Dentre as três opções que se lhe
apresentavam Euclides, é claro, optou pela menos fácil.
Ele jamais percorreria a distancia entre dois pontos em
linha reta. Assim não havia qualquer trajeto curto o bastante, que não pudesse
ser alongado. Não havia questão simples o suficiente, à qual não pudesse impor
uma variável complicadora. Uma vez tomada a decisão que mudaria definitivamente
sua vida Euclides abandonou seu escritório invadindo a rua. Pessimista como
era, não esperava que aquela manhã chuvosa de junho se convertesse naquela
tarde radiante, por este motivo conservava o guarda chuva ainda úmido em uma
das mão enquanto a outra empunhava a surrada bolsa que transportava os papeis e
processos do escritório. Depois de vencer a pé o trajeto entre o trabalho e sua
casa, aproximadamente onze
quilômetros, dez minutos de carro, mais
de uma hora de caminhada, metade do trajeto morro acima, Euclides sentou-se em
uma pedra e pôs-se a pensar: “Devo entrar pela porta da frente, pela porta dos
fundos, ou devo pular uma das janelas”. Nenhuma das três, a mente brilhante de
Euclides ofereceu-lhe ainda uma quarta alternativa, foi assim que seus curiosos
vizinhos passaram a acompanhar, pela fresta aberta na cortina, sua escalada
rumo ao telhado da casa. Quando ele pulou do galho do pessegueiro que se
estendia sobre a casa, Bonifácio, seu vizinho, aposentado por invalidez pela
Previdência Social por obra de uma ação manejada por Euclides na Justiça,
apostou com a esposa, dona Anastácia, que ele cairia, e que certamente
fraturaria a clavícula. Dona Anastácia dobrou a aposta afirmando que ele
ficaria “tretaplégio”. Para a infelicidade de ambos Euclides executou com
maestria o seu plano e em poucos segundos já havia removido as telhas e agora
enfiava-se pelo buraco aberto no telhado saindo do campo de visão de seus
vizinhos, motivo por que, mais
tarde, quando perguntados, pelo Delegada da Comarca, Dra. Jurema Wulf, não
souberam dizer, com exatidão, embora imaginassem, o que fazia Dona Eulália,
esposa de Euclides com Darci, encanador, naquela tórrida tarde em sua casa.
Euclides fugiu para o México, dizem alguns. Outros afirmam com veêmencia que
ele continuou na cidade por um tempo, vivendo embaixo das pontes,
irreconhecível, mas que depois a Prefeitura fez uma campanha de “limpeza” e ele
foi mandado para o Paraná como indigente. Seu Bonifácio e dona Anastácia
apostam com qualquer um que Euclides está disfarçado na cidade, e que deve
lançar-se, segundo consta, a vereador nas próximas eleições.
Não era dificil adivinhar o que ocorreria naquela tarde.
Logo depois de abandonar mais cedo o
escritório e flagar sua esposa transando com o encanador em cima da pia que
vivia quebrada, todos só poderiam supor que ele matara os dois. Não foi o que
aconteceu. Quando o viram entrando pela abertura que abrira no telhado, os dois
amantes tomaram susto tal que se desequilibraram. Na queda, a pia, que já
andava mal, veio abaixo, e é difícil explicar como, mas a gaveta dos talheres
abriu-se e as facas que aí estavam acabaram ferindo mortalmente tanto ao
encanador quanto à esposa de Euclides. Deparando-se com aquela situação,
Euclides não perdeu a calma. Raciocinou que seria impossível convencer os
jurados de que aquilo efetivamente tinha acontecido. E que a condenação por
homicídio duplo qualificado pelas várias facadas desferidas (com lâminas
diferentes, e garfadas inclusive) seria inafastável. Mas Euclides sempre fora
um homem estritamente racional, frio, calculista. Bem, a pá estava atrás do
galinheiro, de lá certamente seria visto pelos vizinhos, o que a essa hora não
seria nada bom. De qualquer forma, tinha a impressão de ter visto qualquer
movimento na cortina da janela da casa ao lado, o que denunciava que seus
vizinhos provavelmente estavam espreitando pela fresta, como de costume, quando
subiu ao telhado. Nesse caso, certamente sabiam que estavam na casa naquele
momento: o encanador, ele e sua esposa. De qualquer modo embora pudessem
supor o que se passava no interior da casa, não poderiam, pelo menos por
enquanto, afirmar nada de concreto. Enquanto desencadeava esse raciocínio frio
e lógico Euclides permanecia sentado na cadeira da cozinha, tamborilando os
dedos sobre a mesa, esperando pela fervura da água para que pudesse tomar o seu
chá de erva cidreira. Dona Anastácia estranhou a mancha vermelha na barra do
paletó de Euclides quando este apareceu na sua porta solicitando autorização
para colher no seu quintal umas folhas de erva cidreira para preparar um chá
para sua esposa, que, pelo que pode
entender de sua fala atropelada, estava se sentindo um pouco mal devido a
certos produtos químicos empregados pelo encanador para desentupir os canos da
pia. Ainda comentou com seu Bonifácio, quando viram sumir na última curva, a
passos ébrios, Euclides ao meio, abraçado com o encanador e sua esposa, que o mundo de fato andava pelo avesso. Como
podiam estes jovens fazerem tanta “vagabundagem” em plena luz do dia, e ainda
virem conversar com os vizinhos na maior cara de pau. – “Eu devia ter lhes dado
era um chá de boldo.”
- XIII -
Euclides agora está sentado sobre os trilhos do trem. Mede com os olhos a distância entre si e a s pessoas que ao longe conversam. Parecem felizes. Parecem realmente felizes. Parecem. Euclides leva aos lábios vermelhos o gargalo da garrafa de vinho que traz envolta em um saco de pão.Mais alguns goles e estará vazia. A escuridão da noite é rompida algumas vezes pelos veículos que cruzam a Av. Marechal. Poucos a esta hora da
madrugada. Algumas imagens, reflexos de outros tempos, projetam-se em algum ponto incerto da cabeça de Euclides. Impulsos elétricos disparados entre os neurônios. Como naquelas nas noites em que depois do reboar das trovoadas, estalam no negrume do céu, improvisando traçados incertos. As imagens, aquelas primeiras, antes da comparação com os relâmpagos que iluminavam o céu de outrora, já não conservam a mesma nitidez. São fotos velhas, amarelecidas pelo tempo, que no poço profundo dos pensamentos se misturam à outras, distorcendo a realidade, criando novas lembranças no imaginário. São fatos novos, criados por uma mente cansada. Que se alimenta do passado, para recriar, o que poderia ter sido. Euclides, o que você fará da sua vida rapaz, ou do que resta dela. A esta pergunta, Euclides não obterá já a resposta, conservemo-la, nós que a conhecemos, para o futuro. Neste momento, enquanto cuidávamos de prescrutar seus pensamentos, Euclides, movido sabe-se lá por quais motivos resolveu levantar dos trilhos. A passos curtos, do tamanho da distância entre dois dormentes, ele segue acompanhando o sentido dos trilhos em direção ao centro da cidade. Deve amanhecer daqui a pouco. E a menos que queira se juntar aos maltrapilhos que fedem na calçada impedindo a felicidade dos cidadãos que pagam em dia seus impostos, trabalham 48 horas semanais e sabem que receberão o 13° salário para quitar suas dívidas contraídas nas lojas que se amontoam ao longo das ruas quentes da cidade, deve procurar um Hotel barato para passar os próximos dias. Na recepção informam-lhe o preço da diária. E cobram adiantado. Fato que Euclides atribui ao seu estado deplorável. Próprio de um homem ébrio, que não dorme nem se banha há mais de 3 dias. Com a barba feita, e os cabelos alinhados a imagem no espelho torna-se um pouco mais tolerável. Diferente do que vira há pouco refletido nas vitrines. Mas o sono parece ter-lhe abandonado por completo. Não há mais nada a fazer nesta cidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário