quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Leonora Carrington

Uma destas pessoas [fantásticas, que ficamos conhecendo por acaso, nesse caso, um nome solto em uma das páginas de Rayuela de Cortazar.

Chá com Leonora Carrington


ADRIANA ZEHBRAUSKAS

ESPECIAL PARA A FOLHA

Conheci Leonora Carrington numa tarde cinza e fria de novembro. Contratada pelo jornal inglês "The Guardian", cheguei cedo para a entrevista e resolvi esperar do lado de fora da casa pela repórter, recém-chegada de Londres. Certifiquei-me de que era ali e acendi um cigarro, buscando me proteger da chuva fina na soleira da porta.

Enquanto esperava, fiquei observando a rua, bem movimentada, e pensei nas pessoas que passavam, tão apressadas, sem dar a menor atenção àquela casa simples, desconhecendo 
que ali vivia uma ilustre senhora cuja história se confunde com a da arte moderna.

Adriana Zehbrauskas/Arquivo pessoal
A artista Leonora Carrington (1917-2011) posa para a fotógrafa Adriana Zehbrauskas em sua casa, no México, em 2006
A artista Leonora Carrington (1917-2011) posa para a fotógrafa Adriana Zehbrauskas em sua casa, no México, em 2006
Nascida numa família milionária da Inglaterra, Leonora nunca aceitou os planos burgueses que seus pais traçaram para seu futuro. Amante das artes e da liberdade, era a rebelde da família. Aos 20 anos, numa exposição em Londres, conheceu Max Ernst, cujo trabalho já admirava. A admiração logo se tornou paixão. Esconjurada pelo pai, que lhe disse para nunca mais voltar, fugiu com Ernst (casado e 26 anos mais velho)para Paris.

Tocamos a campainha. Dentro, a casa era fria e escura. No andar de baixo, a sala com miniaturas de suas esculturas, obras de arte, e um antigo fogão de ferro, coberto de post-its desbotados, fazendo as vezes de escrivaninha. Leonora nos recebeu na porta da cozinha e logo nos ofereceu chá ("Eu fumo", disse. "Cigarro e café é demais."). Vestia um suéter preto, calças cinzas e levava uma pequena bolsinha a tiracolo, que nunca tirou.

Sentamos ao redor da pequena mesa redonda, a mesma à qual, em muitas ocasiões, sentaram-se Octavio Paz, Remedios Varo, Kati Horna e Edward James.

Ali passaríamos uma tarde inteira, em que ela, com quase 90 anos, lúcida e com um agudo senso de humor, nos contaria a incrível história de sua vida e fumaria um cigarro atrás do outro. A cozinha, como o resto da casa, era simples: um pequeno fogão de quatro bocas, com uma chaleira e uma leiteira de ágata, as poucas panelas penduradas na parede acima da pia e uma profusão de cartões-postais da Inglaterra no pequeno e único armário. A luz provinha de uma solitária lâmpada pendurada no teto.

Eu, ao mesmo tempo fascinada em estar ali ouvindo todas aquelas histórias, estava também cada vez mais preocupada: sabia que logo estaria escuro e precisava fotografá-la. Mas a cada vez que eu sugeria uma pausa para fotos, ela me olhava e dizia: "Não, fotografias hoje não, veja como estou despenteada".

E assim passou a tarde. Da Paris dos anos 30, seu tempo na França com Max Ernst, seus encontros com Picasso, Dalí, Breton e tantos outros, ao tortuoso caminho que a levou ao México (fugida de um hospital psiquiátrico na Espanha e casada por conveniência com um diplomata mexicano) e às histórias de família --a repórter, Joanna Moorhead, era parente dela e havia vindo em busca da famosa prima ovelha negra--, tudo parecia sair de um roteiro de cinema.

De repente, a cozinha ficou escura: mais um dos frequentes apagões da cidade. Velas foram trazidas à mesa, e a conversa derivou para tópicos mais mundanos. O dia a dia da vida no México foi o tópico dominante por alguns momentos e, entre tantas coisas que eu queria perguntar a ela, foi essa que saiu da minha boca: "Leonora, você gosta de viver aqui?". Depois de pensar alguns instantes, veio a resposta: "Sabe, depois de mais de 60 anos vivendo aqui, ainda não sei a resposta para essa pergunta".

A luz voltou, e essa frase ficou guardada na minha memória.

Fui presenteada com um elogio ("Gostei de você.") e um convite para regressar na manhã seguinte para fazer o retrato de que necessitava. "Estarei de banho tomado e penteada", anunciou. Voltei no dia seguinte e, de fato, lá estava Leonora, de banho tomado, perfumada e penteada: "Você tem 15 minutos". Fomos ao seu estúdio, no andar de cima. Ela foi gentil e me deu um pouco mais do que 15 minutos.

Alguns anos mais tarde, fui contratada pela revista "The World of Interiors" para fotografar a casa de Leonora. Dessa vez passei a tarde inteira fotografando, e tivemos pouco tempo para conversar.

Seu marido, o fotógrafo húngaro Emerico Weisz, já havia morrido, e logo seria a vez de Leonora, aos 94 anos, em 25 de maio de 2011.

Em mais de 70 anos, ela nunca regressou à casa de seus pais.

E aqui uma dessa escolhidas na rede: Imagens que parecem sonhos








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