João Novaes e Rodolfo Machado - OPERA MUNDI
Para Domenico Losurdo, crise provoca questionamentos nos fundamentos liberais, que poderão ser respondidos com ajuda da esquerda da América Latina
A crise econômica global iniciada em 2008 afetou não somente as economias das grandes potências ocidentais como também a crença desses países no liberalismo triunfante, que se iniciou após o fim da Guerra Fria. Essa é a opinião do filósofo, historiador e cientista político marxista Domenico Losurdo, que está no Brasil para uma série de atividades e palestras.
Nesta quarta-feira (02/10), ele concedeu entrevista a Opera Mundi em um hotel no centro de São Paulo, ocasião em que criticou as atitudes imperialistas belicistas dos EUA em contraponto à sua retórica em prol da liberdade e da democracia.
Ele também teceu severas críticas à social-democracia na Europa, a quem denominou de “esquerda imperial” e de possuir objetivos muito próximos aos partidos da direita tradicional, fazendo parte de um sistema “monopartidário competitivo”.
João Novaes/Opera Mundi
Para Losurdo, sistema político europeu vive atualmente em uma forma de "monopartidarismo competitivo"
Losurdo é professor da Universidade de Urbino, na Itália, e também de entidades como o Internationale Gesellschaft Hegel-Marx für Dialekttisches Denken e da Associação Marx-XXIesimo Secolo. Leia abaixo a primeira parte da entrevista. A segunda será publicada na sexta-feira (04/10).
Opera Mundi: Como podemos classificar o atual momento do liberalismo no século XXI? Ao mesmo tempo em que o mundo se encontra em uma crise econômica que já dura cinco anos, os liberais têm obtido sucesso no processo de desmantelamento do estado de bem-estar social.
Domenico Losurdo: O liberalismo está em crise. Você tem razão quando fala do desmantelamento do estado de bem-estar social na Europa. Mas isso ocorre porque estamos em um momento de fraqueza. No fim da II Guerra Mundial, foram o movimento operário e os movimentos populares que conquistaram o estado de bem-estar social, em um momento onde o comunismo contava com muita estima e exercia grande influência.
No decorrer da crise atual, esse ataque ao estado social está fazendo com que muitos comecem a colocar em questão o sistema capitalista liberal. Foram criadas uma série de ilusões após o fim da Guerra Fria, quando se falou até mesmo em “Fim da História” [pelo cientista político Francis Fukuyama] já que o liberalismo teria triunfado em nível planetário. Hoje isso é ridicularizado.
No contexto internacional vemos outros aspectos dessa crise: a decadência econômica do capitalismo ocidental corresponde à ascensão de países como a China. E a China não segue aos ditames do “consenso de Washington”, onde o mercado domina tudo e o estado não tem papel na economia. O que presenciamos agora é o "consenso de Pequim", que defende a intervenção do estado na economia.
OM: Sob o ponto de vista eleitoral, na Europa, Angela Merkel venceu mais uma vez. Já a social-democracia, a centro-esquerda, não soube aproveitar as vitórias nos últimos anos para realizar transformações em seus mandatos, enquanto os partidos de esquerda, salvo o grego Syriza, não apresentaram programas que chamaram atenção de parte considerável do eleitorado.
DL: De acordo. Na Europa ainda vemos uma desorganização de forças que podem ser alternativas ao sistema dominante. No momento, esse sistema político europeu é constituído pelo que chamo de monopartidarismo competitivo, uma categoria que elaborei em meu livro Democracia ou Bonapartismo. Ou seja, os partidos que certamente têm alguma competitividade são expressões da mesma classe social, da grande burguesia, exprimem mais ou menos a mesma ideologia e perseguem projetos políticos quase semelhantes.
Já os partidos populares são muito fracos, não podemos ignorar. Por outro lado, na opinião pública, o prestígio do capitalismo liberal se encontra muito enfraquecido. O problema é como transformar esse descontentamento que se desenvolve em projeto político concreto. E devo reconhecer que, infelizmente, a esquerda e os comunistas estão em grande atraso.
OM: Em suas palestras o sr. cita frequentemente John Locke, ao mesmo tempo pai do liberalismo e associado à African Company, que explorava a escravidão a seu tempo. Isso lembra, aqui no Brasil, o discurso da corrente liberal dominante que defende a tese do estado mínimo alegando que o poder público é obeso, incapaz de gerir uma sociedade cada dia mais complexa e dinâmica. Em resposta, são lembrados dos pedidos de ajuda dos bancos aos governos e de que grandes sucessos privados como Google e Apple hoje são o que são graças à ajuda governamental e à intervenção estatal. O senhor está de acordo que exista essa dicotomia constante no discurso liberal?
DL: A tese do estado mínimo é ideológica e uma auto apologia. Pegando o exemplo de um país como os Estados Unidos, o estado é mínimo na relação de direitos econômicos e sociais, na garantia dos direitos da saúde, por exemplo. Mas não se considerarmos o aparato policial e militar. Os dois aspectos devem ser considerados.
O presidente dos EUA, Barack Obama, tem o poder de decidir sozinho qual suspeito de terrorismo pode ser eliminado. Isso não tem a ver com garantias liberais. O presidente dos EUA tem até mesmo o poder de iniciar uma guerra, não precisa nem mesmo da aprovação do Congresso – ele o fez agora no caso da Síria, mas não tinha necessidade jurídica para isso.
Cito Immanuel Kant que fez a seguinte questão: “Como podemos saber se um líder é déspota ou não?” Quando um líder político diz que a guerra deve ser feita e esta acontece. É aquele que pode decidir sozinho ou quase sozinho o início de uma guerra. Se considerarmos essa afirmação correta, então devemos considerar Obama um déspota, segundo Kant. Portanto, o Estado não é tão mínimo quanto a propaganda apresenta.
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Sobre os direitos econômicos e sociais no estado mínimo, Marx já escreveu como este funcionava: a extrema polarização social e a presença de uma pequena minoria de luxo de um lado, com extrema pobreza de outro, devem ser tratadas como temas privados. Mas quando há crise econômica de grande envergadura, mesmo o estado liberal mínimo deixa de sê-lo porque procura socializar os prejuízos enquanto o lucro é privatizados. É assim que funciona o estado liberal.
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OM: O liberalismo também se arroga como um legítimo defensor da liberdade, em contraposição ao socialismo. Em sua opinião, como esse conceito e o da democracia devem ser desenvolvidos a partir de uma ótica de esquerda?
DL: Acredito que a esquerda, incluindo a comunista, deve evitar um erro que cometeu no passado: o Estado de Direito e demais garantias jurídicas para os direitos individuais não são apenas instituições formais, mas liberdades muito importantes, parte integrante da democracia.
Porém, vejamos todos os demais aspectos: Marx descreve, no Manifesto do Partido Comunista, que dentro da fábrica, no local de trabalho ou produção, existe sempre uma forma de despotismo. Não somente pelos baixos salários dos trabalhadores, mas esse é só um dos pontos.
A crítica é tanto no plano econômico quanto no político. Outro exemplo com os Estados Unidos: os empresários fazem o que querem com os trabalhadores, mandam-nos para o olho da rua sem garantias trabalhistas, em condições precárias. E também é muito difícil e perigoso para os trabalhadores formarem um sindicato, porque sempre ocorre chantagem de todos os lados.
Terceiro aspecto: se pegamos, por exemplo, um estado como Israel, as garantias que são acordadas aos cidadãos israelenses correspondem à total falta de garantias aos palestinos. É ridículo para um regime que se diz democrata julgar sem a abstração daqueles que são excluídos de garantias. Em Israel está muito claro: garantias para os privilegiados; e prisões arbitrárias, expropriação de terras, tortura e mesmos os assassinatos os desprovidos.
Outro aspecto no contexto internacional em que ainda vemos a persistência de relações de despotismo: se os países ocidentais pedem à ONU que esta autorize uma guerra e ela os legitima, respeitam a decisão. Mas se ela se recusa a legitimá-la, o ocidente faz a guerra do mesmo jeito. Isso é a negação total da democracia. O ocidente reivindica para ele mesmo, e só para ele, o direito de dar início a uma guerra mesmo sem a autorização do Conselho de Segurança. Ou seja, não há qualquer democracia nas Relações Internacionais.
E se ainda acrescentarmos a questão da espionagem universal, denunciada pela presidente brasileira Dilma Rousseff, podemos concluir que são os Estados Unidos o pior inimigo da democracia nas Relações Internacionais.
Cito o presidente norte-americano Franklin Delano Roosevelt [também conhecido pelas iniciais FDR] quando, durante a II Guerra Mundial, pronunciou o célebre discurso das “Quatro Liberdades” (o 4 Freedoms), em 1941. Nesse contexto, FDR diz não somente sobre as liberdades liberais clássicas, de expressão e crença, mas de viver sem penúria e medo.
Considerando isso, qual país que pretende apagar liberdades, mesmo em nível internacional, através do consenso de Washington e pelas organizações controladas ou hegemonizadas pelos EUA, como o Banco Mundial e o FMI? Esfacelando o de bem-estar social, ou seja, a liberdade de viver sem penúria?
Fernando Garcia/divulgação
Losurdo durante palestra na PUC; para ele, caminho da América Latina exercerá papel progressista no cenário internacional
Sobre a liberdade de viver sem medo, FDR se dirigia à Alemanha nazista – e com toda razão, porque ela representava a todo o mundo e principalmente aos vizinhos uma ameaça constante de agressão, dificultando a vida com liberdades democráticas dentro de um contexto de militarização.
E qual estado hoje faz baixar a ameaça de agressão? Quem tem bases militares em todo o mundo? Quem reivindica o direito de intervir nos outros? Mesmo com as liberdades teorizadas pelo presidente dos EUA, podemos dizer que hoje o pior inimigo delas são exatamente os Estados Unidos da América.
OM: A América Latina conseguiu desenvolver, com os governos de esquerda dos últimos anos, uma resposta satisfatória e sustentável à corrente neoliberal nascida através do consenso de Washington? E os governos de esquerda que optaram pelo caminho da reforma sem ruptura, eles podem ser comparados à social-democracia europeia?
DL: É um erro, sob o plano político e filosófico, comparar os movimentos de esquerda na América Latina com a social-democracia europeia. Na política externa, por exemplo, eles se colocaram em posição contrária às políticas de guerra dos EUA, como na Líbia e na Síria.
Todos podem ver que o “socialista” François Hollande [presidente da França] é um dos maiores campeões da guerra. Seria falso comparar essas duas realidades. Na Europa, os autoproclamados partidos socialistas fazem parte de uma esquerda que defino pessoalmente como “esquerda imperial”, uma esquerda bem entre aspas. Não temos esse fenômeno da esquerda imperial na América Latina. Enquanto países como a França são governados por esses dirigentes que se dizem “socialistas”, estes desenvolvem um programa explicitamente colonial.
De outro lado, vemos a América Latina sob a direção de novos partidos, alguns mais, outros menos à esquerda, que continuam a luta contra a Doutrina Monroe. A Revolução Cubana foi a primeira a questioná-la. Hoje vemos que muitos a contestam, ela não tem mais o prestígio de outrora.
Muito dessa luta contra a Doutrina Monroe, contra o imperialismo e o perigo de intervenção colonial fez com que os latino-americanos compreendessem a necessidade de transformar a economia. Na luta para salvaguardar a independência econômica, muitos passaram a contestar o consenso de Washington.
À luz da política estrangeira e econômica, a tendência principal da região é de esquerda e progressista. Há países mais avançados do que outros, enquanto um terceiro grupo começa a traçar esse caminho. Penso que, num futuro próximo, a América Latina vai exercer um papel importante e progressista sobre o plano nacional e internacional.
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