sexta-feira, 28 de março de 2014

A culpa é da vítima.

Nesta última semana o assunto em todas as cavernas, rodas de conversa ao redor da fogueira, e em sessões de canibalismo era a divulgação da pesquisa do IPEA – Instituto de pesquisa econômica aplicada, que revelou o que pensa o brasileiro quando o assunto é a violência contra as mulheres, expresso na forma do estupro. Nada menos do que a esmagadora maioria, 65%, disse que a culpa é das mulheres, que usam roupas provocantes.


Uma pesquisa de um instituto sério como o IPEA, não pode ser desacreditada. Contudo, penso que faltou na análise imposta aos entrevistados, a consideração de outros possíveis “culpados” além, da própria vítima. A mulher, de acordo com a pesquisa, está suportando o estupro, e além disso, a culpa pelo crime. Como se ela fosse uma espécie de comparsa do estuprador.

Para dividir um pouco essa culpa, na verdade, o ideal seria que o entrevistado considerasse que a "culpa" mesmo pode ser atribuída aos seguintes atores:

a) Industria têxtil e do vestuário -  por ter lançado grifes de roupas "estupre-me-wear" visando unicamente o lucro sem atentar para o risco destas grifes de vestimenta.

b) Das Academias – por estimularem as mulheres a malharem até o ponto em que se tornam irresistíveis. A malhação em acadêmica deveria visar somente a saúde, jamais a estética

c) Das nutricionistas – por indicarem dietas que transformam as mulheres em verdadeiras peças de filé mignon ambulantes, e que atuando com seus comparsas donos de acadêmica e médicos não permitirem que as mulheres engordem, deixando de ser atrativas para uma legião inteira de tarados de plantão.

d) Dos médicos – Por fazerem cirurgias plásticas e implantes de próteses artificiais que não permitem que as mulheres envelheçam, mantendo-as por um período maior na vitrine do consumo sexual, o que aumenta a demanda de tarados, estupradores e congêneres.

e) Da igreja – por ter cessado com as sessões públicas e privadas de tortura e fogueiras acessas com os corpos de pecadoras impuras que utilizam-se deste tipo de roupa para insinuar-se para o demônio enfeitiçando os indivíduos do sexo masculino, seres perfeitos por natureza.

f) Do governo por não obrigar a indústria a inserir advertências nas roupas, alimentos dietéticos, consultórios de cirurgia plástica, ou de nutricionistas, como aquelas que aparecem nos maços de cigarro ou em anúncios publicitários de bebidas alcoólicas. Nesse caso a grife de roupas provocantes, as acadêmias, etc deveriam obrigatoriamente dar o seguinte aviso “Cuidado, ao consumir este produto você está afetando a libido incontrolável de tarados, estupradores, voyeurs, cães no cio, lobos, orangotangos e todas as demais espécimes de indivíduos macho-alfa” ou um aviso mais direto: “Advertência: Risco de estupro”

O sarcasmo não é o meu forte. Nem a ironia. Só que é.

Por Jeison Giovani Heiler

Deu aqui: http://nanabritomorais.jusbrasil.com.br/artigos/114760429/a-culpa-e-da-vitima#comments

E aqui: http://atualidadesdodireito.com.br/diegobayer/2014/03/28/a-culpa-e-da-vitima/

terça-feira, 25 de março de 2014

Barbosa e Noblat: Sintomas da nova estratégia da direita

Tarso Genro: Os incêndios pós-modernos do Reichstag


O caso da briga pública entre o presidente do Supremo Joaquim Barbosa e o jornalista Ricardo Noblat servem de gancho para o governador Tarso Genro fazer uma acurada análise das estratégias em curso pelos diferentes setores da oposição. Em tom de alerta, Tarso aponta que os riscos de um novo e "pós-moderno incêndio do Reichstag", episódio em que o parlamento alemão foi ateado fogo e converteu-se em evento crucial para o estabelecimento do nazismo alemão. As sementes autoritárias estão colocadas. A defesa da democracia, neste cenário, assume uma maior importância.

Por Tarso Genro

Não fosse a importância das duas personalidades envolvidas - Ministro Presidente do Supremo Joaquim Barbosa e o jornalista Ricardo Noblat - passaria desapercebida a notícia de que o primeiro acusa o segundo, perante os Tribunais,  de ter cometido, em artigo largamente difundido pela mídia nativa,  crime contra a sua honra, combinado com crime de natureza racial.  

Noblat escrevera que “há negros que padecem de complexo de inferioridade. Outros assumem uma postura radicalmente oposta para enfrentar a discriminação”, aduzindo ainda, que  Joaquim Barbosa não teria sido escolhido para o Supremo particularmente pelas suas qualidades jurídicas, mas por ser “negro”. Uma frase, aliás, incompatível com a coincidência, na figura do Ministro Barbosa (que é negro e  jurista renomado), dos dois atributos alinhados por Noblat.

No seu texto, no mínimo infeliz (embora distante de ser doloso em termos penais),  Noblat deixou-se levar mais pelas tarefas políticas que desempenha com rara eficiência no seu antilulismo e antipetismo explícito e menos pela isenção jornalística. Com formação e  doutorado em Universidades de primeira grandeza, concordemos ou não com  as suas posições doutrinárias, o Ministro Joaquim Barbosa não está menos preparado do que a média dos seus  pares, para ser Ministro do nosso Supremo.

Ambos, Barbosa e Noblat, tiveram um protagonismo importante no último período do julgamento da ação penal 470: o primeiro, como duro Ministro Relator do processo, tornando-se um símbolo do “ativismo judicial”,  que hoje caracteriza praticamente todas as instâncias deste Poder, até há pouco bastante refratário às luzes midiáticas; o segundo, como uma espécie de organizador ideológico do massacre midiático a que foram submetidos os  “quadrilheiros” do mensalão,  aliás absolvidos do crime de formação de quadrilha, epílogo que joga para a ilegalidade todas as acusações desta natureza, que receberam da mídia tradicional.

Independentemente do juízo que tenhamos sobre as opiniões e argumentos destas figuras importantes do cenário político nacional devemos, mais além de respeitar as suas trajetórias dentro do jogo democrático, procurar no cenário da disputa que se abre entre ambos, algo de universal nas suas condutas. Isso é útil para nos situar em que pé estamos no processo da revolução democrática em nosso país, cujo marco jurídico mais importante é a Constituição do 88.

Lembremos que o Ministro Barbosa, mais de uma vez, disse que a mídia brasileira é de  direita e desentendeu-se com jornalistas que - passada a fase em que o incensavam pela sua conduta na ação penal 470  (tornando-o uma espécie de ídolo da moralidade anti-política) - supunham que ele poderia ser  candidato do mesmo complexo midiático-direitista, que não cansava de promovê-lo. Causou, assim, uma mal-disfarçada decepção nos seus propagandistas, tanto  do campo conservador clássico, como daqueles que apostavam que o moralismo udenista redivivo, proporcionaria uma restauração neoliberal plena em nosso país. O narcisismo absolutista da mídia nacional deu lugar a uma “decepção de resultados”: os que sabem tudo e são incriticáveis  defrontaram-se com a sua própria ineficiência política.

Está dando tudo errado. Então as raivas trocam de endereço e o Ministro Barbosa vira alvo. Precisamos entender a sofisticação desta “troca de alvo”,  que se tornou agressiva no texto de Noblat. Ela é simbólica de um processo de ruptura do bloco político espontâneo que se formou para massacrar Lula e o PT, no  contexto de uma ação penal que foi, paulatinamente,  transformando-se  num  processo  de julgamento da política em geral e dos governos Lula, em particular.

Para nós, da maioria de  esquerda que esteve e está comprometida com a República e a Democracia e com os avanços conseguidos com os governos Lula e Dilma,  não se trata de ficar a favor de Noblat ou do Ministro Barbosa, no contexto atual, embora tenhamos as nossas convicções. Trata-se  de entender que estamos - a partir das últimas decisões do STF e das queimações contra o Ministro Barbosa - numa nova etapa da luta política no país. Nela, as instituições da Constituição de 88 podem recuperar a sua credibilidade democrática e republicana ou perdê-la para sempre.

Não concordei com várias das posições do Ministro Barbosa na direção daquela ação penal, mas reconheço que, quando ele acertou em relação aos sacerdotes da comunicação no país, cometeu dois erros graves na apreciação da grande mídia. Estes “erros” é que proporcionaram os ataques que ele vem sofrendo. Quais são?  Primeiro, disse que a grande mídia é , na  sua maioria, direitista; e, segundo, não permitiu a  socialização imediata do seu prestígio para a direita udenista conservadora e/ou neoliberal, no processo eleitoral em curso.

Toda a aura de restauração da dignidade das instituições que a grande mídia promoveu, através do Ministro Barbosa, revelou-se assim insossa e  sem consequências eleitorais e não contou, nem com a cumplicidade da maioria do Supremo (que não manteve o crime de “formação de quadrilha”), nem com a aceitação decisiva do Ministro Barbosa  (que não se deixou instrumentalizar como candidato-produto ), como fez o Presidente Collor no passado.  

Mas, em que contexto se dá essa desavença? No contexto em que dois grandes fatos políticos nacionais, com reflexos globais, o “mensalão mineiro” (lembrem-se, não é “mensalão tucano”),  e o caso “Alston” (lembrem-se, é a  empresa “Alston”, não é o PSDB), estão sendo substituídos no debate político pautado pela mídia tradicional, por um feroz ataque ao Governo Dilma. Ataque em três frentes: os problemas do setor elétrico, a tentativa de desvalorização política e financeira da Petrobras e do BNDES e a suposta debilidade das contas públicas nacionais.

Tudo isso ocorre num contexto de transferência dos efeitos da crise - ou melhor aprofundamento da transferência da crise financeira do capitalismo global - para que  os BRICS e os países da periferia paguem a conta. E o façam enfraquecendo as suas moedas e assumindo -ainda que em alguns casos através de doses homeopáticas- políticas ortodoxas de controle inflacionário. A correia de transmissão destas políticas é a captura do Estado pela dívida pública; o método é a submissão no intercâmbio comercial do mercado global; a finalidade é municiar, politicamente,  os países ricos para a guerra imediata contra as moedas  fracas.

Ao criar um quadro de desvalorização dos ativos estatais, como são as suas empresas e  os seus bancos, como a Petrobras e o BNDES, ao  brandir o fantasma da inflação, ao enfraquecer as políticas de desenvolvimento do Governo - abalando assim o seu prestígio político internacional - o que a oposição de direita pretende é construir o espectro da inadimplência da dívida externa e estimular, mais uma vez, que os juros subam de forma artificial, para dar maior potência à ciranda especulativa.

Algo, porém, não se ajusta. Paul Krugman disse recentemente que o Brasil, ao contrário do que apregoa o FED, não é mais vulnerável como no passado e que não se deve esperar dos EUA políticas que não sejam de interesse da sua exclusiva necessidade para recuperar a própria economia americana.  No segundo mês deste ano criamos 111% a mais de empregos no país do que o mesmo mês de 2013.

O crescimento do Brasil, no ano passado, demonstrou-se razoável na comparação com o crescimento dos principais países mais industrializados mundo. As grandes jornadas de junho - que partiram de necessidades reais das grandes massas de moradores nas grandes regiões metropolitanas em busca de melhor saúde e transporte- depois de devidamente “glamourizadas” pela mídia como um movimento da classe média conservadora contra a “corrupção”,  perderam potência e transformaram-se em escassas cenas de “ação direta”.  Ficaram, então,  sem a presença das classes trabalhadoras e dos setores médios dependentes da qualidade destes serviços. 

Neste cenário,  o preocupante não é sequer as eleições de 2014, já que elas são precedidas de um amplo debate público através das mídias, garantido pela legislação eleitoral. O preocupante é  a impotência da esquerda e do centro democrático  reformista,  para se opor a esta ofensiva no próximo período. Nele, ao que tudo indica,  o jogo democrático ficará mais bloqueado. O Poder Judiciário sofrerá ainda mais pressões para adaptar-se às reformas neoliberais  contra as políticas públicas democráticas realizadas nos últimos dez anos e a reforma política permanecerá excluída da agenda do país. A secundarização da reforma política é um verdadeiro suicídio que vem sendo cometido pela “classe política”, como a sociologia vulgar denomina a representação e os partidos tradicionais.

A substituição da tentativa do controle das decisões do Supremo, pela grande mídia,  por um ataque direto ao Estado, para enfraquecê-lo no cenário global (que hoje induz a interdependências extremas), permanecerá,  ao longo deste ano, como questão dominante no cenário eleitoral. A crise singular - um racha imprevisto - entre a imprensa representada por Noblat e o Ministro Barbosa, como um dos expoentes do Supremo,  embora tenha o sabor de uma disputa entre indivíduos, é indicativa de uma mudança na estratégia da direita

Num primeiro momento ela capturou o Supremo e utilizou um processo penal  para condenar sem provas e seduzir o povo, pois afinal estávamos “terminando com os corruptos e a corrupção”. O “mensalão mineiro” e a “Alston” vem atrapalhando? Bem, passemos para outra estratégia: é o segundo momento. A grande mídia muda de foco e passa a denunciar que o Estado, em termos orçamentário-financeiros,  está em crise aguda - Petrobras, setor elétrico, retorno da inflação -   aprimorando-se em forjar “notas” nas agências picaretas  para desmoralizar o Governo e preparar qualquer  um para ganhar as eleições de 14, menos Dilma com o PT. E agora? As pesquisas não respondem!

A desigualdade para a circulação da opinião conseguiu combinar-se  com a liberdade de imprensa na pós-modernidade brasileira, estruturada sobre a fragmentação da velha sociedade de classes. A separação de representantes e representados, a desarticulação dos sujeitos políticos tradicionais, a “guetização”  dos movimentos sociais, permite que as classes ricas no cenário mundial, abrigadas no poder do capital financeiro especulativo (que não precisa do trabalho para reproduzir-se),  promovam sucessivos incêndios simbólicos do Reichstag.  No seu final, não nos iludamos, estará, à espreita  o apelo às ditaduras ou a governos expeditos, tecnocráticos, “técnicos”. Os que dispensem as mediações da política para governar.

A concepção tradicional do pacto democrático moderno, que “a liberdade de um vai até onde inicia a liberdade do outro”, verdadeiramente não funciona mais. Pelo menos nas democracias mais jovens, em países desiguais em poder e influência como o nosso Brasil. Os limites da nossa liberdade de disputar em condições de igualdade contra a hegemonia da mídia dominante - que trocou o debate político  pela divulgação histérica do crime e da violência e substituiu a informação pela ideologia da crise permanente - está incendiando as fronteiras da democracia.

Lembremos que a verdadeira liberdade necessita do “outro” para expressar-se. O “outro” somos nós - a esquerda que participa do Governo do país  (que é um governo centrista, progressista e democrático) - e igualmente aquela esquerda  que não participa do Governo. Nós  somos, não um limite mas uma condição necessária para o exercício da liberdade: o limite da democracia na pós-modernidade latino-americano e tardia, é a captura do Estado pelo capital financeiro e é isso que hoje sufoca a  democracia no Brasil e que está em jogo no  processo  eleitoral que se avizinha.

Seria muito bom que os partidos de esquerda entendessem este dilema e incidissem sobre o Governo para sustentá-lo de forma mais unitária e organizada. Menos preocupados com as ansiedades eleitorais imediatas e mais preocupados em não permitir simbólicos incêndios do Reichstag. O falso recado de que a economia e o Estado estão em crise final é a arma mais potente da oposição e dos eduardos em evidência.  Seria importante também que, quem coordena politicamente o Governo Dilma, se abrisse para um diálogo político mais amplo do que o circunscrito pela conjuntura de extorsão, originária da “política de resultados” do centrão renascido.

Lucio Magri relata no seu memorável livro “O alfaiate de Ulm”, testemunho e história meticulosa do comunismo italiano e da decadência social-democrata, um fato simbólico inspirado num apólogo de Brecht. Um artesão, vidrado pela idéia de voar, apresentou-se ao bispo  da sua região, anunciando que tinha inventado um aparelho para tal. O bispo, certamente irônico e pragmático, levou-o à torre do Palácio e desafiou-o a demonstrar. O pobre artesão, que era um alfaiate, lançou-se no espaço espatifou-se no chão. Foi derrotado, mas séculos depois o homem cruzou os ares. O homem podia voar. Ele estava certo. O bispo estava errado. Embora a história seja “dramática e custosa”, como diz Magri, as idéias ousadas podem vencer e se impor. Para vencer as eleições e governar com novos avanços na revolução democrática precisamos da grandeza do alfaiate de Ulm.  

(*) Governador do Rio Grande do Sul


Fonte: Aldeia Gaulesa

segunda-feira, 24 de março de 2014

Como se fabricam crianças loucas

Os manicômios não são passado, são presente. Uma pesquisa realizada no hospital psiquiátrico Pinel, em São Paulo, mostra que, mesmo depois das novas diretrizes da política de saúde mental no Brasil, crianças e adolescentes continuaram a ser trancados por longos períodos, muitas vezes sem diagnóstico que justificasse a internação, a mando da Justiça. Conheça a história de Raquel: 1807 dias de confinamento. E de José: 1271 dias de segregação. Ambos tiveram sua loucura fabricada na primeira década deste século


Em uma noite de novembro de 2007, a psicóloga Flávia Blikstein escutou de uma menina duas perguntas. E descobriu que não tinha respostas. Flávia trabalhava num Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) infantil, em São Paulo, e encontrava-se na ambulância para levar a garota para sua primeira internação psiquiátrica. Maria, como aqui será chamada, tinha 14 anos. Era negra, alta e magra. Falava pouco, frases curtas. Gostava de brincar de boneca e de desenhar. Às vezes pintava as unhas, arrumava o cabelo, anunciando a adolescência. Maria se molhava o tempo todo, em pequenos rituais. Abria a torneira, fazia uma conchinha com as mãos e molhava os pés, as pernas, os braços. Fazia isso em qualquer lugar, causando vergonha à mãe. Talvez Maria estivesse esculpindo com a água os limites do próprio corpo. Quando fez a primeira pergunta à Flávia, ela ainda tinha as pontas dos dedos úmidas, e o seu olhar também era molhado:
- Por que eu vou ficar aqui?
Flávia descobriu que não tinha resposta.
Maria fez então a segunda pergunta:
- Quem tá aí? Quem vai dormir no quarto comigo?
Flávia descobriu que não tinha resposta também para essa. Não tinha resposta porque, ao contrário do que costuma acontecer quando crianças e adolescentes nos mostram a face do abismo, ela tinha escutado as perguntas. Escutado mesmo. A “menina louca” tinha indagado sobre a estrutura do Estado e da sociedade que a obrigava a dar o primeiro passo para dentro de uma instituição psiquiátrica. Talvez Maria intuísse que esse passo poderia ser longo. Talvez Maria adivinhasse que os dentes do sistema estavam à sua espera, logo ali.
Flávia abraçou Maria. E pediu desculpas por não saber responder. Maria entrou, carregando olhos molhados e pontos de interrogação.

A “menina louca” tinha indagado sobre a estrutura do Estado e da sociedade que a obrigava a dar o primeiro passo para dentro de uma instituição psiquiátrica
O que Maria perguntou à Flávia, perguntou a todos nós: por que, no século 21, crianças e adolescentes brasileiros, a maioria filhos de famílias pobres, continuam a ter suas vidas mastigadas num hospital psiquiátrico. A “criança louca” fez aos normais a pergunta mais lúcida: por que a condenavam a uma existência de manicômio. A habitar um mundo de dor, vagando entre paredes, desvestindo a si mesma para vestir um uniforme, sem direito ao desejo. Por que lhe negavam a humanidade tão cedo.
Flávia não pôde esquecer as perguntas, menos ainda a sua falta de respostas. Dedicou-se a buscá-las. Encontrou-as no arquivo do Núcleo da Infância e da Adolescência (NIA) do Centro de Atenção Integrada em Saúde Mental (CAISM) Philippe Pinel. O Pinel é uma das instituições de referência para internação de crianças e adolescentes com problemas mentais no estado de São Paulo. Flávia sabia que aquilo que se costuma chamar de arquivo morto era bem vivo. Então, botou-o para falar. Fechou-se na pequena sala bordada de estantes durante todos os sábados de um ano inteiro. Analisou 451 casos, correspondentes a 611 internações ocorridas entre janeiro de 2005 e dezembro de 2009. Destes, 79% das crianças e adolescentes haviam sido internados apenas uma vez. Os 21% restantes tiveram de duas a sete reinternações. Alguns casos, que continuaram a voltar ao Pinel, ela acompanhou também nos anos de 2010 e 2011. Flávia queria saber qual era o percurso que levava crianças e adolescentes ao hospital psiquiátrico como primeira providência – e não como exceção pontual e por tempo determinado.
O arquivo do Pinel ficava logo abaixo da enfermaria das crianças e adolescentes. Enquanto pesquisava, Flávia podia ouvir os gritos. Percebeu, porém, que mais do que gritos havia um silêncio longo. Um silêncio, nas suas palavras, “estranho e profundo, um silêncio que não imaginamos num lugar cheio de crianças e adolescentes”. Dentro do arquivo, não. Os prontuários contavam histórias. Ainda que a voz de meninos e meninas ressoasse mais nas ausências, nas entrelinhas, os prontuários diziam de infâncias aniquiladas numa vida de manicômio. E mostravam por que caminhos a fabricação de crianças loucas é uma verdade profunda do Brasil. Flávia chamava o arquivo de “sala das almas”. E as almas falavam.
Duas crianças, que se transformaram em adolescentes no hospital psiquiátrico, contaram histórias que poderiam ilustrar livros escabrosos sobre os manicômios do passado, mas que se passaram na primeira década desse século. Aqui, elas serão chamadas de José e de Raquel. José permaneceu confinado por 1271 dias – ou três anos e cinco meses. Raquel, por 1807 dias. Ficou trancada dos 11 aos 16 anos – e de lá foi transferida para outra instituição psiquiátrica. José e Raquel estavam segregados no Pinel, a mando da Justiça, sob reiterados protestos da equipe técnica. Foram depositados como coisas no Pinel porque ainda é este o destino dado a crianças como eles no Brasil.
Por quê?

Flávia sabia que aquilo que se costuma chamar de arquivo morto era bem vivo. Então, botou-o para falar. Analisou 451 casos, correspondentes a 611 internações ocorridas entre janeiro de 2005 e dezembro de 2009
É preciso prestar muita atenção às respostas que Flávia encontrou. Sua escuta de três mil horas dentro do arquivo transformou-se numa dissertação de mestrado em psicologia social na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. Somando-se a trabalhos fundamentais de outros pesquisadores do tema, tanto em São Paulo como em vários estados do Brasil, a investigação mostra por que os manicômios persistem apesar das diretrizes da política de saúde mental e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A Lei nº 10.216, de 2001, orientada pela reforma psiquiátrica, prioriza o atendimento em rede, em serviços inseridos na comunidade, perto da família, e determina que a internação só pode ocorrer depois de esgotados todos os recursos extra-hospitalares. Não é o que acontece em casos demais.
“Medievais”, “desumanos” e “criminosos”. Essas são algumas das palavras usadas para definir os hospícios desde que a luta antimanicomial se intensificou a partir do final dos anos 1970 e conquistou avanços significativos nesse século. A pesquisa mostra, porém, que mesmo instituições e profissionais que tentam fazer diferente são seguidamente vencidos pelas engrenagens e pela escassez de serviços públicos de base. Na prática, ainda hoje, é de manicômio e de vida manicomial que se trata em uma parte significativa dos casos, uma realidade só possível pelo descaso quase absoluto da sociedade com o destino dessas crianças, em geral filhas de famílias pobres. Ao fazer o arquivo morto falar, Flávia constrói respostas que precisam ser escutadas se quisermos, de fato, estancar o crime de fabricar crianças loucas – e, muitas vezes, também o de conseguir enlouquecê-las.
Raquel nasceu em 1994. A mãe estava presa por tráfico de drogas, não porque era chefe de uma organização criminosa, mas porque vendia uma pequena quantidade para sustentar seu próprio vício. Esse destino é comum nos presídios do país, é também gerador de órfãos de mães vivas. Pobre demais para dar conta dela, a avó colocou Raquel num abrigo aos cinco anos. A menina é de imediato descrita como “agressiva”. E, por esse motivo, é afastada das outras crianças. Passa a morar com o que se chama de “mãe social”, isolada numa casa nos fundos do abrigo. A escolha, como mostra Flávia, evidencia que, desde sempre, a resposta à agressividade de Raquel é a exclusão. Obviamente, também não deu certo. De abrigo em abrigo, Raquel virou aquela que “não dava certo” em abrigo nenhum.
Talvez valesse a pena perguntar se a agressividade, ao se olhar para o contexto e as circunstâncias, não era o principal traço de sanidade de Raquel. Mas o direito à história é o primeiro a ser arrancado das “crianças loucas”. Ela já tinha quase tantos rótulos quanto anos de vida: filha de presidiária, abandonada, agressiva, não dá certo... Raquel só era vista por estigmas e fragmentos.

Ela queria saber qual era o percurso que levava crianças e adolescentes ao hospital psiquiátrico como primeira providência – e não como exceção pontual e por tempo determinado
Negra como Maria, ela foi internada pela primeira vez em 2005, aos 11 anos. Entrou no sistema por ordem da Justiça. Antes de seguirmos o seu destino, é crucial entender as duas formas de entrada nas instituições psiquiátricas, identificadas pela pesquisa. Nelas se encontra uma das chaves para compreender a fabricação das crianças loucas no Brasil atual. Assim como os caminhos pelos quais é mantida viva a função histórica dos manicômios como lugar de segregação daqueles que são decodificados como perigosos para a ordem social, ainda que sejam apenas pobres e abandonados.
Em pouco mais da metade dos casos – 55% – o pedido de internação psiquiátrica foi feito por familiares e por diferentes serviços da rede de saúde. Nos outros 45%, crianças e adolescentes foram internados por ordem judicial. Estes são os dois caminhos de entrada nos hospitais psiquiátricos. A pesquisa mostrou, porém, algumas diferenças fundamentais para compreender o problema: no período pesquisado, a Justiça internou mais cedo, por mais tempo e mais vezes. A maioria dos casos era de adolescentes, mas as crianças respondiam por 20% das internações por ordem judicial. Pela via da rede de saúde, menos de 6% eram crianças. Por ordem judicial, o tempo médio de internação era quase o dobro (55 dias contra 30). A Justiça também foi responsável por 92% das internações com duração maior do que 150 dias. Entre os 14 casos que sofreram internações de quatro a sete vezes, 12 tinham sido confinados por ordem judicial.
Entre eles, Raquel. Dos 11 aos 16 anos, ela foi internada seis vezes no Pinel. A queixa da primeira vez: “Paciente institucionalizada há oito meses (nome de outro hospital), com transtorno de comportamento, heteroagressiva (agressividade dirigida a terceiros), em tratamento ambulatorial pouco resolutivo”. Depois de seis dias, o Pinel deu alta e a menina foi encaminhada a um abrigo. Oito dias mais tarde, ela foi novamente internada por ordem judicial: “Paciente portadora de transtorno de conduta grave. Uma vez no abrigo, voltou a ficar agressiva. Crítica seriamente comprometida, ameaçadora”. Outros 19 dias de internação, e o Pinel pediu à justiça que ela tivesse alta. Passada uma semana, o pedido foi atendido, e ela voltou ao abrigo. Mais três dias e Raquel de novo foi internada no Pinel por ordem judicial: “Ao retornar ao abrigo volta a apresentar quadro importante de liberação de agressividade e falta de controle de impulsos”. Raquel ficou trancada no Pinel por 1004 dias.
Nessas três primeiras vezes, tornou-se evidente que a justiça internava e o hospital liberava, porque não havia razão para manter Raquel confinada. Documentos anexados ao prontuário mostram que a direção da instituição enviou diversos relatórios à justiça, tanto informando da alta médica da paciente quanto pedindo encaminhamento a um abrigo e tratamento ambulatorial. Num dos documentos, a direção afirma: “Nosso hospital está fazendo o papel de Abrigo para esses adolescentes. Sabedores dessa ilegalidade pedimos com urgência uma resolução para esse problema”. E, em outro ofício: “Atualmente a adolescente continua residindo na enfermaria para tratamento de pacientes agudos, encontra-se longe da escola e com enormes prejuízos psicológicos e sociais”.

“Medievais”, “desumanos” e “criminosos”. Essas são algumas das palavras usadas para definir os hospícios desde que a luta antimanicomial se intensificou a partir do final dos anos 1970
A cada três meses, o Pinel mandou ofícios à justiça. Só foi atendido depois de quase dois anos e nove meses. Mas a vida de Raquel fora do hospital durou apenas uma semana. Mais uma vez ela foi internada na instituição. O motivo: “Evolui com episódios recorrentes de agressividade, fugas necessitando atendimento em unidades de emergência. Há dois dias em acompanhamento no CAPS sem aderência ao tratamento”. Depois de mais 413 dias de internação, Raquel fugiu do hospital. Voltou espontaneamente dois dias mais tarde. Para onde mais ela iria, já que o longo período de confinamento esgarçou ainda mais os frágeis vínculos familiares e a impediu de criar novos?
Raquel permaneceu internada mais 244 dias, antes de ser encaminhada a outro abrigo. Quinze dias fora do hospital, e a justiça mandou-a de volta: “Jogou fora seus remédios, quebrou o vidro da brinquedoteca, feriu-se, pegou o telefone para se enforcar e fugiu para uma cidade vizinha dizendo que ia procurar seus avós”.
Na sexta vez, está registrado no prontuário: “A paciente verbaliza que a maior dificuldade que enfrentou no retorno ao abrigo foi uma sensação de inadequação na convivência com adolescentes sem problemas psiquiátricos; infelizmente, criou-se um vínculo inadequado iatrogênico (provocado pela própria prática médica) de segurança com o ambiente de internação, o que se configura como Hospitalismo”.
Em outras palavras. Raquel não sabia mais viver fora do hospital psiquiátrico, seus vínculos estavam dentro da instituição. Se tinha a algum afeto, era ali. Era no hospital que ela sabia como se comportar, identificava uma rotina, fazia amigos entre outras crianças e adolescentes como ela ou realmente doentes. Considerava profissionais de saúde como parentes. E, mais tarde se saberia, quebrava coisas e agredia pessoas quando era mandada para o abrigo porque sabia que assim voltaria àquele que era o único lugar parecido com um lar que tivera na vida.

No total, Raquel ficou trancada no Pinel cinco anos. Sublinha-se: sem necessidade. Sua vida cabe em três caixas do arquivo. Mas esse não foi o fim de sua trajetória manicomial. Em 2010, aos 16 anos, ela foi transferida para outro hospital psiquiátrico
Nessa época, a direção do Pinel mandou mais um ofício à justiça: “Aproveito a oportunidade para dizer da indignação dessa equipe técnica que, por diversas vezes, acionou o judiciário solicitando a desinternação desses adolescentes que, na ocasião, precisavam apenas de um abrigo para moradia e dar continuidade ao atendimento ambulatorial, tendo assim seu direito constituído”.
No total, Raquel ficou trancada no Pinel cinco anos. Sublinha-se: sem necessidade. Sua vida cabe em três caixas do arquivo. Mas esse não foi o fim de sua trajetória manicomial. Em 2010, aos 16 anos, ela foi transferida para outro hospital psiquiátrico.
O diagnóstico que sustentou a condenação de Raquel a uma vida manicomial é bastante revelador: “transtorno de conduta”. Segundo a Classificação Estatística Internacional de Doenças (CID), “os transtornos de conduta são caracterizados por padrões persistentes de conduta dissocial, agressiva ou desafiante. Tal comportamento deve comportar grandes violações das expectativas sociais próprias à idade da criança; deve haver mais do que as travessuras infantis ou a rebeldia do adolescente e se trata de um padrão duradouro de comportamento (seis meses ou mais)”. Essa “patologia”, assim como outras que compõem a CID, é contestada por parte dos psiquiatras, psicanalistas e psicólogos, assim como por profissionais de outros campos do conhecimento. Mas, ainda que se aceite que essa doença de fato existe, o tratamento recomendado é inserção comunitária – e não asilamento.
Em sua investigação, Flávia mostrou que o diagnóstico de “transtorno de conduta” tem sido usado de modo generalizado – e quase displicente – para justificar internações em hospitais psiquiátricos. Tanto na internação pela via da rede de saúde como na internação por ordem judicial, o principal diagnóstico é esquizofrenia. Mas o “transtorno de conduta” tem aumentado. Numa comparação com uma pesquisa anterior, na qual Julia Hatakeyama Joia analisou os prontuários do Pinel entre fevereiro de 2001 e agosto de 2005, Flávia constatou que os chamados “transtornos do comportamento e transtornos emocionais” – dos quais “transtornos de conduta” correspondem a 75% dos casos – cresceram como motivo de confinamento. Em 2002, eram causa de 5,26% das internações. Passaram para 7,14% em 2005. E alcançaram 15,2% das ocorrências em 2009. “Em muitos casos, é diagnosticado em crianças com episódios de descontrole e agressividade, sem que exista uma análise sobre sua história e contexto de vida”, afirma a psicóloga. Outro dado comparativo de extrema relevância é que, entre 2001 e 2004, a proporção de internações no Pinel por ordem judicial era de 23% do total. De 2005 a 2009 saltou para 45%.

Em sua investigação, Flávia mostrou que o diagnóstico de “transtorno de conduta” tem sido usado de modo generalizado – e quase displicente – para justificar internações em hospitais psiquiátricos
O “transtorno de conduta” é bem mais recorrente na internação por ordem judicial do que na internação pela via da rede de saúde. É o diagnóstico de um quarto das internações com duração maior do que 150 dias e por mais de um terço dos casos de crianças e adolescentes internados de quatro a sete vezes. É o rótulo de Raquel – e também o de José. Meninos representam quase 80% das crianças e adolescentes internados, um dado cujas razões precisam ainda ser melhor compreendidas.
José tinha 10 anos quando deu o primeiro passo para dentro do Pinel, por ordem judicial. Tinha passado, segundo o relatório da instituição, por “maus tratos, negligências e privação afetiva”. Apresentou “comportamentos desafiadores e transgressores, o que resultou em rejeição e abandono familiar, principalmente de sua mãe”. A mãe decidiu entregá-lo para o pai, na Bahia. No dia da viagem, José recusou-se a ir. Ele não queria se separar da mãe. Para não ser obrigado a viajar, por duas vezes tentou se jogar diante dos carros, na rua. A “crise de agitação” levou à sua primeira internação. A duração: 623 dias.
Quando teve alta, José foi encaminhado a um abrigo. Permaneceu apenas três dias antes de ser internado novamente. Dessa vez, ficou trancado por 255 dias. José fugiu. Para onde? Para a casa de mãe. Mais uma internação, por “agitação psicomotora com intensa heteroagressividade, baixa tolerância à frustração, sem crítica, e risco de vida”. Dessa vez, ficou 84 dias na instituição antes de fugir novamente. Para onde? Para a casa da mãe. Na quarta e última internação, ele permaneceu 309 dias no Pinel. Foi então encaminhado para um abrigo. De onde fugiu. Para a Bahia, em busca de um lugar e de um afeto.
No total, José ficou 1271 dias trancado no Pinel: três anos e cinco meses. Sobre José e Raquel, a equipe técnica do hospital enviou um ofício à Justiça, em 2008: “(...) Estão em alta médica, mas permanecem nesta enfermaria psiquiátrica para tratamento de pacientes com transtornos mentais agudos, privadas de ter uma vida digna, por não terem retaguarda familiar e não existirem vagas em abrigos”. Sobre esse destino, Flávia afirma: “As internações são motivadas por uma combinação complexa, que resulta numa situação de vulnerabilidade. A resposta da internação psiquiátrica, além de redutora de complexidade, é ela mesma produtora de maior sofrimento. A internação por ordem judicial revela uma concepção sobre a infância e a adolescência pautadas no medo e no perigo. Propõe uma resposta única a todas as situações, sem considerar diferenças, singularidades e contextos. Reduz crianças e adolescentes ao status de paciente psiquiátrico perigoso, produzindo sua cronificação”. É assim que se fabricam crianças loucas.
Vale a pergunta: fugir pode ter sido um ato de sanidade de José, na tentativa de não ser enlouquecido? De algum modo, apesar de tudo e de todos, ele parece acreditar que existe um lugar para ele, um lugar com afeto. José, Raquel e Maria nos mostram que não há desamparo maior do que o de uma criança num manicômio. Ninguém está mais sozinho nesse mundo do que José, Raquel e Maria. Expostos a uma sociedade que, além de não protegê-los, os enlouquece. Eles fogem, como José, eles quebram tudo, como Raquel, eles fazem perguntas, como Maria. Mas estão sozinhos. E cada um de seus atos de resistência é mais um carimbo de sua suposta loucura num arquivo morto.

O desafio exposto pela pesquisa é também o de completar a reforma psiquiátrica no Brasil. Crianças e adolescentes, segundo a legislação, devem ser tratados dentro da comunidade, junto à família, sem afastamento da escola
Ao analisar os prontuários, Flávia conseguiu identificar claramente as diferenças entre a internação via rede de saúde e a internação por ordem judicial. Essas são conclusões cruciais do trabalho, porque apontam o que funciona e o que não funciona, apontam saídas. Na rede de saúde, a maior parte dos encaminhamentos é feita pela emergência de hospitais, o que não é o melhor percurso. Apenas 8% são enviados para internação por Unidades Básicas de Saúde ou por CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) infantil, que deveriam ser a porta de entrada para crianças e adolescentes com sintomas de doenças mentais. Esses dados demostram a falta desses serviços, causando desamparo na população que necessita de assistência pelo SUS. Em vez de começarem o tratamento pela rede básica, inserida na comunidade, o iniciam pelo fim e por aquilo que é uma exceção necessária num mínimo de casos: a internação. A hipótese de Flávia é de que, se houvesse mais serviços comunitários de saúde mental, como está previsto na legislação, é provável que a necessidade de internação fosse bem menor. Em vez do hospital psiquiátrico, uma rede articulada, com investimento maior em equipes de saúde mental, na capacitação e implantação do Programa de Saúde da Família e de centros de atenção psicossocial. “A patologização das crianças em situação de vulnerabilidade social evidencia a precariedade da rede de atenção e cuidado, e também a insuficiente articulação entre as políticas públicas nos campos da educação, saúde, habitação e lazer”, afirma.
A diferença é clara na análise dos dados. Nos casos encaminhados pelos Centros de Atenção Psicossocial, a média de dias de internação é mais baixa do que pelos outros caminhos. Quando crianças e adolescentes são cuidados pelos CAPS depois da alta, apenas 3% são reinternados. “Isso mostra que os serviços comunitários funcionam, mas são em número insuficiente”, afirma Flávia. “Nos pacientes encaminhados pela rede de saúde, o hospital funciona como enfermaria de crise. A maioria é de adolescentes de 15 a 17 anos, em seu primeiro surto psicótico, que são cuidados e liberados. Já na internação por via judicial, o hospital funciona como instituição de asilamento.”
O desafio exposto pela pesquisa é também o de completar a reforma psiquiátrica no Brasil. Crianças e adolescentes, segundo a legislação, devem ser tratados dentro da comunidade, junto à família, sem afastamento da escola. A doença, se de fato existe, deve ser compreendida como uma das várias características – e não como a verdade única sobre aquela criança e adolescente. Mesmo a internação, se for necessária, deve ser entendida como uma parte da história – e não como a história inteira. A internação é um momento, não um destino.
Flávia permanecia das 10h até as 21h de cada sábado na sala das almas do Pinel. Numa noite, estava tão mergulhada nos prontuários que se esqueceu da hora e se atrasou para sair. O guarda do portão recusou-se a deixá-la ir. Eram as regras. Ele não estava ali para pensar sobre elas, mas para cumpri-las. E Flávia soube o que era estar entre muros – e não ser escutada. Depois de um tempo que pareceu largo demais, Flávia conseguiu provar que era uma psicóloga, fazendo um trabalho de pós-graduação para a PUC. Acredita que o fato de ser branca, loira e de olhos azuis possa ter ajudado na sua “soltura”. Mas, ao abrir o portão, o segurança alertou: “Na próxima vez, fica”. Por um momento, trêmula, Flávia teve uma tênue aproximação do que sentiram Raquel, José e Maria, apenas três entre as centenas de “crianças loucas” fabricadas nesse século.
Ao final de sua estadia no arquivo morto que ela descobriu ser vivo, Flávia finalmente tinha as respostas para Maria.
1) Por que eu vou ficar aqui?
- Porque as instituições que compõem a rede de atendimento à criança e ao adolescente trabalham de forma desintegrada e não conseguem atender às suas necessidades.
2) Quem tá aí? Quem vai dormir no quarto comigo?
- As crianças e os adolescentes que tiveram seus destinos produzidos ativamente pela desresponsabilização e pelo abandono.
Maria perguntou. Flávia escutou. Escutou de fato não quando a ouviu, mas quando fez o movimento de buscar as respostas. Elas estão aí, mas só provocarão mudança se o Estado, os governos e a sociedade as escutarem. Se nós as escutarmos. É, afinal, de escuta que se trata.
Flávia desconhece o paradeiro de José. Raquel foi libertada ao completar 18 anos. Mas o que há para Raquel depois do que fizemos com ela? É possível, é moral, é decente dizer à Raquel: vá estudar, vá trabalhar, vá construir uma vida? “É uma marca tão profunda que pessoas como Raquel, mesmo saindo da instituição, continuam institucionalizadas”, diz Flávia. “A institucionalização parece uma grande máquina que suga a potência humana, criando seres humanos sem desejo. A institucionalização é a patologia mais grave da saúde mental.”
Aos 19 anos, Raquel hoje perambula pelas ruas e albergues de São Paulo, ao redor das instituições. Às vezes declara-se “louca” e é internada por curtos períodos. Raquel sempre pergunta pelo seu melhor amigo:
- Onde está José?
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficçãoColuna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da RuaA Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos e do romance Uma Duas. Email: elianebrum@uol.com.br. Twitter: @brumelianebrum

Fonte: http://brasil.elpais.com/brasil/2014/03/17/opinion/1395072236_094434.html

domingo, 23 de março de 2014

Fascistas transformam centro de São Paulo em hospício


Confesso que senti medo ao sair de casa no sábado para cobrir a Marcha da Família Fascista que ocorreu em São Paulo e que você, leitor, entre incrédulo e estupefato irá conferir no texto, nas fotos e no vídeo (ao fim do texto) que este post contém.
Meu medo tinha duas origens, uma subjetiva e outra objetiva. A subjetiva, por ver ocorrer de novo em meu país uma demonstração tão grande de selvageria, de egoísmo e de um desprezo surreal pela democracia. A objetiva, por medo de ser reconhecido pelos fascistas.
A necessidade de denunciar toda a loucura que sabia que encontraria, porém, falou mais alto.
Caminhei pelos corredores da estação do metrô próxima de casa como quem caminha para o cadafalso. Inconscientemente – depois me dei conta –, decidi passar primeiro na marcha antifascista que ocorreria na Praça da Sé.
Foi a forma que encontrei de postergar o sofrimento que me impus.
Na Sé, encontrei menos gente do que esperava – cerca de 300 pessoas. Porém, depois a marcha antifascista superaria a fascista em número.
A fauna antifascista era a esperada. Antigos militantes de esquerda, estudantes, black blocs, sindicalistas, intelectuais.
Se não fosse um episódio que me fez criar coragem para ir logo à marcha fascista, teria ficado até menos tempo. Não havia nada para ver lá que já não conhecesse e eu queria era novidade. Como dizem, o cachorro morder o homem não é notícia; notícia é o homem morder o cachorro.
Mas houve um episódio digno de nota, sim.
Uma mulher da marcha fascista foi até a marcha antifascista para provocar. Um estudante discursava contra a ditadura quando ela, aos berros, passou a acusar a manifestação adversária de querer transformar o Brasil em Cuba.
A confusão se formou. Tentaram dialogar com a mulher, mas ela estava enlouquecida. Começou a empurrar as pessoas e, aí, o tempo fechou. Quase foi linchada, mas mulheres e homens mais maduros a conduziram até a polícia militar, que a colocou numa viatura e a levou embora.
Vendo que dali em diante só seria dito naquela manifestação o racional, tomei o caminho da Praça da República para cumprir a missão que me impus.
Chego à República. Os malucos estão diante do Colégio Caetano de Campos. Muita polícia. Umas dez vezes mais do que na marcha antifascista. Depois descobriria que os fascistas convocaram a PM para ir em peso “protegê-los”.
Mais tarde, veria cenas de confraternização entre a PM e os organizadores da marcha fascista. Conversavam ao pé do ouvido e trocavam informações. Vi um oficial falando ao rádio e passando informações a um dos organizadores fascistas.
A primeira cena bizarra que vi na marcha fascista foi justamente a que justifica esse adjetivo para aquela gente. E quando digo que justifica, justifica mesmo. Confira por que na foto abaixo.
Quem segurava cartaz dizendo “Salve o fascismo era uma garota de cerca de vinte anos, magricela, alta, cheia de piercings no rosto. Travei com ela o seguinte diálogo:
– Vocês defendem o fascismo?
– Sim, defendemos o fascismo.
– O que é o fascismo?
Nesse momento, a garota me afastou com o braço, deu-me as costas e sumiu na multidão.
Caminho mais um pouco por aquele hospício e encontro um jovem de uns 30 anos, talvez. Sua manifestação você pode conferir na foto abaixo.
Novamente, cumpro a pena que me impus e vou falar com ele.
– Você pode me explicar essa questão da “intervenção militar”?
– Sim. Intervenção militar é garantida pela Constituição Federal. É um recurso para derrubada de presidente e é o que a gente está pedindo (…)
– Derrubar presidente é permitido pela Constituição?
– Sim, pela Constituição Federal.
– Tem algum artigo, alguma coisa…?
– Artigo primeiro e artigo, se não me engano, 42…
Reproduzo, abaixo, o artigo 142 da Constituição de 1988, ao qual o indivíduo se refere:
—–
Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
—–
Como se vê, não há nada, absolutamente nada nesse texto que autorize a derrubada de um governo pelas Forças Armadas. Muito pelo contrário: o texto constitucional diz que essas Forças devem defender os poderes constitucionais, não derrubá-los.
Vendo a falta de futuro também nessa conversa, vou à próxima.
Uma mulher de meia-idade segurava um cartaz interessante. Veja a foto:
Pergunto à portadora do cartaz dizendo “Saímos do Facebook. Hahaha” o que o seu movimento pretende. Resposta: “Eu pretendo acabar com o PT”.
Hospício é assim: cheio de complexos de Napoleão.
Vejo, ao lado, alguém que me parece menos delirante. Outro homem de meia-idade, mas parecendo um pouco menos alucinado. Vejamos o diálogo.
– O que seria “intervenção militar”?
– É, talvez, um governo militar…
– Mas intervenção quer dizer que eles vão intervir em alguma coisa.
– Se for necessário, sim (…)
– O senhor acha que alguma coisa assim aconteceria nos Estados Unidos, por exemplo?
– Não entendi…
– Por exemplo: se alguém quiser derrubar o governo dos Estados Unidos, o que acontece? Se um cidadão pegar e for pra rua e disser “Olha, vou derrubar o governo Obama”, o que acontece? Acho que vai pra Guantánamo, não?
– Não sei… Não sei o que aconteceria lá, porque lá a democracia é pra valer, né?
– Lá não pode pregar “intervenção militar”, certo?
Já estava começando a me sentir meio maluco, também. Porém, a preocupação diminuiu porque aquele bando de doidos decidiu marchar. Conforme foram deixando a praça, começam os berros: “Fora, PT! Fora, PT!”.
Menos mal. Fora PT, fora Dilma, fora Lula é direito deles pedir.
Ou não?
Seja como for, pareceu-me menos maluco do que os diálogos que acabara de travar. Contudo, o surrealismo não tinha terminado.
Alguns metros mais e vejo uma cena ainda mais inusitada: dois rapazes de batina começam a rezar e logo a multidão toda abandona o “fora, PT” e se junta a eles.
Aproximo-me dos “padres” para saber se eram mesmo religiosos ou se estavam apenas fantasiados.
– Vocês são padres mesmo?
– Seminaristas.
(…)
– Vocês apoiam a “intervenção militar”?
– Se for a solução.
– Vocês apoiam um golpe militar?
– Se for a solução, mas não chamaria um golpe. Chamaria (…) de parar o governo para voltar ao início, aonde começou o erro.
(…)
— Mas você, um religioso… Você ficou sabendo de torturas, de assassinatos que a ditadura cometeu?
– Infelizmente fiquei sabendo, sim. Mas tem contrapartes (…)
– Mas você apoia que o Estado brasileiro torture pessoas, mate…
– Jamais.
– Mas foi o que aconteceu. Foi isso que a primeira marcha fez.
– Não foi cem por cento e não foi a marcha (…)
– Mas foi uma ditadura que durou vinte anos, em que mulheres foram estupradas diante dos maridos…
– O senhor está olhando só o lado negativo (…)
Sem entender como pode haver algo positivo em um regime que torturava, estuprava e assassinava pessoas, troco mais algumas palavras de cortesia e me mando de perto de quem, talvez, fosse o mais maluco, ali…
Enquanto tento fugir do hospício por alguns momentos para recuperar o fôlego – ou a razão – a tropa enlouquece de vez. Para de rezar e começa a berrar: “Ô Dilma, safada! Ô Dilma, Safada!”.
Juro que saí correndo. Ultrapassei a manifestação e dela me afastei até que não estivesse tão próxima. Sentei-me em uma mureta, pus o rosto entre as mãos, respirei fundo e disse a mim mesmo: você vai até o fim.
E lá fui eu.
Mas precisava de um pouco de sanidade. Via que as pessoas às portas dos comércios que não tinham fechado pareciam embasbacadas vendo aquele bando de doidos. Escolhi uma senhora e uma jovem à porta do metrô Anhangabaú que, aparentemente, estavam juntas.
Já orava por não ouvir mais maluquices. Não sei se Deus estava na manifestação, mas Ele me ouviu.
– O que vocês acham da proposta de uma “intervenção militar” no Brasil?
– Intervenção militar no Brasil – repete a senhora, fazendo um ar grave.
– É o que eles estão pedindo. Estão pedindo uma “intervenção militar”, ou seja, igual à que foi feita em 1964, quando os militares derrubaram o Jango Goulart.
– É, e eles governaram o Brasil, né?
– Por vinte anos…
– Não, isso não! Não!
A jovem entra na conversa: “Isso é um absurdo”.
Resolvi ficar com o pouco de lucidez que tinha. Dali, parei a entrevista e fui caminhando calmamente para a praça da Sé, junto com os fascistas. Mas sem falar com mais ninguém.
Quando chegamos à Sé, sinto-me culpado. Estava ali para ouvir os doidos. Tinha que prosseguir.
Tentei fazer mais algumas entrevistas, mas ao chegarem lá os fascistas pareceram ter ficado mais arredios.
Naquele momento, começa uma correria. Fui atrás. Os PM’s cercaram uma loja de eletrodomésticos onde manifestantes antifascistas se abrigaram. Pelo que pude entender, em meio à confusão, tinham ido devolver provocações e começou uma briga.
A PM controla logo a confusão. Volto para perto do protesto fascista, que agora jazia aos pés da Catedral da Sé.
Aproximo-me de uma senhora com o rosto pintado de verde e amarelo. Começo a falar, mas ela não responde. Fica me olhando longamente. De repente, começa a gritar e apontar para mim: “Blogueiro do PT! Blogueiro do PT! Cuidado, blogueiro do PT!”.
Fiquei sem ação por alguns segundos, mas logo notei três homens corpulentos que comentaram algo entre si e começaram a caminhar em minha direção. Eram enormes. Um deles, completamente careca. Não tinham cara de quem vinha pedir autógrafo.
Comecei a me afastar lentamente. Dei as costas à manifestação e apressei o passo. Olho para trás e vejo os três homens ainda vindo em minha direção. E também apressando o passo. Começo a correr. Olho para trás e eles estão correndo também.
Chego à escadaria do metrô antes deles. Ao passar pelos seguranças, eles desistem. Desço afobado a escadaria e passo como um raio pela catraca.
Estou no trem. Escrevo no Facebook a perseguição. Ainda contaminado pelos psicopatas, achei que se me pegassem na saída do metrô pelo menos as pessoas saberiam onde e como eu fora trucidado.
Enquanto me dirijo para casa, a frase que escrevi após ser perseguido no hospício em que os fascistas transformaram São Paulo não me sai da cabeça: que merda é essa que estão fazendo com o nosso país?
Assista, abaixo, ao vídeo do hospício São Paulo
https://www.youtube.com/watch?v=BU_XiasBkAw#t=40
Fonte da matéria: http://www.blogdacidadania.com.br/2014/03/fascistas-transformam-centro-de-sao-paulo-em-hospicio/