domingo, 8 de março de 2015

A crise política no presidencialismo que deveria ser de coalizão; Por Sérgio Abranches

08/03/2015 09h15m. Atualizado em 08/03/2015 09h15m

A coalizão governista está irremediavelmente fraturada. Nenhum remendo pode salvá-la. Só a mudança profunda na relação entre a presidente e os partidos que a apoiavam, para recontratar a aliança em novas bases. Implicaria em reduzir significativamente a presença do PT e aumentar a participação dos demais partidos. Isso exigiria uma compreensão da política de coalizões, de gestão de alianças e mediação de conflitos que a presidente Dilma Rousseff jamais demonstrou ter. As lideranças petistas que a cercam tampouco demonstraram ter esse nível de compreensão dos limites e possibilidades da política de coalizões. Agrava-se esse quadro com o enfraquecimento e divisão das principais lideranças dos partidos da coalizão no Congresso Nacional, com a instauração dos inquéritos que abrem nova fase da operação Lava-Jato. Esse é um cenário de divisão e conflito entre os políticos, os partidos e a Presidência.
Deixo de analisar a política internacional, para tratar da política nacional. Tenho recebido muitos pedidos para falar sobre a crise política, em virtude de ter criado e descrito analiticamente o “presidencialismo de coalizão” como o modelo político brasileiro. O presidencialismo de coalizão define como premissa da governança e da governabilidade a existência de uma coalizão multipartidária minimamente coerente e coesa, que dê condições à Presidência da República de formar maiorias que apóiem suas principais medidas legislativas e barrem iniciativas que possam comprometer as políticas públicas com as quais está comprometida. A coalizão define o “poder de agenda” do governo.
A presidente Dilma Rousseff sempre tratou sua coalizão como uma coligação eleitoral, que esgota suas funções ao lhe garantir os votos nos colégios eleitorais dominados por caciques eleitorais para se eleger. Ela, como Lula, sempre dependeu de votos de redutos não-petistas par alcançar a maioria eleitoral. O fato de ambos terem sido eleitos no segundo turno, em todas as eleições, mostra, com clareza, que o PT não tem capacidade de produzir maiorias eleitorais, nem parlamentares. Mas a coligação eleitoral tem que ser transformada em coligação governamental.
A aliança eleitoral tem três eixos principais de negociação. O primeiro é a expectativa de poder e a possibilidade de integrar, com vantagens, a coalizão governamental. A moeda de troca é a partilha do poder executivo. O segundo, é a perspectiva de eleger a maior bancada possível, dada pela soma dos votos de todos, beneficiando os mais votados de cada partido, dentro do quociente eleitoral. O terceiro, é financeiro. A moeda é o financiamento das campanhas. Uma parte é paga em tempo real, ao longo da campanha. Outra parte é paga posteriormente, para cobrir dívidas de campanha. Nem vou entrar nos ganhos pessoais e partidários, obtidos com corrupção eleitoral e administrativa. Mesmo na hipótese, pouco plausível, de que todo o dinheiro de campanha entre pelo “caixa um”, como alegam todos os políticos, exceto os mais cínicos, a busca de fatias maiores na partilha dos recursos arrecadados é um incentivo poderoso para entrar nas coligações eleitorais, tanto situacionista, como oposicionistas.
A moeda principal na negociação da coalizão de governo é a participação proporcional no poder governamental. Essa negociação só pode ocorrer depois do primeiro turno, quando se fica sabendo o tamanho das bancadas. Por isso é um erro fatal confundir a coligação eleitoral com a coalizão governamental. A negociação da coalizão começa no segundo turno, para ser fechada após o processo eleitoral, na montagem do governo.
É fácil ver, a partir dessa análise, onde reside o problema político que a presidente Dilma Rousseff nunca conseguiu resolver. Ela frustrou os partidos aliados em sua expectativa de participação no poder governamental, desde o início. No primeiro mandato, garantiu a governança com muito gasto público e popularidade muito alta. No segundo, começou já enfrentando a crise política. Deve-se adicionar à sua coleção espantosa de déficits, o déficit político-partidário, relativo às expectativas frustradas dos aliados. Esse déficit, como todos os outros, agravou-se significativamente na montagem do governo e ao longo do primeiro trimestre de 2015. O PT continuou hegemônico na coalizão. A presidente continuou concentrando o poder decisório. Os incontáveis ministros não têm poder. Nem despacham com a presidente. Todos se sentem rebaixados, quando não destituídos de qualquer autoridade. No poder só entram alguns poucos petistas. É uma via expressa para o impasse político e a crise, produzindo elevado déficit de governança e riscos crescentes à governabilidade.
O ex-presidente Lula tinha, no começo, um poderoso e autônomo articulador político, que havia controlado por mais de uma década a Executiva do PT e cuidava da gestão da coalizão. Era o poderosíssimo Chefe do Gabinete Civil, José Dirceu, hoje cumprindo pena, condenado no processo do “mensalão”. Com a crise política do mensalão, Lula armou um palanque permanente no país e usou sua popularidade pessoal para manter e ampliar o “lulismo”, reeleger-se e garantir independência em relação ao PT e à própria coalizão. Os políticos da coalizão quando retornavam a suas “bases” eleitorais sentiam o peso da popularidade presidencial, que mantinha a coalizão refém do presidente. Hoje, quando os políticos retornam a suas bases sentem o peso da impopularidade da presidente e o forte ressentimento dos eleitores contra ela. Dilma só teria a oferecer-lhes mais poder. Com a crise provocada pela Lava-Jato, nem mais poder apenas seria suficiente. Seria necessário compartilhar o poder garantir reduzindo o poder do PT e a centralização decisória na Presidência.
O vice-presidente, Michel Temer, tem pouco a lhe oferecer neste momento. Ele nunca foi uma liderança poderosa no PMDB. Era influente, mas com pouco poder. Jamais conseguiu liderar o partido no seu estado-base, São Paulo, como Orestes Quércia comandou. O PMDB é um condomínio de facções estaduais e locais. O poder deriva do controle das facções e das bancadas. Temer conseguia ser o síndico desse condomínio, exatamente por não comandar facção, nem controlar bancadas. Conseguia o comando nacional porque exercia um comando com pouco poder equilibrando as forças internas. Ele ficou mais forte ao se aliar a Lula e Dilma, no auge da popularidade. Mas é poder derivado e externo ao partido. Se Dilma não lhe dá voz, o partido não o ouvirá. Continuará ouvindo os chefes políticos faccionários.
A crise política vai se agravar com a Lava-Jato e ameaça culminar na paralisia do Legislativo. É alta a probabilidade de rompimento dos tênues liames que mantém a “coalizão-zumbi”. A dinâmica hoje é claramente centrifuga, de afastamento da presidência. Na relação entre os partidos no Congresso, a chance é que predomine o perigoso “shifting the blame”, “transferindo a culpa”, comportamento típico de políticos em busca da autopreservação. A inflação ainda vai subir. A recessão ainda vai piorar. Tudo isso aumentará o desconforto da população e afetará negativamente a popularidade da presidente. Nesse quadro, a rejeição provocada por escândalos de corrupção aumenta. Sem popularidade e com alta rejeição só caberia à presidente abdicar de uma larga fatia de poder e entrega-la à coalizão. A saída política possível é mudar o modelo de governança do “centralismo” para o “poder compartilhado”. Isto é, transformar o governo petista em governo de coalizão. Essa mudança requereria uma compreensão da política de coalizões e uma habilidade política que a presidente jamais demonstrou ter.
Fonte: http://www.matheusleitao.com.br/7499-crise-politica-no-presidencialismo-que-deveria-ser-de-coalizao-por-sergio-abranches.html

Nenhum comentário:

Postar um comentário