terça-feira, 1 de março de 2016

Duas cartas de Leprevost

duas cartas

1

querido Ginsberg
você que me ensinou sem ter visões é duro comer merda
seria mentira deslavada dizer que tô feliz
também não vou tão mal quanto Catulo lamentando à Cornificio
se bem que preciso dar um jeito de ganhar um pouco de dinheiro
cê tá certo quando diz que minha pequena não é nenhuma
Joan Burroughs grávida de outro cara e viciada em benzedrina
mas é mesmo é bem bom pra mim ter encontrado alguém que vez
em quando me envia esses Whats assim todo mundo sofre um
pouco, Lelê, mas tenho mãos milagrosas bocas várias na minha boca
como vê, o seu louco bróder não vai tão mal assim
embora você não me dê uma palavra da mais fácil nos seus poemas
da mais vagabunda mistura de coca e dança erótica e nem mesmo
o catchup azedo dos sandubas da realidade convulsiva
bom, espero que não esteja puto comigo
sabe, não tenho tido muitos amores a não ser o dessa guria bi
de cabelo preto enrolado pernas de quem vai de bicicleta e vive
embrulhada em casacos de lã e não sai dos teatros e da São Francisco
ah, Allen, quando a gente tem a promessa de brincar
de Guilherme Tell quase todas as noites
acaba obrigado a flertar um pouco com o Paraíso

2

ei ei, Sarah Kane, a coisa não é leve nem doce
suas peças são alguns dos buracos mais amargos onde já me meti
ninguém devia entrar lá mas suspeito que isso não vai ter fim
vem da doença ou da maravilha da doença
hoje minha mão não dói tanto acho que porque tá calor
mas continuo intoxicado pensando que escrever é um modo
de não se saber absolutamente nada sobre a existência humana
viver estupidamente escrever bestialmente deixar-se amaldiçoar
depois virar matéria de análise? nada pode ser tão simples
enquanto tenho caninos devia arrancar pedaços da sua cara
lembra aquela noite em Londres a gente esculhambados
saindo do pessimismo pedra de amolar do velho Bernard Shaw?
a gente pode achar que o mundo é mal mas pense nas pessoas
que você conhece a maioria delas é má ou boa? então então
foi bem esquisito ter ouvido algo tão meigo vindo de você logo
quando a madrugada soprava Desolation Row na copa das árvores
afugentando morcegos e outros mamíferos que não podem voar
algo está sempre se desfazendo, né, evaporando
a gente entrou naquele pub e você ficou ensimesmada tendo
sei lá que iluminações enquanto dava bicadinhas na cerveja
você tinha voltado pra um lugar só seu impenetrável um espaço
que as meninas espertas que conheço jamais suportariam
você deve gozar com isso mais do que qualquer outra pessoa
a menos que eu pense em Artaud Van Gogh Nijinsky Lautréamont
in dono osso do delírio transmutados voltando a ser palpáveis
só quando nos autorizamos tocar suas carnes de labaredas

Por: Leprevost

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