O Plenário do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decidiu, por unanimidade, na sessão desta quinta-feira (30), desaprovar parcialmente a prestação de contas do Partido dos Trabalhadores (PT) relativa ao exercício de 2009. No entanto, ao decidir qual seria a punição a ser aplicada ao partido, por maioria, os ministros determinaram a devolução ao erário do valor de R$ 4,995 milhões, além de suspender, por três meses, as cotas do Fundo Partidário.
O relator, ministro Admar Gonzaga, apesar de votar pela desaprovação parcial das contas, votou pela devolução de R$ 2,325 milhões e, caso esse valor não fosse pago, o partido sofreria a suspensão das cotas do Fundo Partidário por dois meses.
Divergência
O ponto principal de divergência, iniciada pelo ministro Gilmar Mendes em relação ao voto do ministro Admar Gonzaga, se deu quanto a uma dívida do PT com o Banco Rural, transação que foi considerada negócio simulado durante o julgamento da Ação Penal 470 pelo Supremo Tribunal Federal. A AP 470 apurou crimes durante o processo chamado de “mensalão”.
A Assessoria de Exame de Contas Partidárias do TSE (Asepa) considerou como irregular o pagamento do empréstimo do PT junto ao Banco Rural. Na origem, o partido efetuou o empréstimo em 2003 no banco, cuja amortização, no valor de R$ 2,670 milhões foi realizada em 2009 com recursos do Fundo Partidário.
A Asepa entendeu ainda que, de acordo com o Código Civil, o contrato originário e as sucessivas renovações não subsistem no mundo jurídico. Por essa razão, avaliou como irregular a amortização da dívida com recursos do Fundo Partidário.
No entanto, o ministro Admar Gonzaga considerou que o órgão técnico do TSE não teria competência para analisar as consequências jurídicas do negócio, tido como simulado em processo de natureza penal, “competindo-lhe tão somente uma análise contábil e financeira das contas prestadas pelos partidos”. Assim, o ministro julgou o pagamento como regular.
Disse que uma eventual discussão sobre a regularidade do empréstimo e seu pagamento teria que se realizar por meio de instância própria. “Fazer pela instância eleitoral prestação de contas partidárias, os efeitos jurídicos, os negócios considerados simulados na esfera penal, somente poderia ser respeitado diante o direito ao contraditório e a ampla defesa dos envolvidos, o que na espécie não é admissível, porquanto não tendo o partido integrado a referida ação não lhe foi permitida a impugnação do seu conteúdo e a produção de contra prova”, afirmou.
Ao divergir, o ministro Gilmar Mendes, acompanhado pelos demais ministros, disse que o STF considerou o empréstimo simulado para fins de imputação penal. “Essa matéria faz coisa julgada em qualquer outra esfera”, completou o ministro Luiz Fux. Gilmar Mendes acompanhou apenas em parte o relator ao desaprovar parcialmente as contas de 2009 do Partido dos Trabalhadores. Quanto às sanções, o ministro, além da devolução de R$ 2,325 milhões sugerida pelo relator, incorporou os R$ 2,670 milhões devidos pelo partido ao Banco Rural. Além disso, aumentou para três meses a suspensão das cotas do Fundo Partidário.
O presidente do TSE, ministro Dias Toffoli, esclareceu que a Procuradoria Geral Eleitoral (PGE) entendeu que houve uma sentença homologatória do acordo na ação de execução proposta contra o PT e que essa decisão não poderia ser desconsiderada no julgamento das contas partidárias.
O ministro Luiz Fux lembrou que a decisão do STF sobre o acordo feito entre o PT e o Banco Rural foi considerada uma simulação. “É um fato notório. Nós temos a condenação do banqueiro, do presidente do partido. Nós temos a decisão do Supremo dizendo claramente que é uma simulação”, afirmou, ao endossar o presidente da Corte.
Falhas
De acordo com o ministro-relator, da análise das contas do PT de 2009, não foram supridas as seguintes falhas apontadas pelos técnicos do TSE: não apresentação de documentos bancários de repasses a diretórios estaduais no valor de R$ 8 mil; não pagamento de juros de mora no valor de R$ 1,297 milhão; ausência de documentos fiscais e pagamentos de gastos com o Fundo Partidário no valor de R$ 65 mil; não apresentação de documentos bancários de passagem aérea correspondentes a R$ 77; repasse indevido no valor de R$ 200 mil; recursos de origem não identificada no valor de R$ 76 mil; ausência de documentos fiscais e de pagamento de gastos com recursos próprios no valor de R$ 6 mil e demonstrativo que não assegura a realidade da distribuição do Fundo Partidário no valor de R$ 70 mil.
TSE julga contas de 2009 e determina que partidos devolvam dinheiro ao erário
O Plenário do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) julgou, na sessão desta terça-feira (28), as prestações de contas de cinco partidos políticos referentes ao exercício de 2009. Foram levadas a julgamento as contas do Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB), Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), Partido Trabalhista Nacional (PTN), Partido da República (PR) e Partido Popular Socialista (PPS). Os ministros desaprovaram parcialmente as contas apresentadas pelos diretórios nacionais do PRTB, PSOL e PPS e aprovaram com ressalvas as contas do PTN e do PR.
PRTB
A relatora das contas do PRTB, ministra Maria Thereza de Assis Moura, conduziu o voto, seguido à unanimidade, no sentido da desaprovação parcial e determinou o recolhimento pelo partido de R$ 46 mil ao Fundo Partidário, devido à existência de recursos de origem não comprovada. A ministra apontou falhas que, segundo afirmou, comprometem a regularidade das contas. Disse que a jurisprudência do TSE é pacifica no que diz respeito à existência de recursos de origem não identificada, o que indica a desaprovação das contas.
PPS
Também relatora das contas do PPS, a ministra Maria Thereza de Assis Moura votou pela desaprovação parcial. Afirmou que o órgão técnico do TSE constatou na documentação apresentada recursos de origem não identificada no valor de R$ 494 mil, que devem ser recolhidos ao Fundo Partidário. Em razão das irregularidades verificadas na aplicação de verbas do Fundo, a relatora determinou a devolução de R$ 1,054 milhão ao erário, devidamente atualizados e pagos com recursos próprios do partido. A ministra decidiu ainda suspender por um mês o repasse da cota do Fundo Partidário à legenda.
PSOL
O ministro Gilmar Mendes, relator das contas do PSOL, votou pela desaprovação parcial. Disse julgar incabível a aplicação do princípio da proporcionalidade para torná-las legais, pois foram constatadas irregularidades relativas à aplicação do Fundo Partidário no valor de R$ 400 mil. Determinou ainda que esse valor seja ressarcido ao erário por meio de recursos próprios.
PTN
O plenário também acompanhou, por unanimidade, o relator das contas do PTN, ministro Luiz Fux, que as aprovou com ressalvas. Disse que houve irregularidades apuradas nas contas, além de não comprovação de despesas e aplicação inadequada do Fundo Partidário. No entanto, salientou que essas irregularidades alcançaram apenas o montante de R$ 34 mil, “circunstância que autoriza a aplicação dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade considerando que o percentual é irrisório em relação ao total da movimentação contábil”. Na decisão, determinou que o valor seja recolhido ao erário.
PR
Ao relatar as contas do PR, o ministro Luiz Fux ressaltou que a situação do partido é a mesma do PTN e determinou a aprovação das contas com ressalvas, com o ressarcimento ao erário no valor de R$ 84 mil.
Seriedade
Durante o julgamento das contas, o ministro Gilmar Mendes observou que “as agremiações partidárias têm de tratar o assunto com a devida seriedade, e é preciso que profissionalizem a aplicação e a prestação de contas”.
O presidente do TSE, ministro Dias Toffoli, informou que houve a mudança normativa do Congresso Nacional em 2009 alterando o procedimento de administrativo para jurisdicional nas prestações de contas partidárias e estabelecendo a prescrição delas em cinco anos. “O que esta Corte fez foi aplicar a legislação em relação às contas anteriores ao ano de 2009. Nada mais, nada menos, do que aplicar aquilo que foi deliberado pelo Congresso Nacional”.
Ressaltou ainda que o TSE não havia alterado, até 2014, após a norma do Congresso Nacional, sua resolução sobre prestação de contas partidárias. Disse que a resolução foi alterada exatamente para adequar a norma, que era do início do ano 2000, quando, pela Lei Partidária, a prestação de contas era administrativa, sendo preciso adequá-la ao processo jurisdicional. “Essa resolução foi inclusive muito festejada por todos porque estabelece maior transparência, ritos e procedimentos para que a Corte possa julgá-las a tempo e a hora”, afirmou.
Partidos têm até quinta-feira (30) para entregar prestações de contas de 2014
Termina nesta quinta-feira (30) o prazo para os 32 partidos políticos com registro no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) apresentarem suas prestações de contas partidárias relativas ao exercício de 2014. Os diretórios nacionais das legendas devem entregar no TSE as respectivas prestações de contas. Já os diretórios estaduais devem apresentá-las aos Tribunais Regionais Eleitorais (TREs), e os diretórios municipais, nas zonas eleitorais. Até sexta-feira (24), apenas quatro partidos (PRB, PSC, PRP e PPL) haviam entregue as prestações de contas no TSE.
A apresentação da prestação de contas pelos diretórios nacionais, estaduais e municipais e comissões provisórias dos partidos deve seguir as Orientações Técnicas nº 1 e nº 2 de 2015, da Assessoria de Exame de Contas Eleitorais e Partidárias (Asepa) do TSE, nos termos da Portaria TSE nº 107 de 4 de março deste ano. Os procedimentos estabelecidos nas Orientações Técnicas nº 1 e 2 devem também ser observados para as prestações de contas de exercícios anteriores a 2014, eventualmente não entregues à Justiça Eleitoral.
A entrega da prestação de contas anual pelos partidos políticos é determinada pela Constituição Federal (artigo 17, inciso III) e pela Lei dos Partidos Políticos (Lei nº 9.096/1995 – artigo 32). De acordo com a legislação, compete à Justiça Eleitoral fiscalizar as contas dos partidos e a escrituração contábil e patrimonial, para verificar a correta regularidade das contas, dos registros contábeis e da aplicação dos recursos recebidos, próprios ou do Fundo Partidário.
Há dois tipos de prestações de contas que devem ser feitas à Justiça Eleitoral: a do período eleitoral e a partidária anual. No caso de ano eleitoral, os candidatos, os partidos e os comitês financeiros têm de encaminhar as prestações de contas em três momentos, sendo duas entregas parciais em agosto e setembro do ano eleitoral, e a prestação final, tanto do primeiro turno quanto do segundo, se houver, até o término de novembro. Com relação à prestação anual das contas partidárias, todos os partidos registrados na Justiça Eleitoral têm de entregar as contas até 30 de abril do ano posterior ao exercício.
As contas
A legislação estabelece que a Justiça Eleitoral deve exercer a fiscalização sobre a escrituração contábil e a prestação de contas dos partidos e, em caso de ano eleitoral, sobre as despesas de campanha. As prestações de contas devem conter: a discriminação dos valores e a destinação dos recursos recebidos do Fundo Partidário; a origem e o valor das contribuições e doações; as despesas de caráter eleitoral, com a especificação e comprovação dos gastos com programas no rádio e televisão, comitês, propaganda, publicações, comícios e demais atividades de campanha; e a discriminação detalhada das receitas e despesas.
Em "Diário de um Sapato Acima de Qualquer Suspeita",
um calçado relata suas aventuras sexuais com pessoas;
em "Pão Furtado", um homem se apaixona por um pãozinho
CAPA
Erotismo fantástico
Escritor Péricles Prade lança livro de contos eróticos, defendendo a postura de que o gênero deve tratar de desejos – desviantes ou não – em vez de se ater à mera descrição de atos sexuais
A rotina de Péricles Prade é a mesma há anos. Durante o dia, trabalha como advogado, à noite e nos fins de semana, dedica-se à leitura e à criação literária. Embora não seja escritor em tempo integral, tem uma vasta bibliografia. Poesia, conto, romance e jurídico são alguns dos gêneros dos mais de 70 títulos publicados. Hoje, na Assembleia Legislativa de Santa Catarina, na Capital, ele lança Espelhos Gêmeos – Pequeno Tratado das Perversões, obra que reúne 25 contos de erotismo fantástico escritos ao longo dos últimos 10 anos.
Em Diário de um Sapato Acima de Qualquer Suspeita, um calçado relata suas aventuras sexuais com pessoas; em Pão Furtado, um homem se apaixona por um pãozinho; e em Escorpião, o animal é usado em uma vingança contra um personagem que bolinou a noiva alheia. Apesar do boom vivido pela literatura erótica, o novo livro do autor catarinense em nada se assemelha aos best-sellers do tipo Cinquenta Tons de Cinza, que ele define como lixo.
– Trata-se de pornografia com pretensão literária. Não sou o único escritor que vê a trilogia sob esse ângulo. Literatura erótica tem outra dimensão, à margem da mera descrição de atos sexuais, objetivando excitação patológica ou não. O alvo da verdadeira literatura erótica é o desejo, desviante ou não. No meu caso, trato de desvios representados por várias espécies de perversões. Contudo, vendo-as sob o foco erótico e não pornográfico ou obsceno – explica.
A maior diferença, ao se comparar Espelhos Gêmeos com os títulos anteriores do autor, é que o erotismo foi concentrado em uma única obra. Contos e poemas eróticos integram outros trabalhos, ainda que de forma esparsa. Franz Kafka, Jorge Luis Borges e os poetas franceses Mallarmé e Rimbaud são as principais referências literárias de Prade, que aos 72 anos dispensa o uso do computador e prefere escrever seus livros à mão.
– Escrevo no escritório de casa, às vezes no exterior, impactado pelas viagens.
Espelhos Gêmeos chega ao mercado pela editora paulista Iluminuras, com distribuição em todo o Brasil.
– O público vai se surpreender porque o erótico constitui apenas o meio para revelar as transgressões próprias da humanidade.
A história nos oferece alguns pontos para a reflexão crítica para que não enfrentemos de maneira maniqueísta os problemas políticos de nossos dias.
Abril de 1892. O Supremo Tribunal Federal se reúne para julgar o famoso habeas corpus n° 300, considerado a primeira decisão do tribunal num caso político de grande repercussão. A decisão de não concessão da ordem é considerada, pelos que valorizam o controle judicial de normas e atos do poder público, uma capitulação do Tribunal à pressão do Vice-Presidente em exercício o Marechal Floriano Peixoto. Nesta ocasião, Floriano teria afirmado algo como: “se o Supremo Tribunal conceder o habeas corpus, eu não sei quem concederá a ordem para os seus ministros, que dela necessitarão”.
O evento, ensinado nas faculdades e conhecido por todo bacharel em direito, é um dos motivos pelos quais o Marechal é considerado persona non grata no meio jurídico. A antipatia foi reforçada pelas primeiras histórias do STF nos anos sessenta que, em busca de precedentes da atuação do Tribunal contra as violações de direitos praticadas pelo regime civil-militar, interpretaram os atritos entre o Tribunal e o governo Floriano nos anos iniciais da República como conflitos entre juristas e militares.
A coincidência de datas serve para apresentar algumas considerações, não em defesa da truculência do Marechal, mas sobre a inventividade de juristas que se colocam a serviço das forças em embates políticos e seus efeitos para a Constituição. Para a discussão é preciso lembrar alguns dados sobre a situação política do momento.
O Marechal Floriano Peixoto foi eleito Vice-Presidente, como parte do desafio ao Marechal Deodoro da Fonseca, chefe do Governo Provisório e candidato à Presidência da República nas eleições indiretas que se realizariam no Congresso Constituinte em fevereiro de 1891. Deodoro entrara em repetidos conflitos com o Congresso e, para as eleições, fez ameaças explícitas, a fim de evitar a vitória do outro candidato, o presidente da Constituinte, Prudente de Moraes. Pressionados, os congressistas elegeram-no à Presidência, mas escolheram para a Vice-Presidência um militar que se opunha a ele, Floriano Peixoto, então ministro da Guerra.
Em 03/12/1891, o Presidente Deodoro, com o apoio de governadores interinos, nomeados por ele mesmo, decreta o fechamento do Congresso e estado de sítio, com a perseguição dos seus líderes, a censura à imprensa e outras medidas. As lideranças do Congresso voltam a seus estados, onde conseguem apoio político, enquanto os militares organizam a resposta armada. Em 23 de dezembro, sob a pressão dos encouraçados que iniciam o bombardeio da Capital, Deodoro, doente e decepcionado com as cisões entre seus pares, renuncia ao poder ao seu Vice, Floriano Peixoto.
O Marechal Floriano Peixoto é, junto com Antônio Conselheiro, o personagem da Primeira República sobre o qual mais se fizeram conjecturas sobre as relações entre raça e comportamento. Floriano teria comportamentos ambíguos, omissões oportunistas, traições e pretensões ao governo pessoal, pois apenas o seu caráter sinuoso poderia explicar como se deu a sua ascensão à Presidência. As variadas tentativas de explicar essas relações revelam mais os preconceitos raciais e sociais dos analistas do que qualquer informação relevante sobre ele. Mostram que as elites intelectuais e políticas não aceitavam que a direção política do Estado fosse ocupada por um sujeito aos quais atribuíam os traços de um caboclo, de origem social relativamente modesta, e com hábitos e atitudes pessoais que confrontavam os protocolos do mundo oficial.
Ele era um troupier, oficial que não fora formado nos moldes das doutrinas científicas da Escola Militar, ascendera na carreira por atos de bravura durante a Guerra do Paraguai e estivera ao lado dos republicanos desde a Propaganda. Ele era um outsider no establishment político. Primeiro, por seu comportamento arredio, pouco comunicativo e seus hábitos pessoais. Em seguida, pelas políticas em benefício da plebe urbana do Rio de Janeiro, que fez desde o início do seu governo e que seriam acompanhadas de outras, incentivar a produção nacional, sanear e regrar as cidades, fortalecer as comunicações e transportes e, ainda, investir na capacidade de defesa do país. Enfim, por ser aguerrido político que rejeitava a conciliação, não cedia às pressões nem fazia acordos com rebeldes.
Porém, Floriano Peixoto fora eleito Vice-Presidente “para o primeiro período presidencial” segundo a regra do art. 1° das Disposições Transitórias da Constituição de 1891. As elites políticas teriam que esperar as eleições de 1894 e assim suportar a sua permanência no governo por mais três anos. Embora inicialmente tenha havido consenso de que ele tinha direito a permanecer até o final do seu mandato, nas semanas seguintes passaram a circular interpretações da Constituição segundo as quais seria necessário convocar eleições imediatas, pela combinação das regras dos arts. 42 e 47 da Constituição.
O argumento era que Floriano fora eleito estritamente para o cargo de Vice-Presidente para substituir apenas temporariamente o Presidente. Se a substituição fosse permanente, haveria a mudança da natureza do cargo ao qual ele fora investido. Dado que Deodoro renunciou antes de dois anos de exercício no cargo, deveria ser aplicada a regra da parte permanente, que previa a realização de eleições. Essa doutrina, defendida inclusive pelo “príncipe” dos nossos juristas, Rui Barbosa, circulou na imprensa, no Clube Militar e no Congresso. Os próprios ministros aconselharam Floriano que a melhor saída seria a realização de eleições, ao que ele teria respondido que apenas duas forças seriam capazes de tirá-lo do seu cargo: “a lei ou a morte”. A sua permanência no cargo foi, afinal, reconhecida pelo Congresso.
Logo depois do contragolpe de 23 de novembro, os militares aliados a Deodoro, liderados pelo almirante Eduardo Wandenkolk, agitam-se para derrubar o governo. Eles se valem das dificuldades econômicas do governo e das reações às deposições dos governadores e demissões de funcionários que apoiaram o golpe. Eles usam a pressão legal no Congresso e na imprensa, e promovem levantes em 13 e 14 de dezembro, que se repetem em 19 de janeiro seguinte, com motins em navios e fortalezas militares da Capital Federal, além de tentativas de tomada do poder nos estados. O governo consegue reprimir os levantes e recebe apoio do Congresso, que entra em recesso em 21 de janeiro, como uma autorização branca para ele agir sem embaraços parlamentares.
Entre janeiro e abril, os deodoristas promovem novas tentativas de derrubar Floriano, com base na tese da necessidade de novas eleições. Recebem apoio de lideranças do Congresso e da imprensa, divulgam rumores constantes de contragolpe e preparam uma grande conflagração, que deveria acontecer no dia 1° de abril. No entanto, a tentativa fracassa e no dia 06 os treze generais que apoiam o movimento golpista lançam Manifesto, no qual, atribuindo-se o papel de intérpretes da Constituição, afirmam que só haveria a restauração da paz “com a eleição do Presidente da República, feita o quanto antes, como determina a Constituição e a lei eleitoral”. Floriano decreta a detenção e reforma dos generais.
Em 10 de abril, os deodoristas planejam novo golpe, por meio de uma manifestação popular que se tornaria passeata até o palácio presidencial. Floriano dirige-se pessoalmente à manifestação e, com o apoio de forças policiais, dá ordem de prisão ao seu líder, o tenente-coronel Mena Barreto. Este atende à ordem e os demais manifestantes se dispersam. Naquela noite, o Vice-Presidente em exercício decreta o estado de sítio no Distrito Federal e suspende as garantias constitucionais, determinando a prisão dos principais envolvidos, que são também demitidos de seus cargos e comissões.
Rui Barbosa impetra habeas corpus no STF , com base na doutrina da supremacia judicial, defendendo que o Judiciário poderia conhecer os atos de decretação do estado de sítio e apreciar as medidas tomadas mesmo durante a sua vigência. Ele aponta, entre outros pontos, falhas procedimentais, ilegalidades nas detenções e a extensão indevida das medidas. Afirmava-se que Rui Barbosa, ele próprio rompido com Floriano desde a deposição do governo da Bahia que apoiou o golpe de Deodoro, e seus aliados davam apoio velado aos golpistas.
No dia 27, o STF denega a ordem de habeas corpus, por considerar que não cabia ao Judiciário intervir em casos de sítio, que os efeitos deste se mantinham depois do fim de sua vigência etc. Afirma-se que a pressão política teria sido determinante para a decisão, mas a orientação do Tribunal foi mantida, com variações, ao longo da Primeira República. Ou seja, se a pressão mudou o quórum da decisão, é pouco provável que tenha sido capaz de alterar o seu resultado.
Por sua vez, os militares, inconformados com a permanência de Floriano no exercício do seu mandato fazem novas tentativas de derrubar o governo. Em setembro de 1893, ocorre a Revolta da Armada, sob a liderança dos almirantes Wandenkolk, Saldanha da Gama e Custódio de Mello, que fecha a baía de Guanabara e bombardeia a Capital. Os revoltosos aliaram-se aos federalistas no Rio Grande do Sul e o conflito se prolongou por longos meses.
O contexto do habeas corpus n° 300 indica a instabilidade da situação e a agudeza dos conflitos políticos. Eles foram incendiados por interpretações criativas da Constituição, formuladas por juristas, para apoiar a deposição de Floriano. Não se tratava de atritos entre civis e militares, mas da defesa de um governo constitucional, apoiado pela maioria do Congresso, que, efetivamente, praticava ilegalidades e fazia pouco caso do judicial review, contra grupos de militares e civis levantados em armas para depô-lo e, provavelmente, restaurar a monarquia.
Não se pode pretender que o passado se repete e a história seja a mestra da vida, mas ela nos oferece alguns pontos para a reflexão crítica: não tomar pelo seu valor de face a memória heróica recebida e nem o maniqueísmo com que os problemas do dia nos são apresentados; a jurisdição constitucional não é sinônimo de pacificação dos conflitos, mas uma arena que pode torna-los torna ainda mais agudos; e, enfim, nós, aprendizes de juristas, devemos desconfiar das teses inventadas pelos virtuoses da dialética, mesmo que sejam nossos próprios mestres, pois, tal como cada um de nós, eles estão engajados nos embates políticos do seu tempo. Nosso engajamento é também para evitar que o direito se apague em tempos difíceis. Por Andrei Koerner - Carta Maior
Cassação de vereador de Morro Grande é mantida pelo TRE-SC
Palavras Chave: Abuso Poder Econômico; Compra de Votos; Coação eleitores empregados
07.04.2015 às 17:55
O Tribunal Regional Eleitoral de Santa Catarina decidiu por unanimidade, nesta segunda-feira (6), dar provimento ao recurso interposto por Moisés da Silva Marcelo, concorrente ao cargo de vice-prefeito de Morro Grande nas últimas eleições municipais, para afastar as penas pecuniárias impostas a ele pelo juiz da 42ª Zona Eleitoral, assim como a sanção de inelegibilidade.
Assim como Moisés, o candidato a prefeito de Morro Grande, Jetender Singh Kalsi, e o vereador Volnei Favarin também foram condenados, mas tiveram seus recursos negados e as penas mantidas, incluindo a cassação de diploma, no caso de Favarin, que foi eleito em Morro Grande.
Já quanto aos recursos de Diogo Dal Toé Daniel, Edelar Favarin, Leonir Daniel Favarin, Delci Bianchini Menegon, Geovane de Godói e Ricardo Ximenes foi dado parcial provimento, apenas para afastar as multas, mantendo a sanção de inelegibilidade. Da decisão, disponível no Acórdão n. 30.524, cabe recurso ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Todos os recorrentes foram condenados por captação ilícita de sufrágio e abuso de poder econômico, caracterizado pela oferta de vantagens, em dinheiro, bem como coação de eleitores empregados da empresa Tramonto Alimentos, em benefício da candidatura de Volnei e dos candidatos ao pleito majoritário em Morro Grande.
Após analisar as provas de interceptação telefônicas, juntadas aos autos, o relator do caso, juiz Carlos Vicente da Rosa Góes, concluiu que não houve participação direta de Moisés, nem que foi comprovado seu conhecimento acerca das condutas ilícitas praticadas pelos demais acusados.
“A prova dos autos denota a efetiva ocorrência do ilícito eleitoral, ante o amplo oferecimento das mais diversas vantagens materiais aos eleitores – dinheiro, gasolina, bateria de carro - , tudo com o claro objetivo de auferir dividendos para o pleito que se avizinhava”, concluiu o magistrado.
Por Stefany Alves Assessoria de Imprensa do TRE-SC
Os ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) mantiveram por unanimidade, na sessão desta quinta-feira (23), a cassação e a inelegibilidade do prefeito reeleito de Rolândia (PR), Johnny Lehmann, por uso indevido de meio de comunicação impresso na eleição de 2012.
O Tribunal Regional Eleitoral do Paraná (TRE-PR) decidiu, no início de 2013, pela cassação do mandato de Lehmann por entender que o político fez uso indevido de 40 edições do jornal Tribuna do Vale do Paranapanema para promover sua imagem, suas eventuais realizações e candidatura à reeleição. As edições semanais do jornal foram lançadas no período de setembro de 2011 a agosto de 2012. Cada edição tinha 3 mil exemplares, totalizando 12 mil no mês e 132 mil no período mencionado no processo.
Ao negar o recurso apresentado por Johnny Lehmann, a relatora, ministra Maria Thereza de Assis Moura, destacou que a decisão do TRE paranaense informa que, no período de um ano, a tiragem do jornal alcançou mais de 20% da população de Rolândia. Salienta o Tribunal Regional que todas as edições do impresso, vendido em banca, traziam massivo material, entre diversas capas, reportagens e fotos, de apoio ao prefeito candidato à reeleição e com crítica a adversários. Na decisão, o TRE ressalta que a conduta praticada por Lehmann foi grave e afetou a isonomia entre os candidatos e a lisura do pleito.
“Alterar as conclusões do Regional implicaria reexame de provas, e não mera revaloração ou reenquadramento jurídico”, considerou a ministra Maria Thereza, ao negar o recurso apresentado pelo prefeito cassado.
Sabe aquela selfie que, vez ou outra, você tira no espelho do banheiro? De hoje em diante, ela terá um elemento super especial - além de você, é claro. São as frases do Espelhos da Augusta, idealizado pelo projeto Ingênua.
Divulgação
Projeto distribui cartazes por diversos banheiros de SP
Com frases que vão da sensibilidade ao erotismo, sempre com um ar poético, a proposta do projeto é que as citações, unidas à imagem no espelho, estimulem a quebra de estereótipos comportamentais, além de provocar reflexões acerca do que é ser mulher e - mais do que isso - do que é se sentir mulher.
O projeto faz parte da comemoração do aniversário da Rua Augusta. Em 2015, o pedaço mais alternativo de São Paulo completa 140 anos. Participam da ação estabelecimentos da Rua Augusta que apoiaram essa causa e cederam os espelhos de seus banheiros femininos para receber um toque de arte e liberdade: Bar Roxo, Circus Hair, Comedians, Pescador e Retrô Hair são os pioneiros. Em breve, mais estabelecimentos integrarão o projeto. Entre os escritores estão: Alice Ruiz, Nathalí Macedo, Marina Melz, Cass Aguilera, Ricardo Coiro, entre outros. A lista atualizada pode ser conferida no site.
Faça parte desse movimento você também. Tire sua selfie em um dos Espelhos da Augusta e compartilhe nas redes sociais com a hashtag #ingenua.
Os índios vão ocupar Brasília nesta semana. Ao escrever a palavra “índio”, perco uma parte dos meus leitores. É uma associação imediata: “Índio? Não me interessa. Índio é longe, índio é chato, índio não me diz respeito”. E, pronto, clique fatal, página seguinte. Bem, para quem ainda está aqui, uma informação: mais de mil lideranças indígenas ocupam Brasília de 13 a 16 de abril em nome dos seus direitos, mas também em nome dos direitos de todos os brasileiros. Há um golpe contra a Constituição em curso no Congresso Nacional. Para ser consumado, é preciso exatamente o seu desinteresse.
Guarde essa sigla e esse número: PEC 215. Quando se fala em PEC 215, só a sigla e o número já afastam as pessoas, porque neles estão embutidos toda uma carga de burocracia e um processo legislativo do qual a maioria da população se sente apartada. Os parlamentares que querem aprová-la contam com esse afastamento, porque a desinformação da maioria sobre o que de fato está em jogo é o que pode garantir a aprovação da PEC 215. Se durante séculos a palavra escrita foi um instrumento de dominação das elites sobre o povo, hoje é essa linguagem, é essa terminologia, que nos faz analfabetos e nos mantém à margem do centro do poder onde nosso destino é decidido. É preciso vencer essa barreira e se apropriar dos códigos para participar do debate que muda a vida de todos. A alienação, desta vez, tem um preço impagável.
O que é uma PEC? PEC é uma Proposta de Emenda à Constituição. Um instrumento para, em tese, aprimorar a Constituição de 1988. O que essa PEC, a 215, pretende, em resumo, é transferir do Executivo para o Congresso o poder de demarcar terras indígenas, territórios quilombolas e unidades de conservação. Só que o resumo, como a gente sabe, nunca explica muita coisa. O direito ao território ancestral é uma garantia fundamental da Constituição porque a terra é parte essencial da vida dos índios. Sem ela, condena-se povos inteiros à morte física (genocídio) e cultural (etnocídio). Isso explica por que, em 2012, um grupo de Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul pediu, numa carta aos brancos, que fossem declarados mortos.Preferiam ser extintos a ser expulsos mais uma vez:
“Pedimos ao Governo e à Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas decretar nossa morte coletiva e enterrar nós todos aqui. Pedimos, de uma vez por todas, para decretar nossa extinção/dizimação total, além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco para jogar e enterrar nossos corpos. Este é o nosso pedido aos juízes federais”.
Sem a terra de seus ancestrais, um índio não é. Não existe. Os Guarani Kaiowá, uma das etnias em situação mais dramática do Brasil e possivelmente do mundo, testemunham o suicídio de um adolescente a cada seis dias, em geral enforcado num pé de árvore, por falta de perspectiva de viver com dignidade no território dos seus antepassados. Por isso esse grupo afirmou que preferia morrer a ser expulso, mais uma vez, porque pelo menos homens, mulheres e crianças morreriam juntos, já que os indígenas se conjugam no plural, e morreriam no lugar ao qual pertencem.
O pacote maligno
Esses parlamentares não querem aprimorar a Constituição, mas dar um golpe nela
O poder de demarcar terras indígenas, territórios quilombolas e unidades de conservação é atribuído ao Executivo pela Constituição não por acaso, como se fosse um jogo de dados, em que a sorte determina o resultado e tanto faz. Foi atribuído por critérios claros, estudados em profundidade, com o objetivo de reconhecer direitos e proteger o interesse de todos os brasileiros. É o Executivo que tem a estrutura e as condições técnicas para cumprir o rito necessário à demarcação, desde equipes capacitadas para fazer os estudos de comprovação da ocupação tradicional até a resolução de conflitos e a eventual necessidade de indenizações. Da mesma forma, é bastante óbvio que a criação de áreas de preservação são parte estratégica da política social e ambiental de qualquer governo.
Quando os parlamentares tentam tirar o poder de demarcação do Executivo para entregá-lo a eles próprios, o que estão tentando fazer não é aprimorar a Constituição, mas dar um golpe nela. Na prática, a PEC 215 é apenas a pior entre as várias estratégias em curso para acabar com os avanços da Constituição no que diz respeito à preservação do meio ambiente e aos povos indígenas, aos quilombolas e aos ribeirinhos agroextrativistas que o protegem.Na prática, se a PEC 215 for aprovada, o mais provável é a paralisação do processo de demarcação de terras indígenas e quilombolas, assim como a paralisação da criação de unidades de conservação. É nesse ponto que a PEC 215 passa a ameaçar também o direito fundamental de todos os brasileiros a um meio ambiente ecologicamente equilibrado e, por extensão, ameaçar o direito à vida.
A PEC 215, a qual espertamente foram sendo juntados vários penduricalhos perigosos, tornou-se uma espécie de pacote maligno. Ela também pretende determinar que apenas os povos indígenas que estavam “fisicamente” em suas terras na promulgação da Constituição de 1988 teriam direito a elas. Assim, todos aqueles que foram arrancados de suas terras tanto por grileiros quanto pelos projetos de ocupação promovidos pelo Estado, seriam agora expulsos em definitivo. A proposta aqui é legalizar o crime, já que os índios tirados de suas terras pela força lá atrás seriam “culpados” por não estarem nelas, perdendo-as para sempre. Parece coisa de maluco, mas é isso que se defende. Ao investigar os crimes da ditadura, a Comissão Nacional da Verdade constatou que, em apenas dez etnias, 8.350 índios foram assassinados. A reparação por meio da demarcação e da recuperação ambiental de suas terras foram consideradas medidas mínimas e indispensáveis para a restauração da justiça.
Se a PEC 215 passar, por um lado não se demarca mais terras indígenas, por outro, é retirada a proteção daquelas que já estavam garantidas
Mas há algo ainda pior na PEC 215. Ela pretende abrir exceções ao usufruto exclusivo dos povos indígenas, como arrendamentos a não índios, permanência de núcleos urbanos e propriedades rurais, construção de rodovias, ferrovias e hidrovias. Busca também revisar os processos de demarcação em andamento, assim como impedir a ampliação de terras já demarcadas. Há ainda o risco de a PEC 215 abrir espaço, se aprovada, para que as terras já asseguradas sofram modificações segundo os novos critérios. Para entender: se a PEC 215 passar, o que pode acontecer é que, por um lado, não há demarcação de novas terras; por outro, é retirada a proteção daquelas que já estavam garantidas.
As mãos por trás do golpe
Este é um mundo perfeito para quem? Para mim, para você? Acredito que não. Mas é para alguns. Sempre é para alguns. Basta ver quem está no comando da comissão da PEC 215 para entender. Toda a coordenação é da chamada “bancada ruralista”. Mas é importante compreender de que ruralistas estamos falando, para não reforçar uma falsa oposição com os produtores rurais do Brasil, com aqueles que de fato têm interesse em colocar o alimento na mesa dos brasileiros. Um mundo sem terras indígenas e sem unidades de conservação seria bom para quem produz alimentos para o país? Me parece que não. Produtores rurais inteligentes e com espírito público, sejam eles pequenos ou grandes, sabem que precisam de água para produzir. Se precisam de água pra produzir, precisam de floresta em pé. Se precisam de floresta em pé, precisam de terras indígenas e de áreas de conservação.
Então, se este mundo não é bom nem para mim nem para você nem para quem produz alimentos, para quem este mundo é bom? Sempre é possível ter uma pista seguindo o dinheiro. No caso, o dinheiro do financiamento das campanhas. Segundo o Portal de Políticas Socioambientais, em análise feita a partir de dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), pelo menos 20 dos quase 50 deputados da comissão especial que analisa a PEC 215 foram financiados por grandes empresas do agronegócio, de mineração e de energia, por empreiteiras, por madeireiras e por bancos. Alguns destes parlamentares receberam, sozinhos, mais de um milhão de reais de empresas ligadas a esses segmentos.
Este é um capítulo importante para compreender os porquês. Tanto as terras indígenas quanto as unidades de conservação são terras públicas. Aos povos indígenas cabe o usufruto dessas terras. As unidades de conservação são parques e florestas nacionais, estações ecológicas, reservas extrativistas ou biológicas, refúgios da vida silvestre etc, que pertencem a todos nós e que são criadas para impedir a exploração predatória e proteger a biodiversidade, estratégica para o desenvolvimento sustentável.
O objetivo é transformar terras públicas e protegidas em terras privadas para a exploração e o lucro de poucos
Como então colocar a mão nessas terras públicas e protegidas (ou que ainda deverão ser protegidas), terras que são patrimônio de todos os brasileiros, para que elas possam se tornar privadas, para a exploração e o lucro de poucos? Desprotegendo essas terras. E como fazer isso? Dando um golpe na Constituição. Mas como dar um golpe na Constituição? Travestindo esse golpe de legalidade pelo processo legislativo. Junta-se a isso um governo fragilizado, com baixa aprovação popular e pouco apoio até mesmo entre suas bases, e o Congresso mais conservador desde a redemocratização. Pronto, estão dadas as condições para o crime.
Se depois o Supremo Tribunal Federal considerar inconstitucional a emenda, anos já se passaram e tanto a privatização do que é público quanto a devastação de biomas como a floresta amazônica e o Cerrado já se tornaram fatos consumados. E o Brasil, como se sabe, é o país do fato consumado. Basta acompanhar a trajetória de Belo Monte, que entre ilegalidades constantemente denunciadas, várias ações movidas pelo Ministério Público Federal e a suspeita de pagamento de propinas pelas empreiteiras investigadas pela Operação Lava Jato, vira fato consumado à beira do Xingu. Quando finalmente chegar ao Supremo, já será tarde demais.
Os índios, esses estrangeiros nativos
A conversão do público para o privado, em benefício dos grandes interesses particulares de exploração da terra e dos recursos naturais do Brasil, é o que está na mesa nesse jogo de gente bem grande. Cabe à população brasileira se informar e participar do debate, se concluir que este não é o projeto de país que deseja. Por causa dos povos indígenas, dos quilombolas, dos ribeirinhos? Me parece que seria motivo mais do que suficiente. Sobre os índios, em especial, aqueles que têm grandes interesses nas riquezas das terras que ocupam, costumam espalhar preconceitos como o de que seriam “entraves ao desenvolvimento” e o de que não seriam índios “de verdade”. Mas entraves a qual desenvolvimento e ao desenvolvimento para quem? E o que seria essa categoria, “um índio de verdade”?
Vale a pena examinar os preconceitos de perto, para perceber que eles não param em pé depois de um confronto mínimo com a realidade. Para começar, não existe “o” índio, mas uma enorme diversidade na forma como cada um dos 242 povos indígenas listados pelo Instituto Socioambiental dá sentidos ao que chamamos de mundo e se vê dentro do mundo – ou dos mundos. O Brasil lidera o ranking dos 17 países mais megadiversos, em grande parte por causa dos povos indígenas. Por países megadiversos compreende-se aqueles que concentram a maior parte da biodiversidade do mundo e, portanto, da sua preservação depende o planeta inteiro. Essa é maior riqueza do Brasil, mas a ganância de poucos e a ignorância de muitos a ameaça e destrói, colocando em risco a vida de todos.
No atual Congresso não há nenhum representante indígena
Os povos indígenas, guardiões da biodiversidade, são silenciados também pela simplificação, às vezes apenas burra, em geral mal intencionada, de fazê-los parecerem um só, chapados como “entraves ao desenvolvimento”. Estima-se que havia mais de mil povos indígenas quando os europeus desembarcaram no Brasil. Hoje, parte dos parlamentares do atual Congresso não mede esforços para completar o genocídio iniciado 500 anos atrás.
Quando a Constituição assegurou os direitos dos povos indígenas, em 1988, não criou direitos novos, apenas reconheceu direitos pré-existentes, já que eles estavam aqui antes de qualquer europeu. Legalmente, não se trata de “dar” terra aos povos indígenas, mas apenas de demarcar a terra que sempre foi deles. Nesse processo, de responsabilidade do Executivo, é preciso indenizar aqueles fazendeiros e agricultores que possuem títulos legais de propriedade (e o “legais” aqui deve ser bem sublinhado), dados pelos governos nos tantos projetos de ocupação, gente que não têm a menor culpa de ter sido despachada com suas famílias para território indígena. Pela Constituição, o Estado tinha um prazo de cinco anos para demarcar as terras indígenas. Como sabemos, passaram-se mais de 25 anos e dezenas delas ainda não foram demarcadas.
Como também sabemos, a ilegalidade faz mal ao país: os conflitos de terra que se espalham pelo Brasil, semeando cadáveres, são resultado da demora em cumprir a Constituição, sobre a qual a bancada ruralista tenta agora dar um golpe. Vale lembrar ainda que os direitos fundamentais são colocados na Constituição também para que a maioria de ocasião não possa ameaçá-los em nome de seus interesses. A importância dessa proteção fica mais clara se prestarmos atenção à atual composição do Congresso: há dezenas de ruralistas e nenhum indígena.
No capítulo “mentiras & manipulações” sobre os povos indígenas há pelo menos três linhas de não pensamento bastante populares no Congresso e fora dele. Há os “atrasadistas”, gente que estudou e que coleciona diplomas, mas prefere ignorar a Antropologia e pensadores da estatura de Claude Lévi-Strauss, para considerar que os índios são “atrasados”. Para estes, existe uma cadeia evolutiva única e inescapável entre a pedra lascada e o Ipad. Não conseguem – ou não querem – ter a amplidão mínima de pensamento para compreender a multiplicidade de escolhas e de caminhos possíveis para a trajetória de um povo. Tampouco alcançam perceber que são essas as diferenças que formam a riqueza da experiência humana. E, claro, preferem se “esquecer” do que o tipo de “progresso” que defendem causou ao planeta.
O ápice da evolução: de “índio falso” a “pobre legítimo”
A segunda linha de não pensamento é a dos “fiscais de autenticidade”. Quando a classificação dos índios como “atrasados” e “entraves ao desenvolvimento” falha, trata-se então de dizer que, sim, os índios têm direitos, mas só os “de verdade”. Haveria então os não legítimos, aqueles que falam português, usam celular e gostam de assistir à TV ou andar de carro. Nessa lógica abaixo da linha da estupidez, os brasileiros que falam inglês, vão à Disney, preferem rock ao samba e ultimamente andam gostando de torcer por times europeus de futebol, também poderiam ser considerados falsos brasileiros e perder todos os seus direitos. Nessa altura da história humana e com tanto conhecimento produzido era de se esperar um pouco mais de sofisticação na compreensão daquilo que faz de alguém o que é.
Quando as duas mentiras anteriores são desmascaradas, aparecem os “bons samaritanos” para salvar a Pátria – deles. Estes acham que quem gosta de mato é antropólogo e ambientalista e que o sonho dos indígenas, o sonho mesmo, no “íntimo do seu intrínseco”, é viver em nossas maravilhosas favelas e periferias, com esgoto serpenteando na porta e polícia dando tiro nas escadarias, à custa de Bolsa Família e cesta básica. Este seria o ápice da evolução: de “índio falso” a “pobre brasileiro legítimo”. Quem, afinal, poderia resistir a tal progresso na vida?
Um golpe na Constituição aqui e acolá e estes bons samaritanos chegam ao ponto ótimo: ajudam os índios que não conseguiram matar a virar pobres e, pronto, para que terra para índio, se já não existe índio? A ignorância só perde para a má fé. Mas é com preconceitos como estes, espertamente disseminados e manipulados, que se tenta transformar os indígenas numa espécie de estrangeiros nativos, como se os “de fora” fossem aqueles que sempre estiveram dentro. Essa xenofobia invertida seria apenas nonsense, não fosse totalmente perversa, a serviço de objetivos bem determinados.
Aderir ou pensar?
Há muita terra para pouco índio? Não. Como costuma dizer o socioambientalista Márcio Santilli, “há muita terra para pouco fazendeiro”. Segundo o Censo de 2010 do IBGE, há 517 mil índios aldeados em menos de 107 milhões de hectares de terras indígenas, o equivalente a 12,5% do território brasileiro. E onde estão essas terras? Mais de 98% delas estão na Amazônia Legal – e menos de 2% fora de lá. Já os 46 mil maiores proprietários de terras, segundo o Censo Agropecuário do IBGE, exploram uma área maior do que essa: mais de 144 milhões de hectares.
Sobre a realidade da concentração fundiária no país, que continua a crescer, o Cadastro de Imóveis Rurais do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) mostra que as 130 mil grandes propriedades rurais particulares concentram quase 50% de toda a área privada cadastrada no Incra. Já os quase quatro milhões de minifúndios equivalem, somados, a um quinto disso: 10% da área total registrada. Em entrevista ao jornal O Globo, o pesquisador Ariovaldo Umbelino de Oliveira, coordenador do Atlas da Terra, afirmou que quase 176 milhões de hectares são improdutivos no Brasil. Prestar atenção nos números já é um começo para pensar, em vez de simplesmente aderir.
Muita terra para pouco índio? Não. Muita terra para pouco fazendeiro
Falta espaço para a produção de alimentos no país? Tudo indica que não. Num país com essa quantidade de terras destinada à agropecuária e com essa concentração de terras na mão de poucos, afirmar que o problema do desenvolvimento são os povos indígenas só não é mais ridículo do que Kátia Abreu, a latifundiária que diz não existir mais latifúndio no Brasil e hoje ministra da Agricultura, afirmar que “o problema é que os índios saíram da floresta e passaram a descer na área de produção”. Os índios, esses invasores do mundo alheio. Mas é assim que a história vai sendo distorcida ao ser contada para a população.
Então, sim, respeitar os direitos dos povos indígenas já seria um motivo suficiente para lutar contra a PEC 215. Mas a PEC 215 não ameaça apenas os povos indígenas e as populações tradicionais. Ela ameaça a vida de todos os brasileiros. E por quê? Porque se temos floresta em pé é por causa dos povos indígenas e das populações tradicionais, são eles a pedra no caminho de um tipo de exploração que, depois de consumada, lucros privatizados na mão de poucos, deixa para nós todos o custo da devastação. E agora, nos estados da região sudeste, nós finalmente compreendemos, com o colapso da água, qual é o custo da devastação. Nós finalmente começamos a compreender o quanto corroemos a nossa vida cotidiana ao destruir as florestas e ao contaminar os rios. Não é mais algo subjetivo, uma abstração, mas algo bem concreto. Não é mais um futuro distante, é aqui e é agora. Não são mais os nossos netos, mas os nossos filhos que sofrerão e já sofrem com esse planeta mastigado. Assim como nós mesmos. E só está começando.
Lutar democraticamente para barrar a PEC 215 não é uma atitude altruísta, não é um esforço para respeitar os direitos indígenas, não é algo que fazemos porque somos pessoas bacanas, gente do bem. Barrar a PEC 215 é atender ao nosso instinto de sobrevivência num mundo em que as mudanças climáticas são possivelmente o maior desafio da história humana nesse planeta, que é o único que temos e que destruímos. Se o golpe à Constituição for consumado, o meio ambiente no Brasil perderá boa parte das barreiras que ainda impedem a devastação, reunindo condições e abrindo espaço para a aceleração da corrosão da vida.
Há muita atenção da imprensa e da população sobre os protestos nas ruas do Brasil. O curioso é que, quando são os índios que ocupam o espaço público, apesar de todo o seu colorido, de sua fascinante diversidade, eles correm o risco de tornar-se automaticamente invisíveis. Sua dor, sua morte e sua palavra parecem não existir – ou existir apenas no diminutivo. O olhar dos não índios os atravessa. Desta vez, ainda que por instinto de sobrevivência, seria conveniente enxergá-los. Mas, claro, sempre podemos concluir que o melhor para todos nós é viver cercado de cimento, fumaça e rios de cocô.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficçãoColuna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos e do romance Uma Duas. Site:descontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter:@brumelianebrum
A declaração de morte coletiva feita por um grupo de Guaranis Caiovás demonstra a incompetência do Estado brasileiro para cumprir a Constituição de 1988 e mostra que somos todos cúmplices de genocídio – uma parte de nós por ação, outra por omissão
- Pedimos ao Governo e à Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas decretar nossa morte coletiva e enterrar nós todos aqui. Pedimos, de uma vez por todas, para decretar nossa extinção/dizimação total, além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco para jogar e enterrar nossos corpos. Este é o nosso pedido aos juízes federais.
O trecho pertence à carta de um grupo de 170 indígenas que vivem à beira de um rio no município de Iguatemi, no Mato Grosso do Sul, cercados por pistoleiros. As palavras foram ditadas em 8 de outubro ao conselho Aty Guasu (assembleia dos Guaranis Caiovás), após receberem a notícia de que a Justiça Federal decretou sua expulsão da terra. São 50 homens, 50 mulheres e 70 crianças. Decidiram ficar. E morrer como ato de resistência – morrer com tudo o que são, na terra que lhes pertence.
Há cartas, como a de Pero Vaz de Caminha, de 1º de maio de 1500, que são documentos de fundação do Brasil: fundam uma nação, ainda sequer imaginada, a partir do olhar estrangeiro do colonizador sobre a terra e sobre os habitantes que nela vivem. E há cartas, como a dos Guaranis Caiovás, escritas mais de 500 anos depois, que são documentos de falência. Não só no sentido da incapacidade do Estado-nação constituído nos últimos séculos de cumprir a lei estabelecida na Constituição hoje em vigor, mas também dos princípios mais elementares que forjaram nosso ideal de humanidade na formação do que se convencionou chamar de “o povo brasileiro”. A partir da carta dos Guaranis Caiovás, tornamo-nos cúmplices de genocídio. Sempre fomos, mas tornar-se é saber que se é.
Os Guaranis Caiovás avisam-nos por carta que, depois de tantas décadas de luta para viver, descobriram que agora só lhes resta morrer. Avisam a todos nós que morrerão como viveram: coletivamente, conjugados no plural.
Nos trechos mais pungentes de sua carta de morte, os indígenas afirmam:
- Queremos deixar evidente ao Governo e à Justiça Federal que, por fim, já perdemos a esperança de sobreviver dignamente e sem violência em nosso território antigo. Não acreditamos mais na Justiça Brasileira. A quem vamos denunciar as violências praticadas contra nossas vidas? Para qual Justiça do Brasil? Se a própria Justiça Federal está gerando e alimentando violências contra nós. Nós já avaliamos a nossa situação atual e concluímos que vamos morrer todos, mesmo, em pouco tempo. Não temos e nem teremos perspectiva de vida digna e justa tanto aqui na margem do rio quanto longe daqui. Estamos aqui acampados a 50 metros do rio Hovy, onde já ocorreram 4 mortes, sendo que 2 morreram por meio de suicídio, 2 em decorrência de espancamento e tortura de pistoleiros das fazendas. Moramos na margem deste rio Hovy há mais de um ano. Estamos sem assistência nenhuma, isolados, cercados de pistoleiros e resistimos até hoje. Comemos comida uma vez por dia. Tudo isso passamos dia a dia para recuperar o nosso território antigo Pyleito Kue/Mbarakay. De fato, sabemos muito bem que no centro desse nosso território antigo estão enterrados vários de nossos avôs e avós, bisavôs e bisavós, ali está o cemitérios de todos os nossos antepassados. Cientes desse fato histórico, nós já vamos e queremos ser mortos e enterrados junto aos nossos antepassados aqui mesmo onde estamos hoje. (…) Não temos outra opção, esta é a nossa última decisão unânime diante do despacho da Justiça Federal de Navirai-MS.
Como podemos alcançar o desespero de uma decisão de morte coletiva? Não podemos. Não sabemos o que é isso. Mas podemos conhecer quem morreu, morre e vai morrer por nossa ação – ou inação. E, assim, pelo menos aproximar nossos mundos, que até hoje têm na violência sua principal intersecção.
Desde o ínicio do século XX, com mais afinco a partir do Estado Novo (1937-45) de Getúlio Vargas, iniciou-se a ocupação pelos brancos da terra dos Guaranis Caiovás. Os indígenas, que sempre viveram lá, começaram a ser confinados em reservas pelo governo federal, para liberar suas terras para os colonos que chegavam, no que se chamou de “A Grande Marcha para o Oeste”. A visão era a mesma que até hoje persiste no senso comum: “terra desocupada” ou “não há ninguém lá, só índio”.
Era de gente que se tratava, mas o que se fez na época foi confiná-los como gado, num espaço de terra pequeno demais para que pudessem viver ao seu modo – ou, na palavra que é deles, Teko Porã (“o Bem Viver”). Com a chegada dos colonos, os indígenas passaram a ter três destinos: ou as reservas ou trabalhar nas fazendas como mão de obra semiescrava ou se aprofundar na mata. Quem se rebelou foi massacrado. Para os Guaranis Caiovás, a terra a qual pertencem é a terra onde estão sepultados seus antepassados. Para eles, a terra não é uma mercadoria – a terra é.
Na ditadura militar, nos anos 60 e 70, a colonização do Mato Grosso do Sul se intensificou. Um grande número de sulistas, gaúchos mais do que todos, migrou para o território para ocupar a terra dos índios. Outros despacharam peões e pistoleiros, administrando a matança de longe, bem acomodados em suas cidades de origem, onde viviam – e vivem até hoje – como “cidadãos de bem”, fingindo que não têm sangue nas mãos.
Com a redemocratização do país, a Constituição de 1988 representou uma mudança de olhar e uma esperança de justiça. Os territórios indígenas deveriam ser demarcados pelo Estado no prazo de cinco anos. Como sabemos, não foi. O processo de identificação, declaração, demarcação e homologação das terras indígenas tem sido lento, sensível a pressões dos grandes proprietários de terras e da parcela retrógrada do agronegócio. E, mesmo naquelas terras que já estão homologadas, em muitas o governo federal não completou a desintrusão – a retirada daqueles que ocupam a terra, como posseiros e fazendeiros –, aprofundando os conflitos. Nestas últimas décadas testemunhamos o genocídio dos Guaranis Caiovás. Em geral, a situação dos indígenas brasileiros é vergonhosa. A dos 43 mil Guaranis Caiovás, o segundo grupo mais numeroso do país, é considerada a pior de todas. Confinados em reservas como a de Dourados, onde cerca de 14 mil, divididos em 43 grupos familiares, ocupam 3,5 mil hectares, eles encontram-se numa situação de colapso. Sem poder viver segundo a sua cultura, totalmente encurralados, imersos numa natureza degradada, corroídos pelo alcoolismo dos adultos e pela subnutrição das crianças, os índices de homicídio da reserva são maiores do que em zonas em estado de guerra.
A situação em Dourados é tão aterradora que provocou a seguinte afirmação da vice-procuradora-geral da República, Deborah Duprat: “A reserva de Dourados é talvez a maior tragédia conhecida da questão indígena em todo o mundo”. Segundo um relatório do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), que analisou os dados de 2003 a 2010, o índice de assassinatos na Reserva de Dourados é de 145 para cada 100 mil habitantes – no Iraque, o índice é de 93 assassinatos para cada 100 mil. Comparado à média brasileira, o índice de homicídios da Reserva de Dourados é 495% maior.
A cada seis dias, um jovem Guarani Caiová se suicida. Desde 1980, cerca de 1500 tiraram a própria vida. A maioria deles enforcou-se num pé de árvore. Entre as várias causas elencadas pelos pesquisadores está o fato de que, neste período da vida, os jovens precisam formar sua família e as perspectivas de futuro são ou trabalhar na cana de açúcar ou virar mendigos. O futuro, portanto, é um não ser aquilo que se é. Algo que, talvez para muitos deles, seja pior do que a morte.
Um relatório do Ministério da Saúde mostrou, neste ano, o que chamou de “dados alarmantes, se destacando tanto no cenário nacional quanto internacional”. Desde 2000, foram 555 suicídios, 98% deles por enforcamento, 70% cometidos por homens, a maioria deles na faixa dos 15 aos 29 anos. No Brasil, o índice de suicídios em 2007 foi de 4,7 por 100 mil habitantes. Entre os indígenas, no mesmo ano, foi de 65,68 por 100 mil. Em 2008, o índice de suicídios entre os Guaranis Caiovás chegou a 87,97 por 100 mil, segundo dados oficiais. Os pesquisadores acreditam que os números devem ser ainda maiores, já que parte dos suicídios é escondida pelos grupos familiares por questões culturais.
As lideranças Guaranis Caiovás não permaneceram impassíveis diante deste presente sem futuro. Começaram a se organizar para denunciar o genocídio do seu povo e reivindicar o cumprimento da Constituição. Até hoje, mais de 20 delas morreram assassinadas por ferirem os interesses privados de fazendeiros da região, a começar por Marçal de Souza, em 1983, cujo assassinato ganhou repercussão internacional. Ao mesmo tempo, grupos de Guaranis Caiovás abandonaram o confinamento das reservas e passaram a buscar suas tekohá, terras originais, na luta pela retomada do território e do direito à vida. Alguns grupos ocuparam fundos de fazendas, outros montaram 30 acampamentos à beira da estrada, numa situação de absoluta indignidade. Tanto nas reservas quanto fora delas, a desnutrição infantil é avassaladora.
A trajetória dos Guaranis Caiovás que anunciaram sua morte coletiva ilustra bem o destino ao qual o Estado brasileiro os condenou. Homens, mulheres e crianças empreenderam um caminho em busca da terra tradicional, localizada às margens do Rio Hovy, no município de Iguatemi (MS). Acamparam em sua terra no dia 8 de agosto de 2011, nos fundos de fazendas. Em 23 de agosto foram atacados e cercados por pistoleiros, a mando dos fazendeiros. Em um ano, os pistoleiros já derrubaram dez vezes a ponte móvel feitas por eles para atravessar um rio com 30 metros de largura e três de fundura. Em um ano, dois indígenas foram torturados e mortos pelos pistoleiros, outros dois se suicidaram.
Em tentativas anteriores de recuperação desta mesma terra, os Guaranis Caiovás já tinham sido espancados e ameaçados com armas de fogo. Alguns deles tiveram seus olhos vendados e foram jogados na beira da estrada. Em outra ocasião, mulheres, velhos e crianças tiveram seus braços e pernas fraturados. O que a Justiça Federal fez? Deferiu uma ordem de despejo. Em nota, a FUNAI (Fundação Nacional do Índio) afirmou que “está trabalhando para reverter a decisão”.
Os Guaranis Caiovás estão sendo assassinados há muito tempo, de todas as formas disponíveis, as concretas e as simbólicas. “A impunidade é a maior agressão cometida contra eles”, afirma Flávio Machado, coordenador do CIMI no Mato Grosso do Sul. Nas últimas décadas, há pelo menos duas formas interligadas de violência no processo de recuperação da terra tradicional dos indígenas: uma privada, das milícias de pistoleiros organizadas pelos fazendeiros; outra do Estado, perpetrada pela Justiça Federal, na qual parte dos juízes, sem qualquer conhecimento da realidade vivida na região, toma decisões que não só compactuam com a violência , como a acirram.
“Quando os pistoleiros não conseguem consumar os despejos e massacres truculentos dos indígenas, os fazendeiros contratam advogados para conseguir a ordem de despejo na Justiça”, afirma Egon Heck, indigenista e cientista político, num artigo publicado em relatório do CIMI. “No momento em que ocorre a ordem de despejo, os agentes policiais agem de modo similar ao dos pistoleiros, visto que utilizam armas pesadas, queimam as ocas, ameaçam e assustam as crianças, mulheres e idosos.”
Ao fundo, o quadro maior: os sucessivos governos que se alternaram no poder após a Constituição de 1988 foram incompetentes para cumpri-la. Ao final de seus dois mandatos, Lula reconheceu que deixava o governo com essa dívida junto ao povo Guarani Caiová. Legava a tarefa à sua sucessora, Dilma Rousseff. Os indígenas escreveram, então, uma carta: “Presidente Dilma, a questão das nossas terras já era para ter sido resolvida há décadas. Mas todos os governos lavaram as mãos e foram deixando a situação se agravar. Por ultimo, o ex-presidente Lula prometeu, se comprometeu, mas não resolveu. Reconheceu que ficou com essa dívida para com nosso povo Guarani Caiová e passou a solução para suas mãos. E nós não podemos mais esperar. Não nos deixe sofrer e ficar chorando nossos mortos quase todos os dias. Não deixe que nossos filhos continuem enchendo as cadeias ou se suicidem por falta de esperança de futuro (…) Devolvam nossas condições de vida que são nossos tekohá, nossas terras tradicionais. Não estamos pedindo nada demais, apenas os nossos direitos que estão nas leis do Brasil e internacionais”.
A declaração de morte dos Guaranis Caiovás ecoou nas redes sociais na semana passada. Gerou uma comoção. Não é a primeira vez que indígenas anunciam seu desespero e seu genocídio. Em geral, quase ninguém escuta, para além dos mesmos de sempre, e o que era morte anunciada vira morte consumada. Talvez a diferença desta carta é o fato de ela ecoar algo que é repetido nas mais variadas esferas da sociedade brasileira, em ambientes os mais diversos, considerado até um comentário espirituoso em certos espaços intelectualizados: a ideia de que a sociedade brasileira estaria melhor sem os índios.
Desqualificar os índios, sua cultura e a situação de indignidade na qual vive boa parte das etnias é uma piada clássica em alguns meios, tão recorrente que se tornou quase um clichê. Para parte da elite escolarizada, apesar do esforço empreendido pelos antropólogos, entre eles Lévi-Strauss, as culturas indígenas ainda são vistas como “atrasadas”, numa cadeia evolutiva única e inescapável entre a pedra lascada e o Ipad – e não como uma escolha diversa e um caminho possível. Assim, essa parcela da elite descarta, em nome da ignorância, a imensa riqueza contida na linguagem, no conhecimento e nas visões de mundo das 230 etnias indígenas que ainda sobrevivem por aqui.
Toda a História do Brasil, a partir da “descoberta” e da colonização, é marcada pelo olhar de que o índio é um entrave no caminho do “progresso” ou do “desenvolvimento”. Entrave desde os primórdios – primeiro, porque teve a deselegância de estar aqui antes dos portugueses; em seguida, porque se rebelava ao ser escravizado pelos invasores europeus. A sociedade brasileira se constituiu com essa ideia e ainda que a própria sociedade tenha mudado em muitos aspectos, a concepção do índio como um entrave persiste. E persiste de forma impressionante, não só para uma parte significativa da população, mas para setores do Estado, tanto no governo atual quanto nas gestões passadas.
“Entraves” precisam ser removidos. E têm sido, de várias maneiras, como a História, a passada e a presente, nos mostra. Talvez essa seja uma das explicações possíveis para o impacto da carta de morte ter alcançado um universo maior de pessoas. Desta vez, são os índios que nos dizem algo que pode ser compreendido da seguinte forma: “É isso o que vocês querem? Nos matar a todos? Então nós decidimos: vamos morrer”. Ao devolver o desejo a quem o deseja, o impacto é grande.
É importante lembrar que carta é palavra. A declaração de morte coletiva surge como palavra dita. Por isso precisamos compreender, pelo menos um pouco, o que é a palavra para os Guaranis Caiovás. Em um texto muito bonito, intitulado Ñe'ẽ – a palavra alma, a antropóloga Graciela Chamorro, da Universidade Federal da Grande Dourados, nos dá algumas pistas:
“A palavra é a unidade mais densa que explica como se trama a vida para os povos chamados guarani e como eles imaginam o transcendente. As experiências da vida são experiências de palavra. Deus é palavra. (...) O nascimento, como o momento em que a palavra se senta ou provê para si um lugar no corpo da criança. A palavra circula pelo esqueleto humano. Ela é justamente o que nos mantém em pé, que nos humaniza. (...) Na cerimônia de nominação, o xamã revelará o nome da criança, marcando com isso a recepção oficial da nova palavra na comunidade. (...) As crises da vida – doenças, tristezas, inimizades etc. – são explicadas como um afastamento da pessoa de sua palavra divinizadora. Por isso, os rezadores e as rezadoras se esforçam para ‘trazer de volta’, ‘voltar a sentar’ a palavra na pessoa, devolvendo-lhe a saúde.(...) Quando a palavra não tem mais lugar ou assento, a pessoa morre e torna-se um devir, um não-ser, uma palavra-que-não-é-mais. (...) Ñe'ẽ e ayvu podem ser traduzidos tanto como ‘palavra’ como por ‘alma’, com o mesmo significado de ‘minha palavra sou eu’ ou ‘minha alma sou eu’. (...) Assim, alma e palavra podem adjetivar-se mutuamente, podendo-se falar em palavra-alma ou alma-palavra, sendo a alma não uma parte, mas a vida como um todo.”
A fala, diz o antropólogo Spensy Pimentel, pesquisador do Centro de Estudos Ameríndios da Universidade de São Paulo, é a parte mais sublime do ser humano para os Guaranis Caiovás. “A palavra é o cerne da resistência. Tem uma ação no mundo – é uma palavra que age. Faz as coisas acontecerem, faz o futuro. O limite entre o discurso e a profecia é tênue.”
Se a carta de Pero Vaz de Caminha marca o nascimento do Brasil pela palavra escrita, é interessante pensar o que marca a carta dos Guaranis Caiovás mais de 500 anos depois. Na carta-fundadora, é o invasor/colonizador/conquistador/estrangeiro quem estranha e olha para os índios, para sua cultura e para sua terra. Na dos Guaranis Caiovás, são os índios que olham para nós. O que nos dizem aqueles que nos veem? (Ou o que veem aqueles que nos dizem?)
A declaração de morte dos Guaranis Caiovás é “palavra que age”. Antes que o espasmo de nossa comoção de sofá migre para outra tragédia, talvez valha a pena uma última pergunta: para nós, o que é a palavra?
Um relatório chocante detalhando atrocidades horríveis cometidas contra índios brasileiros nos anos 1940, 50 e 60 ressurgiu – 45 anos depois que ele foi misteriosamente ‘destruído’ em um incêndio.
O relatório Figueiredo foi encomendado pelo Ministro do Interior em 1967 e causou um clamor internacional depois que revelou crimes contra a população indígena do Brasil nas mãos de latifundiários poderosos e do próprio departamento do governo para assuntos indígenas: o Serviço de Proteção ao Índio (SPI). O relatório levou à fundação da organização de direitos indígenas Survival International, dois anos depois.
O documento de mais de 7.000 páginas, compilado pelo Procurador Jader de Figueiredo Correia, detalhou o assassinato em massa, tortura, escravidão, guerra bacteriológica, abuso sexual, roubo de terras e negligência travada contra a população indígena do Brasil. Como resultado, algumas tribos foram completamente eliminadas e muitas mais foram dizimadas.
O relatório foi recentemente redescoberto no Museu do Índio e agora será considerado pela Comissão Nacional de Verdade do Brasil, que está investigando as violações de direitos humanos ocorridas entre 1947 e 1988.
Um dos muitos exemplos horrendos no relatório descreve o ‘massacre do paralelo 11’, em que dinamite foi lançada de um pequeno avião sobre a aldeia de índios Cinta Larga. Trinta índios foram mortos – apenas dois sobreviveram para contar o ocorrido.
Um casal Karajá com seu bebê, que morreu de gripe.
Outros exemplos incluem o envenenamento de centenas de índios com açúcar misturado com arsênico e métodos severos de tortura, como o esmagamento lento dos tornozelos das vítimas com um instrumento conhecido como o ‘tronco’.
As descobertas de Figueiredo levou a um clamor internacional. No artigo ‘Genocídio’ de 1969 publicado pelo Sunday Times britânico, com base no relatório, o escritor Norman Lewis escreveu: ‘Do fogo e espada ao arsênico e balas – a civilização enviou seis milhões de índios para a extinção.’ O artigo mobilizou um pequeno grupo de cidadãos preocupados a formar a Survival International no mesmo ano.
Como resultado do relatório, o Brasil lançou um inquérito judicial, e 134 funcionários foram acusados de mais de 1.000 crimes. 38 funcionários foram demitidos, mas ninguém foi preso pelas atrocidades.
O SPI foi posteriormente dissolvido e substituído pela FUNAI- a Fundação Nacional do Índio do Brasil. Mas enquanto grandes extensões de terras indígenas foram demarcadas e protegidas desde então, as tribos do Brasil continuam a lutar contra a invasão e destruição de suas terras por madeireiros, fazendeiros e colonos ilegais, e a perder seu território por causa do programa de crescimento agressivo do governo que visa a construção de dezenas de grandes hidrelétricas e a autorização da mineração em grande escala em suas terras.
O Diretor da Survival International, Stephen Corry, disse hoje, ‘O relatório Figueiredo faz uma leitura horrível, mas de uma forma, nada mudou: quando se trata do assassinato de índios, reina a impunidade. Homens armados matam rotineiramente índios com a consciencia que há pouco risco de serem julgados e punidos – nenhum dos assassinos responsáveis por atirar contra líderes Guarani e Makuxi foi preso por seus crimes. É difícil não suspeitar que o racismo e a ganância estão na raiz do fracasso do Brasil em defender as vidas de seus cidadãos indígenas.’