longe. Começa-se por si mesmo e, na medida em que se é
privilegiado, em que se vive em um país rico, costuma-se pensar em como fazer
para que esta situação perdure. Sabe-se que há perigos, que isso não vai durar
e que é muita loucura. Como fazer para que isso dure? As pessoas pensam: ‘Os
chineses estão longe, mas como fazer para que a Europa dure ainda mais?’ E ser
desfavorável à criminalização é o contrário. É perceber... Dizem que os japoneses
percebem assim. Não vêem como nós. Percebem de outra forma. Primeiro, eles
percebem o contorno. Começam pelo mundo, depois, o continente... europeu, por
exemplo... depois a França, até chegarmos à Rue de Bizerte e a mim. É um
fenômeno de percepção. Primeiro, percebe-se o horizonte.”[5]
A transvaloração dos valores (Nietzsche) permite evidenciar
que em matéria de drogas as proibições esforçam-se em ocultar o outro que desestabiliza. E para
transcender a perversa moralização do cotidiano instituída pelo ideal de pureza
abstêmia é necessário postura que permita a alteridade.
A fala do filosofo esloveno Zizek é trazida por Salo de
Carvalho ao definir nova perspectiva moralizadora e antissecular, não seria
fundamental à ordem de culpabilização demonizar “(...) o gozo excessivo e perigoso do outro, personificado no fato de
acender ‘irresponsavelmente’ um cigarro e inalar com profundo prazer, em
contraste com os yuppies cliptonistas que o fazem sem tragar (ou fazer sexo sem
penetração ou comem sem gordura...)?[6]
Para o Frances Gilles Deleuze:
“(...) Beber, se drogar são atitudes bem sacrificais.
Oferece-se o corpo em sacrifício. Por quê? Porque há algo forte demais, que não
se poderia suportar sem o álcool. A questão não é suportar o álcool, é, talvez,
o que se acredita ver, sentir, pensar, e isso faz com que, para poder suportar,
para poder controlar o que se acredita ver, sentir, pensar, se precise de uma
ajuda: álcool, droga, etc. A fronteira é muito simples. Beber, se drogar, tudo
isso parece tornar quase possível algo forte demais, mesmo se se deve pagar
depois (...) percebe-se, cada vez mais, que quando se pensava que o álcool ou a
droga eram necessários, eles não são necessários. Talvez se deva passar por
isso, para perceber que tudo o que se pensou fazer graças a eles podia-se fazer
sem eles. Admiro muito a maneira como Michaux diz: agora, tornou-se, tudo isso
é... ele pára.(...)” 47
[1]
Guimarães Rosa. Grande Sertão: Veredas
[2] Em sentido oposto é apresentada a hipótese: é o de se pensar que essas campanhas para parar de consumir droga licita/ilicita reafirma o desejo… qualquer um que tenha lido Freud sabe que sem limite não há pecado…. E assim a roda gira, e os nefelibatas colocam combustível fossil na máquina, seja humano, seja da folha... (Alexandre Morais da Rosa).
[4] Importante não confundir descriminalização com “liberação”, o Estado pode e deve regular espaços públicos aos usuários, bem como, políticas públicas de entorpecentes, nesse sentido, os limites do exercício do direito de consumir devem ser fixados pelo Estado. As fronteiras entre o que pode ser limitado encontra-se nos Direitos Fundamentais, dos quais a Liberdade é o pressuposto (Kant). Discutir descriminalização não é correto, tem que se discutir por que se criminalizou.
[6]
ZIZEC, O Espectro do Cigarro, p. 04, apud, CARVALHO, Salo de. A Politica..., p.303.
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