A premissa básica de quase toda narrativa ou caracterização da crise corrente é a existência de um monte de políticos corruptos em Brasília. Saída do nada, talvez de alguma propensão atávica, "cultural" dos brasileiros para a malandragem e a vigarice. Se quisermos no entanto nos livrar deste estado de coisas, ou superarmos a corrupção endêmica na retaguarda das campanhas eleitorais, temos de tomá-la não como dado da análise, mas como, ela mesma, o fenômeno a ser explicado. Insistir na tese da "crise moral" é antes sintoma de perplexidade intelectual, e nos condena a eternizar a bagunça. Precisamos endogeneizar a conduta dos políticos, dirá um metodólogo.
Não é difícil fazê-lo. Afinal, a elite política é rotineiramente selecionada em eleições periódicas, e suas características, bem como os traços básicos do quadro partidário, decorrerão das regras das eleições. Desde há uns vinte anos, a ciência política brasileira tem mostrado de maneira persuasiva (a nós e ao mundo todo) que, apesar do nosso hábito da autodepreciação, nosso sistema político era relativamente "normal" na operação do Congresso Nacional, com plenários preditíveis a partir de alinhamentos partidários, maiorias viáveis construídas com os recursos institucionalmente disponíveis para a Presidência da República e uma rede de instituições de controle apta a vigiar a conduta dos protagonistas.
Agora, porém, a formação de uma tempestade perfeita na interação desses atores, com crise política, econômica e investigação criminal incidindo ao mesmo tempo sobre nosso sistema político, tem abalado a fé de muitos na força do diagnóstico predominante. De fato, entendo que a crise expõe de maneira dramática o calcanhar de Aquiles há muitos anos detectável em nossa política: o financiamento de nossas campanhas eleitorais, principalmente as legislativas.
Por mais normal que seja nosso sistema político em vários aspectos, é preciso admitir que o sistema eleitoral é de fato atípico, pela presença de uma conjunção bastante específica de características. Em primeiro lugar, adotamos um sistema proporcional com listas partidárias não ordenadas em distritos de grande magnitude (com distritos únicos nas assembleias legislativas e nas câmaras municipais e bancadas de até 70 membros na Câmara dos Deputados). São raros os países com representação proporcional que não ordenam previamente (ainda que de maneira flexível) suas listas partidárias. Quando o fazem, ou têm distritos pequenos (como o Chile, que acaba de elevar a magnitude de seus distritos de 2 para próximo de 5) ou são países de população pequena (como a Finlândia, que tem 5 milhões de habitantes e ainda distribui a representação em quinze distritos com 6 a 21 deputados, exceto Helsinque, com 35). Assim, a experiência de eleições disputadas por centenas ou mesmo milhares de candidaturas individuais em distritos com milhões de eleitores é peculiar ao Brasil.
Dinheiro é importante em qualquer eleição, claro. Mas, nesse cenário de candidaturas pulverizadas, seu peso é magnificado. Na massa anônima de candidaturas individuais semi-invisíveis, o candidato que já não tiver um "reduto" (social ou geográfico) prévio, ou que não seja uma celebridade exterior à política, vai precisar basicamente de muito, mas muito dinheiro para operar a saturação publicitária necessária para fazer do seu número um "top of mind" entre os eleitores na hora de votar.
Esse já é, por si só, um cenário precariamente governável pelos tribunais eleitorais, que serão forçados a exercer controles das contas das campanhas (individuais, centenas delas) apenas por amostragem ou denúncia. Mas a natureza anômala do nosso sistema eleitoral se completa com uma anomalia na regra do financiamento: só no Brasil o teto para o doador é um percentual de sua renda.
Aproximadamente um terço dos países não impõe teto algum às doações. Mas, entre os demais, ou o teto é um valor nominal (em moeda sonante ou unidades fiscais), ou ele é um percentual (tipicamente baixo, de 2 a 5%) do teto nominal de gastos autorizados na eleição. Em ambos os casos impõe-se uma pulverização significativa das fontes de recursos.
Observe-se que assim produzimos um fenômeno muito atípico: tomamos um quadro em que a experiência internacional exibe meia dúzia de candidatos disputando milhares de doadores, e produzimos um quadro, único, em que milhares de candidatos disputam meia dúzia de doadores. Pulverizamos a demanda, concentramos a oferta de financiamento. Além da vantagem até mnemônica que a lista aberta em distritos grandes, por si só, já concede à candidatura com mais dinheiro, ainda acrescentamos sobre isso uma forte concentração de influência política em poucos, grandes financiadores. Damos uma vantagem insuperável a quem conta com financiadores poderosos, num sistema precariamente governável pelos tribunais eleitorais, e fortemente inflacionário pela competição entre centenas de candidaturas individuais.
Só por milagre não produziríamos um jogo cada vez mais corrupto.
Presume-se sempre uma elite política de ladrões que predam a sociedade. Se endogeneizamos a elite, vemos que, mais que proteger a sociedade contra políticos bandidos, precisamos mesmo é de blindar o sistema político contra a face mais bruta – e monetizada – do conflito de interesses na sociedade. Diferentes dinâmicas eleitorais vão, naturalmente, produzir diferentes vencedores.
A ironia triste é que, apesar de tudo, a política no Brasil nunca havia operado tão estavelmente, e com resultados tão positivos, quanto nos vinte anos entre 1994 e 2013. Seria bom se conseguíssemos consertar o navio antes que ele naufragasse inteiramente. Para tanto, seria extremamente importante a preservação de um quadro de referências partidárias minimamente estável. É a vigilância mútua produzida por esta competição partidária, corrupta que seja, que ironicamente constitui a base sobre a qual se assenta a cristalização institucional e a consequente autonomização burocrática hoje exibidas pelas instituições de controle. Nosso bravos procuradores, juízes e delegados, ao buscarem "limpar" o sistema, zerar o jogo, inspirados pelo combate à Máfia (de onde se importou a metodologia da delação premiada), estão serrando o próprio galho político-institucional sobre o qual se apoiam.
Por mais difícil que seja a constituição das maiorias necessárias, sistemas eleitorais se mudam numa penada, por votação no Congresso. Sistemas partidários, porém, não se criam por decreto, antes decantam ao longo de décadas – se tudo der certo. E constituem um lastro social fundamental da estabilidade de uma democracia. É de tirar o sono pensar que hoje a maioria da população ficaria feliz em mandar todos embora, e que uma vasta fatia dos melhores e mais preparados quadros de nossas agências de controle esteja cotidianamente empenhada, de modo metódico, disciplinado, sincero e patriótico, em produzir, exatamente, o pior resultado possível.
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