terça-feira, 15 de abril de 2014

Um certo Euclides

Dentre as três opções que se lhe apresentavam Euclides, é claro, optou pela menos fácil.
Ele jamais percorreria a distancia entre dois pontos em linha reta. Assim não havia qualquer trajeto curto o bastante, que não pudesse ser alongado. Não havia questão simples o suficiente, à qual não pudesse impor uma variável complicadora. Uma vez tomada a decisão que mudaria definitivamente sua vida Euclides abandonou seu escritório invadindo a rua. Pessimista como era, não esperava que aquela manhã chuvosa de junho se convertesse naquela tarde radiante, por este motivo conservava o guarda chuva ainda úmido em uma das mão enquanto a outra empunhava a surrada bolsa que transportava os papeis e processos do escritório. Depois de vencer a pé o trajeto entre o trabalho e sua casa, aproximadamente  onze quilômetros,  dez minutos de carro, mais de uma hora de caminhada, metade do trajeto morro acima, Euclides sentou-se em uma pedra e pôs-se a pensar: “Devo entrar pela porta da frente, pela porta dos fundos, ou devo pular uma das janelas”. Nenhuma das três, a mente brilhante de Euclides ofereceu-lhe ainda uma quarta alternativa, foi assim que seus curiosos vizinhos passaram a acompanhar, pela fresta aberta na cortina, sua escalada rumo ao telhado da casa. Quando ele pulou do galho do pessegueiro que se estendia sobre a casa, Bonifácio, seu vizinho, aposentado por invalidez pela Previdência Social por obra de uma ação manejada por Euclides na Justiça, apostou com a esposa, dona Anastácia, que ele cairia, e que certamente fraturaria a clavícula. Dona Anastácia dobrou a aposta afirmando que ele ficaria “tretaplégio”. Para a infelicidade de ambos Euclides executou com maestria o seu plano e em poucos segundos já havia removido as telhas e agora enfiava-se pelo buraco aberto no telhado saindo do campo de visão de seus vizinhos, motivo por que, mais tarde, quando perguntados, pelo Delegada da Comarca, Dra. Jurema Wulf, não souberam dizer, com exatidão, embora imaginassem, o que fazia Dona Eulália, esposa de Euclides com Darci, encanador, naquela tórrida tarde em sua casa. Euclides fugiu para o México, dizem alguns. Outros afirmam com veêmencia que ele continuou na cidade por um tempo, vivendo embaixo das pontes, irreconhecível, mas que depois a Prefeitura fez uma campanha de “limpeza” e ele foi mandado para o Paraná como indigente. Seu Bonifácio e dona Anastácia apostam com qualquer um que Euclides está disfarçado na cidade, e que deve lançar-se, segundo consta, a vereador nas próximas eleições.

II

Não era dificil adivinhar o que ocorreria naquela tarde. Logo depois de abandonar mais cedo  o escritório e flagar sua esposa transando com o encanador em cima da pia que vivia quebrada, todos só poderiam supor que ele matara os dois. Não foi o que aconteceu. Quando o viram entrando pela abertura que abrira no telhado, os dois amantes tomaram susto tal que se desequilibraram. Na queda, a pia, que já andava mal, veio abaixo, e é difícil explicar como, mas a gaveta dos talheres abriu-se e as facas que aí estavam acabaram ferindo mortalmente tanto ao encanador quanto à esposa de Euclides. Deparando-se com aquela situação, Euclides não perdeu a calma. Raciocinou que seria impossível convencer os jurados de que aquilo efetivamente tinha acontecido. E que a condenação por homicídio duplo qualificado pelas várias facadas desferidas (com lâminas diferentes, e garfadas inclusive) seria inafastável. Mas Euclides sempre fora um homem estritamente racional, frio, calculista. Bem, a pá estava atrás do galinheiro, de lá certamente seria visto pelos vizinhos, o que a essa hora não seria nada bom. De qualquer forma, tinha a impressão de ter visto qualquer movimento na cortina da janela da casa ao lado, o que denunciava que seus vizinhos provavelmente estavam espreitando pela fresta, como de costume, quando subiu ao telhado. Nesse caso, certamente sabiam que estavam na casa naquele momento: o encanador, ele e sua esposa. De qualquer modo embora pudessem supor o que se passava no interior da casa, não poderiam, pelo menos por enquanto, afirmar nada de concreto. Enquanto desencadeava esse raciocínio frio e lógico Euclides permanecia sentado na cadeira da cozinha, tamborilando os dedos sobre a mesa, esperando pela fervura da água para que pudesse tomar o seu chá de erva cidreira. Dona Anastácia estranhou a mancha vermelha na barra do paletó de Euclides quando este apareceu na sua porta solicitando autorização para colher no seu quintal umas folhas de erva cidreira para preparar um chá para sua esposa, que,  pelo que pode entender de sua fala atropelada, estava se sentindo um pouco mal devido a certos produtos químicos empregados pelo encanador para desentupir os canos da pia. Ainda comentou com seu Bonifácio, quando viram sumir na última curva, a passos ébrios, Euclides ao meio, abraçado com o encanador e sua esposa,  que o mundo de fato andava pelo avesso. Como podiam estes jovens fazerem tanta “vagabundagem” em plena luz do dia, e ainda virem conversar com os vizinhos na maior cara de pau. – “Eu devia ter lhes dado era um chá de boldo.”

- III - 

Quando acordou pela manhã Euclides não abriu os dois olhos simultaneamente. Deixou-se ficar de olhos fechados por alguns momentos sentindo a consciência despertar aos poucos dos sonhos agitados que tivera naquela noite. Calculou em pensamento dezessete minutos como o tempo necessário para recobrar suficientemente sua consciência. Tempo que uma vez decorrido autorizaria a abertura suave do olho esquerdo. Justamente aquele voltado para o lado contrário em que sua esposa dormia, ou seja, para o lado da parede. Depois de ter  escrutinado o território visível ao alcance de seu olho esquerdo Euclides finalmente sentiu-se seguro para permitir que a luz matinal penetrasse também em seu olho direito. Abriu-o, não suave, desta vez, mas, bruscamente. Neste mesmo momento sua esposa levantou-se sobressaltada, como que emergindo de um mergulho profundo. Não assustara-se com a abetura repentina do olho direito de Euclides, como podeis supor. Mas com os sonhos que agitavam seu inconsciente. Eustáquia, era a filha mais nova de uma família com 27 irmãs. Conhecera Euclides no casamento de uma de suas irmãs, e a paixão fora fulminante. Euclides na época relutou em abandonar o sacerdócio, entretanto, foi impossível resistir à tentação que para si significava Eustáquia, sobretudo quando a jovem moça passou a vir diariamente ao confissionário penitenciar-se por estar apaixonada pelo sacristão recém ordenado. Fato que se agravava considerando que o confissionário era apenas um dos bancos da igreja, no qual sentavam-se frente a frente - sem nenhuma proteção - o pecador e o absolvidor. Fato agravado ainda pelas vestes sensuais das quais não relutava em abrir mão a despudorada Eustáquia. Euclides mastigou o pão seco do café da manhã e rumou para o escritório sem saber quais foram os sonhos que despertaram tão adruptamente sua esposa de seu inocente sono. Mais tarde quando tomou o corpo ensangüentado de sua esposa nos braços talvez tivesse tido importância conhecer o teor de suas aflições. Contudo, prático como era, Euclides não atinou para isso, despiu pela última vez o corpo tênue de Eustáquia e procurou livrar-lhe das manchas de sangue, que maculavam sua alvura. Se tivesse feito o curso de especialização em medicina legal na faculdade de direito, certamente não teria lhe passado desapercebido que depois de limpar todo o sangue de Eustáquia não restara nenhum ferimento visível. Por esta razão Euclides ficou feliz em poder envolver o corpo tênue e alvo de sua amada pelo menos desta vez com o vestido florido que dera-lhe no natal passado e que ela nunca havia usado. Dona Anastácia ainda comentou com seu Bonifácio antes que os três sumissem de suas vistas para sempre: Olha meu velho, que esta é a primeira vez que vejo essa sem vergonha com uma roupa que esconda sua bunda!


 -  XIII - 

Euclides agora está sentado sobre os trilhos do trem. Mede com os olhos a distância entre si e a s pessoas que ao longe conversam. Parecem felizes. Parecem realmente felizes. Parecem. Euclides leva aos lábios vermelhos o gargalo da garrafa de vinho que traz envolta em um saco de pão.Mais alguns goles e estará vazia. A escuridão da noite é rompida algumas vezes pelos veículos que cruzam a Av. Marechal. Poucos a esta hora da
madrugada. Algumas imagens, reflexos de outros tempos, projetam-se em algum ponto incerto da cabeça de Euclides. Impulsos elétricos disparados entre os neurônios. Como naquelas nas noites em que depois do reboar das trovoadas, estalam no negrume do céu, improvisando traçados incertos. As imagens, aquelas primeiras, antes da comparação com os relâmpagos que iluminavam o céu de outrora, já não conservam a mesma nitidez. São fotos velhas, amarelecidas pelo tempo, que no poço profundo dos pensamentos se misturam à outras, distorcendo a realidade, criando novas lembranças no imaginário. São fatos novos, criados por uma mente cansada. Que se alimenta do passado, para recriar, o que poderia ter sido. Euclides, o que você fará da sua vida rapaz, ou do que resta dela. A esta pergunta, Euclides não obterá já a resposta, conservemo-la, nós que a conhecemos, para o futuro. Neste momento, enquanto cuidávamos de prescrutar seus pensamentos, Euclides, movido sabe-se lá por quais motivos resolveu levantar dos trilhos. A passos curtos, do tamanho da distância entre dois dormentes, ele segue acompanhando o sentido dos trilhos em direção ao centro da cidade. Deve amanhecer daqui a pouco. E a menos que queira se juntar aos maltrapilhos que fedem na calçada impedindo a felicidade dos cidadãos que pagam em dia seus impostos, trabalham 48 horas semanais e sabem que receberão o 13° salário para quitar suas dívidas contraídas nas lojas que se amontoam ao longo das ruas quentes da cidade, deve procurar um Hotel barato para passar os próximos dias. Na recepção informam-lhe o preço da diária. E cobram adiantado. Fato que Euclides atribui ao seu estado deplorável. Próprio de um homem ébrio, que não dorme nem se banha há mais de 3 dias. Com a barba feita, e os cabelos alinhados a imagem no espelho torna-se um pouco mais tolerável. Diferente do que vira há pouco refletido nas vitrines. Mas o sono parece ter-lhe abandonado por completo. Não há mais nada a fazer nesta cidade.

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