quarta-feira, 27 de junho de 2018

As mutações constitucionais no contexto brasileiro de crise da representação democrática

Por Anderson Ramos da Silva*

A mutação constitui desde a sua origem, um fenômeno difícil de definir, delimitar e codificar quanto a sua natureza, tendo em vista que envolve uma realidade, seja no domínio jurídico, seja no domínio dos fatos e que nesses dois domínios, a mutação quando ocorre produz, efetivamente, impactos incontornáveis em torno do método da interpretação constitucional, de legitimidade democrática e do principio da separação do poder (CANOTILHO, 2015).

A título de exemplo, no brasil, por força da ADIn 4477 e da ADPF 132, o Supremo Tribunal Federal considerou constitucional a união entre duas pessoas do mesmo sexo por força de uma interpretação constitucional expressa que dizia que o instituto de união estável envolveria apenas pessoas de sexo diferente (BRASIL, 2011). Portanto, visualiza-se, nesse caso, a operação de uma mutação constitucional.

Outro caso interessante é o RE 197.917/SP que se refere ao caso da proporcionalidade do número de vereadores. Foi decidido nesse caso que era inconstitucional o critério anterior para fixação máxima das câmeras municipais e muito embora fosse um RE proveniente de uma Ação Civil Pública, os efeitos dessa decisão foram vinculantes para todos os Estados da Federação e isso gerou uma reação imediata do legislativo que editou a emenda constitucional n° 58 detalhando o número de vereadores de acordo com o número de habitantes de cada município (BRASIL, 2014).

Acerca desses exemplos, sob o manto da atividade interpretativa e do controle da constitucionalidade, surge um fenômeno de criação jurisprudencial de normas materialmente constitucionais com cunho inovador, e, portanto, posicionadas no hemisfério das mutações constitucionais.

As alterações da constituição podem ter origens diversas para dizer como podem aparecer as mutações: a partir de costumes, de práticas constitucionais, de desuso das normas, disposições legislativas que contrariam a constituição, mas sem que haja oposição nessa contrariedade na medida em que vão se sedimentando e, finalmente, as fontes jurisprudenciais de viés interpretativo, sejam internas, sejam externas (CANOTILHO, 2015).

Nesse cenário, há 3 questões importantes para abordar: 1) Como definir e identificar, sob uma perspectiva dogmática uma mutação informal da constituição?; 2) Em que medida as mutações informais são constitucionalmente permissíveis? Portanto, tem haver com a temática dos limites jurídicos das mutações; e 3) Em que termos o fenômeno da mutação não abala a soberania popular no processo de produção de normas constitucionais e o princípio da separação do poder?

Inicialmente, antes de adentrar na resolução dos questionamentos acima deduzidos, o professor José Gomes Canotilho (2015) esclarece o conceito de mutação constitucional particularmente popular, tendo em vista sua simplicidade, na medida em que entende que as mutações constitucionais ou são ontogenéticas, portanto, advém da própria norma e no fundo constituem um ato legítimo de interpretação criativa da constituição a partir da própria norma. Ou são endogenéticas, ou seja, resultam de fora, portanto vem da realidade para chocar-se com a norma, assim, envolve uma criação silenciosa de normas diferentes das normas constitucionais, contrariam o problema normativo da constituição e, portanto, seriam inadmissíveis e inconstitucionais. Segundo o autor, isso acabaria por fraudar a constituição e seria uma via para a transição constitucional

No que concerne ao entendimento de Canotilho e acerca dos 3 casos acima abordados, nenhum desses se encaixa em uma ou outra realidade abordada pelo autor, pois em nenhuma das questões há uma violação da identidade da constitucional, conforme entende Canotilho, mas por outro lado, nenhuma das questões decorre de uma interpretação, ainda que evolutiva da constituição, pois dizem coisas que não estão lá e, portanto, é difícil ainda que por via analógica ostensiva fazer sentido.

No texto, objeto desse estudo, a mutação constitucional se insere no contexto de mudanças informais do texto da constituição, na medida em que trata o fenômeno da mutação constitucional como um “processo de acomodação do direito constitucional em uma realidade constitucional” (LOWENSTEIN, 1976, apud SACCHETTO, 2015). Em outra perspectiva, Hesse (1983) apud Sacchetto (2015), compreende a mutação constitucional como “uma interpretação diferente dos enunciados constitucionais em franca contradição com o seu texto”.

Mas essas definições ainda não conseguem uma diferenciação clara, entre mutação e interpretação evolutiva, sendo que esta última, advém de uma interpretação que se encaixa no âmbito da interpretação e, portanto, não são mutações. Por exemplo, a alteração no âmbito da realidade que envolvem modificação na aplicação da norma. Por outro lado, a descodificação de conceitos indeterminados, ou seja, as chamadas normas com “fórmulas” vagas e que envolvem uma intensa atividade concretizadora por parte do tribunal constitucional. Logo, se enquadra, em regra, no âmbito de uma interpretação evolutiva e não de uma mutação constitucional.

Muitas vezes há normas e princípios que remetem para valores morais e, portanto, quando a constituição integra valores de natureza moral, ela é interpretada a luz desses mesmos valores, ou seja, de uma ordem metajurídica fora da ordem jurídica.

Dessa forma, não há definições confortáveis sobre a mutação constitucional. Entretanto, a fim de dar uma definição provisória, Canotilho (2015) diz que são normas de conteúdo politicamente inovador, geradas e consolidadas pelos poderes jurídicos e jurisdicional à margem do processo formal de revisão, são aptas a produzirem efeitos materialmente ou imaterialmente decorrentes das obras constitucionais ou ainda, os efeitos que transformam o problema normativo das intepretações constitucionais ou surgem como forma inovadora ao texto da constituição.

Nesse sentido, a mutação constitucional nada mais é do que uma espécie de mutação normativa. E a mutação normativa não é nenhum privilégio do texto constitucional, a textura aberta é uma característica das normas, todavia, tendo em vista a sua natureza e o papel que desempenha, o texto constitucional é mais aberto que os demais e por isso é mais propenso a mutação. Logo, a mutação é produto da linguagem constitucional com fatores externos como os econômicos, culturais e sociais. Portanto, a linguagem constitucional aliada aos fatores externos, equivale à mutação constitucional.

Entretanto, a tarefa de identificação do fenômeno de mutação informal no caso concreto é um trabalho difícil e, portanto, uma das questões fundamentais, é tentar discutir o grau de inovação política que rodeia um processo, uma alteração de sentido de um preceito constitucional e dessa forma, traçar uma fronteira entre a mutação e a interpretação evolutiva.

O fato é que muitas vezes existem situações que foram codificadas como híbridas e que é extremamente difícil identificar precisamente essa fronteira. Há um exemplo dado por Ronaldo Dworkin (2006) que tem haver com uma interpretação por camadas ou capítulos e diz que o construtivismo norte americano, que é uma via para a mutação, envolve um conjunto de precedentes constitucionais de uma determinada matéria e que cada juiz, em relação a uma matéria vai acrescentando uma camada ou capítulo novo e, portanto, a norma vai evoluindo.

O problema surge quando procura-se saber quando um capítulo novo que se insere dentro de uma lógica de precedentes, deixa o campo da interpretação para passar para o campo da mutação constitucional. Logo, desfigurando, muita das vezes, a própria constituição e aquilo que foi o direito decidido de um determinado objetivo.

Isso mostra que o estudo de Dworkin nos dá uma lição, na medida em que visualiza-se que a mutação constitucional raramente é instantânea, pois elas vão evoluindo e se consolidando até se afirmarem. Portanto, a mutação constitucional envolve um processo lento, uma prática reiterada que se vai consolidando sem oposição, de modo que é difícil perceber a existência de mutações instantâneas da constituição.

Em uma outra perspectiva, tem-se as mutações puras e impuras, ou seja, constitucionais e inconstitucionais. Nesse cenário, Canotilho (2015) entende que a partir do momento em que uma mutação constitucional contraria a identidade da constituição e aquilo que é um consenso constitucional, terá uma mutação inconstitucional.

O esclarecimento é pertinente, mas deixa dúvidas se resolve certo tipo de situações que tem haver precisamente com normas que nascem nesse contexto, como por exemplo: mutações ou alterações da constituição que envolvam modificações de competência dos órgãos de soberania do Estado (Supremo Tribunal Federal, Senado e outros órgãos parlamentares), sendo que indaga-se se, quando de fato, uma decisão caminhar nesse sentido e um determinado órgão passar a exercer as competências do outro sem oposição, e a partir daí, criar-se-iam todas as hipótese constitucionais de uma mutação.

Todavia, com essa consolidação, a inconstitucionalidade parece difícil de ocorrer, na medida em que haja uma interiorização do fenômeno. Isso levanta o problema de mutações que nascem claramente em estado de inconstitucionalidade, mas que se perduram no tempo sem oposição e, após a sua sedimentação, há a perda da oportunidade para que ocorra essa sansão.

Uma outra questão tem haver com a fato da mutação estar mais próxima do poder constituinte e essa é a questão mais interessante do fenômeno: a mutação estar mais próxima do poder constituinte do que propriamente o poder de revisão, sendo que esse último implica em um processo pré estabelecido da alteração das normas constitucionais, ao passo que o poder constituinte é uma realidade existencial, uma realidade de fato.

Nesse sentido, as mutações emergem como fatos consumados, de modo que qualquer oposição consistiria em um intento puramente em vão. Portanto, tal como o poder constituinte é uma força da natureza, as mutações constitucionais nascem do universo dos fatos, mesmo através de atos jurídicos e sentenças e acabam no fundo, por serem impostos. Logo, essa realidade levanta um problema que não é o poder constituinte propriamente dito, mas é um poder constituinte sem povo e sem vontade democrática legitimadora.

Essa questão nos leva a última questão que é o princípio da separação do poder, e em que pese a sua jurisdição de cunho político, é um poder independente e imparcial, tendo em vista que objetiva defender a constituição de violações potenciais oriundas do legislador. A função da justiça constitucional é um poder de controle de constitucionalidade e a própria interpretação das normas constitucionais é uma realidade instrumental desse poder de controle (CANOTILHO, 2015).

Quando a justiça constitucional se inova politicamente e se afasta do problema político dos preceitos fundamentais para revelar normas que não foram decididas e que derrogam as normas, muitas vezes, já decididas, as transformam em alguma coisa que não tem correspondência no texto constitucional ou ainda, para editarem novos critérios de decisão a partir de princípios neutros, onde cabe um pouco de tudo (CANOTILHO, 2015). Com isso, surge a questão se a justiça constitucional exerce a sua função de maneira imparcial e a imparcialidade é um atributo precisamente da função jurisdicional.

Essa é uma questão que se coloca nos domínios dos poderes do Estado, tendo em vista que referido poder surge em razão da justiça constitucional e que tem última palavra relativamente a litígios que envolvem a alta política e envolvem a própria constituição, a qual não é controlável. Dessa forma, a justiça constitucional não está sujeita a controle. O único controle possível é a própria revisão constitucional, mas eventualmente nem isso no Brasil acontece, pois tem havido casos em que o STF declara a inconstitucionalidade das próprias emendas constitucionais, como por exemplo a EC 62/2009 por meio da ADIn 4357 e 4425 (BRASIL, 2015). Assim, quando existe um plano de tensão entre o legislativo e o poder jurisdicional tem sido o poder jurisdicional freado, tendo em vista que cabe ao poder constituinte a última palavra.

No que concerne relativamente a crise de representação, também objeto desse estudo, de maneira muito clara, em uma simples imersão no contexto político social brasileiro, visualiza-se que a crise não é tanto de representação política, embora ela exista, mas a crise é principalmente da falta de politização, ou seja, em vez de ficar no samba de uma nota só, que é o tema da corrupção, é abrir para discutir o significado das coisas, o motivo dos projetos, a razão dos erros e objetivamente, isso é repolitizar a sociedade brasileira.

Portanto, a mutação constitucional envolve um problema de criação constitucional à margem da própria constituição, envolve um problema de limitação da função jurisdicional porque não há qualquer alteração da constituição, ainda que em sede de mutação informal que não passa pelo tribunal constitucional, portanto, ou é originária dos poderes políticos, de modo que o tribunal constitucional poderá censurar essa alteração ou é originária do próprio tribunal constitucional. Com isso, surge um problema de limitação entre a função legislativa e a função jurisdicional, um problema de legitimidade democrática e há eventualmente, um problema a nível de separação de poder do consenso constitucional do que é separação do poder que poderia gerar riscos paras as bases do Estado Democrático e, portanto, o tratamento dessa temática poderá implicar na revisão do conceito de separação do poder tal como tem sido, de alguma forma, interiorizado e corporizado.

Referências

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 197.917 de São Paulo. Recorrente: Ministério Público Estadual. Recorrido: Câmara Municipal e Mira Estrela. Relator: Ministro Maurício Corrêa. Brasília, 24 de março de 2014. Disponível em: <https://http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=1631538//>. Acesso em: 17 jun. 2018.

______. Supremo Tribunal Federal. Ação Direita de Inconstitucionalidade 4277 do Distrito Federal. Requerente: Ministério Público Federal (MPF). Relator: Luiz Fux. Brasília, 5 de maio de 2011. Disponível em: http:<//http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=11872 >. Acesso em: 17 jun. 2018.

______. Supremo Tribunal Federal. Ação Direita de Inconstitucionalidade 4357 do Distrito Federal. Requerente: Conselho Federal Da Ordem Dos Advogados Do Brasil – CFOAB; Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB Relator: Luiz Fux. Brasília, 25 de março de 2015. Disponível em: http:<// http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=3813700>. Acesso em: 17 jun. 2018.

______. Supremo Tribunal Federal. Ação Direita de Inconstitucionalidade 4425 do Distrito Federal. Requerente: Confederação Nacional Da Industria. Relator: Luiz Fux. Brasília, 25 de março de 2015. Disponível em: http:<// http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=3900924>. Acesso em: 17 jun. 2018. 

CANOTILHO, José Gomes. Direito constitucional ambiental brasileiro. 6. ed. Saraiva, 2015.

DWORKIN, Ronald. O Direito de Liberdade: a leitura moral da constituição norte-americana. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

SACCHETTO, Thiago Coelho. As mutações constitucionais no contexto brasileiro de crise da representação democrática. e-Pública, Lisboa , v. 2, n. 1, p. 123-140, jan. 2015 . Disponível em http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2183-184X2015000100007&lng=pt&nrm=.pf&tlng=pt. acesso em 10 jun. 2018.

* Acadêmico da 10ª fase do Curso de Direito da Catolica de SC. Aprovado no XXIV Exame de Ordem.

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