07/04/2015 - [10:35] - Opinião
Inconstitucionalidade significa ir contra a Constituição Federal e seus preceitos. Implica, geralmente, em atos do Poder Público que afrontam o que está sedimentado no texto constitucional, enquanto repositório da vontade popular dos parâmetros para a organização da vida coletiva, estabelecido segundo mecanismos democráticos.
Sabendo que a sociedade muda, suas necessidades e aspirações se modificam com o tempo, a Constituição pode e deve ser atualizada, de modo a estar sempre em consonância com a transformação da realidade social. Todavia, esta mudança está sujeita a muitas limitações, tanto nos meios de fazê-la quanto naquilo que pode eventualmente ser mudado, havendo mesmo certas partes que não podem ser extirpadas ou adulteradas, sob pena de desfigurar a própria ordem constituída pela sociedade, inviabilizando a vida comum.
Dentre as matérias que não podem ser atingidas estão direitos, garantias e liberdades consagradas pela Constituição Federal de 1988. O Estado Democrático de Direito claramente as tem como reservas jurídicas intransponíveis por meio de investidas legislativas infra-constitucionais que, além de regressivas, via de regra são repressivas, ou seja: enquanto tendentes a abolir direitos, intentam suplantar conquistas históricas da experiência social e, ao criar maiores deveres, aumentam a carga de coerções para a parcela do povo atingida pela “nova” ação legislativa.
Desta feita, no bojo do art. 60, § 4.°, da Constituição Federal, que lista os conteúdos insuscetíveis de abolição por alterações no próprio texto constitucional, o inciso IV é expresso ao determinar que os direitos e garantias individuais não podem ser minimizados ou excluídos. São cláusulas pétreas. E parte considerável da comunidade jurídica entende, aliás, que não apenas os direitos individuais, mas todos os direitos que representem um ganho de valor para a condição humana – ganho este adquirido a partir de um contexto de luta por seu reconhecimento –, sendo fundamentais para a própria ordem democrática e constitucional, são impassíveis de diminuição ou erradicação.
A inimputabilidade penal como direito fundamental
Nas considerações do grande jurista Dalmo de Abreu Dallari, a PEC 171/93 – que reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos –, viola a restrição do inciso IV, do art. 60 da CF/88. É abertamente contrária à Constituição e ao espírito humanizador que se consagrou desde o fim da 2ª Grande Guerra: “Não há nenhuma dúvida de que [a inimputabilidade penal de menores de 18 anos] é um direito fundamental, expressamente consagrado na Constituição, e pronto. Então, dentro dessa perspectiva, [o artigo 228] é cláusula pétrea”.[1]
Ora, o art. 228 da CF/88 diz expressamente: “São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial”. Com isso, o dispositivo traz uma garantia individual: garante ao indivíduo que ainda não tenha dezoito anos de idade que a responsabilização de seus atos não será feita com o mesmo estatuto jurídico conferido ao maior de dezoito anos. Pois, além disso, o mesmo preceito garante ao indivíduo menor de dezoito anos que seu estatuto jurídico será condicionado por uma legislação especial, que contemple a peculiaridade de sua pessoa ainda por atingir o pleno desenvolvimento.
A bem da unidade constitucional, da integração social, e da sistematização do ordenamento jurídico, não se pode interpretar esse comando normativo separado de outras normas jurídicas destinadas à proteção dessa mesma pessoa, especialmente considerada. Normas, inclusive constitucionais, que impõem limites à punição estatal ao mesmo tempo em que instituem deveres, ao Estado e à sociedade como um todo, de lhes prover o desenvolvimento com arrimo em políticas públicas que tornem efetivos seus direitos fundamentais. Assim diz o caput do art. 227 da CF/88:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010).
[...]
E no mesmo diapasão, com referência à responsabilização dos menores de dezoito anos, vale destacar os incisos IV e V do parágrafo 3.º do mesmo artigo:
§ 3º - O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:
...
IV - garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, igualdade na relação processual e defesa técnica por profissional habilitado, segundo dispuser a legislação tutelar específica;
IV - garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, igualdade na relação processual e defesa técnica por profissional habilitado, segundo dispuser a legislação tutelar específica;
V - obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa da liberdade;
Em vista disso, desconstruir essa conclusão direta, extraída do próprio texto constitucional, demanda um malabarismo jurídico tão grande que é capaz de por em dúvida a expertise jurídica de quem se aventura nesse sentido, ou mesmo, o que é pior, a confiança em sua honestidade intelectual. Mudar isso, além de não ser possível, constitucionalmente, destrói todo o espírito do ordenamento jurídico brasileiro com relação ao tratamento jurídico da criança e do adolescente, acarretando a revogação de significativas leis, destinadas a regulamentar o direito à especial proteção do Estado, de que são titulares aqueles indivíduos, membros da sociedade, mormente o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei de Diretrizes e Bases da educação nacional.
Portanto, o caminho não passa pela desconstrução das garantias constitucionais, mas sim por conferir realidade, concretude, para a Lei Maior. Por certo que eficácia não é efetividade. Contudo, e até mesmo por isso, se não assegurarmos nem a eficácia constitucional para direitos e garantias que são condição de possibilidade do próprio ordenamento jurídico, de fato, concretamente, não teremos amparo algum para reivindicar e construir práticas sociais que assegurem a dignidade reclamada por esses direitos.
Em sério risco, o Paradigma da Humanização
Neste momento pelo qual passa a humanidade, ameaçada pela intolerância e pelo capitalismo predador, estamos lidando não apenas com embates políticos momentâneos, mas com verdadeiro choque entre paradigmas: com a visão de mundo que recobre a Humanidade. Com certeza, avança uma frenética fermentação de discursos ditos humanistas, que nominalmente defendem a defesa da sociedade, mas intentam operar sua entrega gratuita para o clamor público, com o risco de ruptura do tecido social. Troca-se, efetivamente, a Justiça pela vingança. Sérios riscos e ainda mais sérios problemas advirão se este curso desumanizador das relações sociais não for barrado.
Não se trata tão-somente do paradigma da ciência, mas de toda uma construção civilizatória baseada no bom senso. Pode-se pensar na fragilidade que há, por exemplo, na requisição que se fazia da Prudência aplicada à política, à civilidade (polis), e que foi eternizada pelos clássicos do Renascimento. Pode-se retroagir aos marcos da grande civilização criada em torno dos paradigmas judaico-cristãos. Ou podemos avançar no tempo para encontrar o Iluminismo, a humanização jurídica presente na filosofia do Esclarecimento e a previsão de que as ações públicas devem se basear na razão e não na emoção do clamor público.
Tudo isso está em jogo e o jogo do poder político, escondendo-se por trás de um suposto “realismo político” (mors tua, vita mea: “tua morte; minha vida”), abdica das políticas públicas relevantes para se servir do imediatismo. Vive-se de um lado a violência (institucional ou criminosa) e de outro o populismo jurídico que se baseia em proposições legais absolutamente de exceção, vingativas, repressoras de direitos e das mais legítimas demandas sociais.
Vivemos sob a estética da guerra, da violência, dos corpos emoldurados para consumo, mas abrimos mão da ética. E este talvez seja o paradigma mais sagrado que quebramos todos os dias – e sem muito remorso. O Paradigma da Ética é removido sempre que esbarra no crescimento a todo custo, seja na pesquisa médica, seja no manejo do meio ambiente.
Se hoje é a requisição da diminuição da maioridade penal, amanhã poderá ser de qualquer dos direitos civis ou políticos. No geral, não sabemos o que é direito, ética, bom senso, prudência, civilidade, dignidade humana. Não reconhecemos seus significados, não legitimamos os valores ali intencionados, porque são entraves ao capitalismo do consumo de todos os bens e da dignidade humana.
O que aprendemos com o Humanismo Jurídico é que Natureza e Razão são as fontes do direito. Naturalmente tornados iguais, sem distinção que justifique desigualdades; racionalmente educados para defender os direitos dos ataques da exceção. Porém, consumidos pelo escapismo e pelas exceções que subvertem as regras do bom senso e da Justiça, mediamos o direito pelo dinheiro, pela mercantilização.
Efetivamente, não é esta conjugação natureza/razão que se verifica nas tentativas populistas (inconstitucionais) de rebaixar a maioridade penal para os dezesseis anos. Verifica-se, sobretudo, a mercantilização da própria Justiça e o crescimento do sistema penal/carcerário. As medidas legislativas que avançam em busca da redução da maioridade penal para os dezesseis anos, além de denegar direitos mais básicos à pessoa em desenvolvimento, ainda violam preceito constitucional taxativo. Fato que ainda permite concluir que o legislador deveria conhecer o direito, a Constituição, pois, sob o Estado Democrático de Direito, não se revogam cláusulas pétreas.
João Marcos de Araújo Braga Júnior
Doutor em Direito pela USP
Vinício Carrilho Martinez
Professor da Universidade de São Carlos
Vinicius Valentin Raduan Miguel /
Professor da Universidade Federal de Rondônia, onde é o coordenador da Pós-Graduação em Segurança Pública e Direitos Humanos. Presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/RO. Representante da Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (ANCED) no Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.
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