Autor: Bruno Carazza
Fernando de Morais conta, em Chatô – o Rei do Brasil, como Assis Chateaubriand valia-se de sua rede de comunicação para pressionar (para não dizer achacar e chantagear) políticos e empresários a conceder-lhe as mais variadas benesses, de benefícios tributários para a compra de papel imprensa e equipamentos de rádio e TV a doações de obras de arte para o acervo do MASP.
Embora ainda formalmente casado com Maria Henriqueta Barrozo do Amaral, o dono dos Diários Associados teve uma filha com Cora Acuña em 1934. Declaradamente avesso às responsabilidades da paternidade (ele dizia que “Aníbal só chegou ao Norte da Europa com sua tropa de elefantes porque não tinha uma prole agarrada à barra de seu paletó”), Chatô a princípio não reconheceu a filha como sua. A menina recebeu o nome de Teresa Acuña (sem o sobrenome do pai) e na certidão de nascimento o campo referente à paternidade ficou em branco.
Mas como “a vida é real e de viés”, com o tempo Assis Chateaubriand foi se afeiçoando à menina. E como o relacionamento com a mãe era o pior possível, a disputa pela guarda da filha acabou chegando aos tribunais. A legislação da época, entretanto, era bastante clara: “O pátrio poder será exercido por quem primeiro reconheceu o filho, salvo destituição nos casos previstos em lei.” Como o magnata das comunicações não havia reconhecido a paternidade em cartório, a lei assegurava à mãe o direito sobre a menina.
Cada vez mais apegado à filha e, por outro lado, vendo que a mãe não cedia às pressões e se mostrava aguerrida na disputa judicial – certa de que o direito estava do seu lado –, Chatô partiu para a pressão política. E após meses de uma intensa campanha difamatória contra Getúlio Vargas, obteve finalmente o seu troféu: a edição, pelo presidente da República, do Decreto-lei 5.213/1943, que passou a estabelecer que: “O filho natural, enquanto menor, ficará sob o poder do progenitor que o reconheceu, e, se ambos o reconheceram, sob o do pai, salvo se o juiz decidir doutro modo, no interesse do menor.”
De tão escancarada que foi a manobra de Chateaubriand em forçar a alteração da lei para atender a seu interesse pessoal, essa norma ficou conhecida à época como “Lei Teresoca”, numa referência à maneira carinhosa como Chatô chamava a filha. E até hoje é um dos melhores exemplos de como as leis podem ser formalmente abstratas, mas, na prática, terem destinatários certos – e poderosos.
Recentemente, por estas bandas de Minas Gerais, foi aprovada uma “Lei Teresoca” igualmente insólita, embora muito mais danosa para o Erário e todos nós, contribuintes. O art. 42 da Lei Estadual nº 22.549/2017 permitiu o uso de obras de arte para o pagamento de dívidas tributárias relativas ao ICMS. Para quem vive por aqui não foi difícil desconfiar de que se tratava de uma norma encomendada – seu principal beneficiário tinha nome, sobrenome e endereço: Bernardo de Mello Paz, o “mecenas” de Inhotim.
Dono de um conglomerado empresarial de mineradoras e siderúrgicas, Bernardo Paz construiu na região metropolitana de Belo Horizonte um complexo de arte contemporânea de renome internacional. Sem dúvida alguma, um feito notável num país que investe tão pouco em arte e cultura.
Porém, paralelamente à construção de Inhotim as empresas de Bernardo Paz acumularam um passivo multimilionário em dívidas tributárias com a União, Estados e Municípios. Uma breve consulta sobre seu nome nas páginas do Tribunal de Justiça de Minas Gerais e do Tribunal Regional Federal da 1ª Região lista 98 processos judiciais, entre cíveis e criminais, movidos apenas contra o empresário (sem levar em conta as mais de 30 empresas das quais ele é sócio). A maior parte dessas disputas, no entanto, refere-se a cobranças de dívidas de entes públicos e fornecedores, sem falar numa condenação por lavagem de dinheiro.
Diante de um quadro financeiro tão grave, a solução encontrada pelo empresário foi negociar com o Estado de Minas Gerais a aprovação da citada lei, permitindo utilizar as obras de arte como pagamento pelas suas dívidas fiscais.
Obviamente não consta na Exposição de Motivos do Governador Fernando Pimentel que a medida foi concebida especialmente para Bernardo Paz. Para todos os fins, vale o dogma de que as leis são gerais e abstratas. Mas a Lei Teresoca também não explicitava que ela foi concebida única e exclusivamente para agradar Assis Chateaubriand.
Não causa surpresa, portanto, que a “Lei Inhotim” (vamos chamá-la assim) teve como primeiro “cliente” justamente Bernardo Paz. Segundo a Folha noticiou na última segunda feira, o empresário e o Estado de Minas Gerais firmaram um acordo prevendo a transferência de 20 obras de arte do acervo de Inhotim para a quitação de uma dívida tributária que era de R$ 471,6 milhões – mas que foi reduzida para R$ 111,8 milhões com a adesão das empresas de Paz ao último “refis” aberto pelo governo de Fernando Pimentel.
Segundo a reportagem de Carolina Linhares, o valor exato das obras ainda será submetido a avaliação de especialistas e depende de homologação judicial. As condições do acordo, contudo, revelam o quanto o negócio será vantajoso para Bernardo Paz.
Além de abater a dívida do empresário, o governo de Minas Gerais ainda teria aceitado a condição de não colocar as obras à venda no mercado. Ou seja, sob o pretexto de manter em Minas parte do patrimônio artístico exposto em Inhotim, a equipe de Fernando Pimentel teria concordado em imobilizar um ativo que poderia render centenas de milhões de reais se levado a leilão – uma medida incompreensível num Estado que se encontra à beira da falência.
Mas os absurdos não param aí. Outra cláusula do acordo estabelece que, além de não poder vender as obras, o Estado de Minas concorda em cedê-las em comodato para ficarem expostas… no Inhotim! Ou seja, com esse acordo Bernardo Paz conseguiu a proeza de pagar uma dívida multimilionária repassando para o Estado de Minas 20 obras de Inhotim que não poderão ser vendidas e ainda continuarão expostas no seu próprio centro cultural.
Parece evidente, pelas condições draconianas impostas ao Estado de Minas e à sua população, que Bernardo Paz jogou com a ameaça de fechar as portas de Inhotim para, assim, quitar sua dívida tributária e continuar com a posse das obras de arte. Trata-se de velha estratégia da elite empresarial brasileira. Sob argumentos que vão da proteção aos empregos brasileiros à defesa dos interesses nacionais, passando pela promoção da cultura, grandes empresários bem articulados com a classe política impõem custos a toda a sociedade para extrair vultosos benefícios privados.
Nosso “capitalismo de compadrio” precisa urgentemente de um choque de gestão. Por mais dramático que pudesse ser para a cultura nacional, exigir que Bernardo Paz se desfizesse das obras de Inhotim para quitar a dívida tributária de suas empresas teria o efeito pedagógico de ensinar para nossa elite uma lei realmente geral e abstrata: aquela que, no seu artigo primeiro, estabelece que que só há duas coisas certas na vida, a morte e os impostos.
Fernando de Morais conta, em Chatô – o Rei do Brasil, como Assis Chateaubriand valia-se de sua rede de comunicação para pressionar (para não dizer achacar e chantagear) políticos e empresários a conceder-lhe as mais variadas benesses, de benefícios tributários para a compra de papel imprensa e equipamentos de rádio e TV a doações de obras de arte para o acervo do MASP.
Embora ainda formalmente casado com Maria Henriqueta Barrozo do Amaral, o dono dos Diários Associados teve uma filha com Cora Acuña em 1934. Declaradamente avesso às responsabilidades da paternidade (ele dizia que “Aníbal só chegou ao Norte da Europa com sua tropa de elefantes porque não tinha uma prole agarrada à barra de seu paletó”), Chatô a princípio não reconheceu a filha como sua. A menina recebeu o nome de Teresa Acuña (sem o sobrenome do pai) e na certidão de nascimento o campo referente à paternidade ficou em branco.
Mas como “a vida é real e de viés”, com o tempo Assis Chateaubriand foi se afeiçoando à menina. E como o relacionamento com a mãe era o pior possível, a disputa pela guarda da filha acabou chegando aos tribunais. A legislação da época, entretanto, era bastante clara: “O pátrio poder será exercido por quem primeiro reconheceu o filho, salvo destituição nos casos previstos em lei.” Como o magnata das comunicações não havia reconhecido a paternidade em cartório, a lei assegurava à mãe o direito sobre a menina.
Cada vez mais apegado à filha e, por outro lado, vendo que a mãe não cedia às pressões e se mostrava aguerrida na disputa judicial – certa de que o direito estava do seu lado –, Chatô partiu para a pressão política. E após meses de uma intensa campanha difamatória contra Getúlio Vargas, obteve finalmente o seu troféu: a edição, pelo presidente da República, do Decreto-lei 5.213/1943, que passou a estabelecer que: “O filho natural, enquanto menor, ficará sob o poder do progenitor que o reconheceu, e, se ambos o reconheceram, sob o do pai, salvo se o juiz decidir doutro modo, no interesse do menor.”
De tão escancarada que foi a manobra de Chateaubriand em forçar a alteração da lei para atender a seu interesse pessoal, essa norma ficou conhecida à época como “Lei Teresoca”, numa referência à maneira carinhosa como Chatô chamava a filha. E até hoje é um dos melhores exemplos de como as leis podem ser formalmente abstratas, mas, na prática, terem destinatários certos – e poderosos.
Recentemente, por estas bandas de Minas Gerais, foi aprovada uma “Lei Teresoca” igualmente insólita, embora muito mais danosa para o Erário e todos nós, contribuintes. O art. 42 da Lei Estadual nº 22.549/2017 permitiu o uso de obras de arte para o pagamento de dívidas tributárias relativas ao ICMS. Para quem vive por aqui não foi difícil desconfiar de que se tratava de uma norma encomendada – seu principal beneficiário tinha nome, sobrenome e endereço: Bernardo de Mello Paz, o “mecenas” de Inhotim.
Dono de um conglomerado empresarial de mineradoras e siderúrgicas, Bernardo Paz construiu na região metropolitana de Belo Horizonte um complexo de arte contemporânea de renome internacional. Sem dúvida alguma, um feito notável num país que investe tão pouco em arte e cultura.
Porém, paralelamente à construção de Inhotim as empresas de Bernardo Paz acumularam um passivo multimilionário em dívidas tributárias com a União, Estados e Municípios. Uma breve consulta sobre seu nome nas páginas do Tribunal de Justiça de Minas Gerais e do Tribunal Regional Federal da 1ª Região lista 98 processos judiciais, entre cíveis e criminais, movidos apenas contra o empresário (sem levar em conta as mais de 30 empresas das quais ele é sócio). A maior parte dessas disputas, no entanto, refere-se a cobranças de dívidas de entes públicos e fornecedores, sem falar numa condenação por lavagem de dinheiro.
Diante de um quadro financeiro tão grave, a solução encontrada pelo empresário foi negociar com o Estado de Minas Gerais a aprovação da citada lei, permitindo utilizar as obras de arte como pagamento pelas suas dívidas fiscais.
Obviamente não consta na Exposição de Motivos do Governador Fernando Pimentel que a medida foi concebida especialmente para Bernardo Paz. Para todos os fins, vale o dogma de que as leis são gerais e abstratas. Mas a Lei Teresoca também não explicitava que ela foi concebida única e exclusivamente para agradar Assis Chateaubriand.
Não causa surpresa, portanto, que a “Lei Inhotim” (vamos chamá-la assim) teve como primeiro “cliente” justamente Bernardo Paz. Segundo a Folha noticiou na última segunda feira, o empresário e o Estado de Minas Gerais firmaram um acordo prevendo a transferência de 20 obras de arte do acervo de Inhotim para a quitação de uma dívida tributária que era de R$ 471,6 milhões – mas que foi reduzida para R$ 111,8 milhões com a adesão das empresas de Paz ao último “refis” aberto pelo governo de Fernando Pimentel.
Segundo a reportagem de Carolina Linhares, o valor exato das obras ainda será submetido a avaliação de especialistas e depende de homologação judicial. As condições do acordo, contudo, revelam o quanto o negócio será vantajoso para Bernardo Paz.
Além de abater a dívida do empresário, o governo de Minas Gerais ainda teria aceitado a condição de não colocar as obras à venda no mercado. Ou seja, sob o pretexto de manter em Minas parte do patrimônio artístico exposto em Inhotim, a equipe de Fernando Pimentel teria concordado em imobilizar um ativo que poderia render centenas de milhões de reais se levado a leilão – uma medida incompreensível num Estado que se encontra à beira da falência.
Mas os absurdos não param aí. Outra cláusula do acordo estabelece que, além de não poder vender as obras, o Estado de Minas concorda em cedê-las em comodato para ficarem expostas… no Inhotim! Ou seja, com esse acordo Bernardo Paz conseguiu a proeza de pagar uma dívida multimilionária repassando para o Estado de Minas 20 obras de Inhotim que não poderão ser vendidas e ainda continuarão expostas no seu próprio centro cultural.
Parece evidente, pelas condições draconianas impostas ao Estado de Minas e à sua população, que Bernardo Paz jogou com a ameaça de fechar as portas de Inhotim para, assim, quitar sua dívida tributária e continuar com a posse das obras de arte. Trata-se de velha estratégia da elite empresarial brasileira. Sob argumentos que vão da proteção aos empregos brasileiros à defesa dos interesses nacionais, passando pela promoção da cultura, grandes empresários bem articulados com a classe política impõem custos a toda a sociedade para extrair vultosos benefícios privados.
Nosso “capitalismo de compadrio” precisa urgentemente de um choque de gestão. Por mais dramático que pudesse ser para a cultura nacional, exigir que Bernardo Paz se desfizesse das obras de Inhotim para quitar a dívida tributária de suas empresas teria o efeito pedagógico de ensinar para nossa elite uma lei realmente geral e abstrata: aquela que, no seu artigo primeiro, estabelece que que só há duas coisas certas na vida, a morte e os impostos.
Disponível: http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/05/04/mais-uma-jogada-de-mestre-do-mecenas-brasileiro/
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