quarta-feira, 13 de junho de 2018

Veja meu bem, essas feridas da vida, Margarida

Fevereiro de 2006. Retorno de uma viagem a Brasília, primeira vez que voara de avião na vida, com uma dor incômoda no pescoço. O desconforto da viagem e uma noite mal dormida me levaram a crer que não era nada sério. A dor persistiu e se agravou. 


Logo não conseguiria mais virar o pescoço, atrapalhando gestos simples da vida como atravessar uma rua. Imaginando se tratar de algum problema menor procurei o hospital. Jovem com então 25 anos de idade eu não tinha plano de saúde. E adoecer não estava nos meus planos. 


Fui atendido pelo SUS. Por sorte todos os procedimentos foram muito rápidos e em meia hora já tinha conversado com médicos de três especialidades diferentes: o clínico geral que me atendeu primeiro. A pneumologista que estranhou a radiografia que apresentava um deslocamento em minha traqueia e me perguntou se eu havia engolido algo diferente. E por fim o oncologista para quem fui encaminhado e que me perguntou a idade, se já tinha filhos e se pretendia ter outros. Com a suspeita de um linfoma ele disse que me internaria imediatamente. Eu me recusei e fiz com que ele acreditasse que eu voltaria depois de pegar algumas roupas, uns livros e avisar minha família. Ele resistiu talvez imaginando que eu fosse capaz de alguma bobagem.

Não tinha esses registros na época, mas agora sei que o receio do médico oncologista que me atendeu era fundado. Estudos sugerem que as taxas de suicídio são 60% maiores em pacientes que recebem o diagnóstico de uma neoplasia. Essa taxa chega a 300% se a doença afetar os pulmões.

Mesmo sem conhecer esses dados suspeitei que as pessoas eventualmente pudessem tentar qualquer coisa contra si depois de um diagnóstico que possam imaginar terminal, me pareceu que era essa a preocupação do médico naquele momento. Isso em mim teve um efeito terrível.

Imaginei que minha situação fosse realmente grave – e era – mas tinha 90% de chances de cura. Porém, essa probabilidade de cura depende de uma serie de fatores. E de fato, se tratava daquela doença cujo nome muitas vezes evito proferir até hoje: Câncer.

No caminho do hospital até minha casa imaginei o pior. Eu tinha um caroço de aproximadamente cinco centímetros no pescoço que o medico me ajudara a identificar. Ele já estava fechando minha traqueia obstruindo a respiração. O simples exame de raio X indicava que meu mediastino estava tomado pelo tumor.

Naquele momento lembrei da personagem Macabéa, a triste datilógrafa de A Hora da Estrela de Clarice Lispector. Por alguma razão na hora de sua morte aquela personagem notou com felicidade uma erva daninha vencendo o asfalto. Enquanto dirigia para casa um VW Gol antigo apeguei-me também a pequenos detalhes como esse. O capim crescendo na beira da rodovia, as pessoas pedalando suas bicicletas, ou caminhando despreocupadas. Coisas que naquela altura imaginava que nunca mais teria oportunidade de fazer. Além disso imaginava que cicatrizes horrendas ficaram marcadas no pescoço para retirada dos tumores.

Ao chegar em casa narrei o diagnóstico para minha esposa e sogros e abracei meu filho que tinha então menos de seis meses de idade.

Apanhei minhas coisas e me dirigi ao hospital onde fui internado para realização de exames e início imediato do tratamento. Os exames confirmaram a suspeita do médico que agora sabia se tratar do oncologista Dr. Luis Carlos Stoeberl. Muito atencioso e preocupado autorizou a primeira quimioterapia mesmo antes de finalizados os trâmites burocráticos exigidos nestes casos.

Além das dores no pescoço eu tinha outros sintomas. Tosses fortes. Dificuldades de respiração. Inspirações profundas davam início a crises respiratórias intercaladas com muita tosse. Por todo o corpo tinha também uma coceira terrível que levou a deixar marcas na pele provocadas pelas unhas na ânsia de aplacar a comichão aguda que tomava todas as partes do corpo, em especial pernas, braços, e as costas. Esses sintomas, todos, simplesmente desapareceram depois da primeira seção de quimioterapia.

A quimioterapia é repleta de receios. Antes da realização da primeira sessão Dr. Luis avisou que meus cabelos cairiam e que em alguns casos a quimio poderia levar a esterilidade. Além disso alertou sobre os enjoos e sobre os cuidados com alimentação para reestabelecer o sistema imunológico que seria bombardeado com cada quimioterapia.

Entretanto, os cabelos não caíram, e ao fim de seis meses de tratamento eu sustentava uma barba digna de papai noel. A esterilidade não veio e isso tornou possível que Marina viesse ao mundo depois que recebi o diagnóstico de cura. Já os enjoos. Estes parecem inevitáveis. Porém, em nenhuma das sessões de quimio, ou depois delas, apresentei vômitos.

Durante o tratamento passei por cenas bizarras causadas por minha paranoia com a doença. Raramente saia de casa com medo de expor-me devido ao sistema imunológico debilitado. E quando saia, nas primeiras vezes, enchia-me de cuidados. Houve uma oportunidade em que sai para ir ao banco dirigindo meu VW Fusca 1984 em pleno dia de verão. Mantive todas as janelas fechadas. Usava casacos, um cachecol e um gorro. Tenho certeza que teria chamado a atenção de todos se saísse à rua com aquela indumentária. Felizmente, uma mínima noção do ridículo e o convencimento de minha família me levaram a deixar o cachecol e o gorro no carro. Não abri mão do casaco.

O pior momento do tratamento viria em meados de dezembro. Estava fazendo a penúltima sessão de quimioterapia. Havia implantado um cateter para receber as últimas quimioterapias em virtude de uma inflamação nas veias conhecida como flebite causada em reação as drogas da quimio. Nessa época meu tratamento não era mais custeado pelo SUS, e sim pelo plano de saúde da prefeitura onde iniciara há algumas semanas antes do diagnóstico.

Para economizar, a agulha que dava acesso ao cateter foi substituída por uma mais barata. Porém, essa agulha, por ser inadequada, agrediu o silicone do cateter permitindo uma infecção bacteriana. Essa infecção me colocou em uma cadeira de rodas. Com fortes febres, vômitos e uma fraqueza generalizada nesta altura temi que o pior pudesse ocorrer. Eu já não era capaz de sustentar o meu corpo e o simples gesto de levantar o braço parecia uma tarefa impossível. Era fim de ano. O acesso aos médicos era difícil. Mas a sorte parecia estar ao meu lado e minha internação coincidiu com o plantão do médico que me acompanhava. Depois de muitas idas se vindas ao hospital sem saber o que estava ocorrendo comigo, Dr. Luiz diagnosticou a infecção. Tratou-a, agendou uma cirurgia para extração do cateter e em algumas semanas recebi a última dose da quimioterapia em uma veia da perna. Já que as veias mais adequadas dos braços haviam todas secado em razão da flebite.

Recordo-me de fazer contato com meus pais nesse período por telefone e das saudades que sentia de pequenos atos da vida cotidiana, como sorver um café preto de minha mãe com meu pai e meus irmãos em uma dessas tardes de chuva.

Passado o tratamento segui fazendo o acompanhamento semestral. Por cinco anos carreguei comigo o medo de uma recidiva da doença. E confesso que somente depois de vencidos os dez anos do fim do tratamento passei a acreditar que estava completamente livre daquele mal.

Ao longo de todos estes anos tenho militado em uma ong que fundamos para divulgar os direitos dos pacientes oncológicos. A Sociedade Sem Câncer. Nesta ONG conheci pessoas incríveis como a querida Maria do Carmo que preside a entidade nos últimos anos levando na raça a luta por melhores condições aos pacientes.

Recentemente perdi uma pessoa muito querida vítima dessa doença. Quando a amiga Carol Chaves, muito jovem, passou por essa provação e solicitou-me que escrevesse sobre minha experiência relutei em fazê-lo com medo de reeditar os muitos sentimentos que acompanham esse diagnóstico para muitos ainda terrível. Ainda hoje é impossível falar disso por muito tempo sem um calafrio no abdômen e uma respiração que teima em descompassar-se.

Porém é assim. Ela veio e passamos por ela. Ela atravessou-nos. Varou de parte a parte cada centímetro, cada célula do corpo. Deixou cicatrizes que a maioria não conseguirá ver. Senão de perto. Bem perto. Para alguns terá deixado lições, para outros, traumas terríveis. Muitos sairão desse processo melhores do que eram. Outros não.

Eu sempre neguei a doença. Negava-a como se não fizesse parte de mim, senão como uma intrusa. Mas ela esteve aqui. Instalou-se. Desarticulou-me por completo. Depois dela veio o reinício. E decidi fazer as coisas de modo diferente. Menos trabalho. Menos tarefas. Aprendi a dizer não para muitas atribuições que me impunham.

Passaram-se de anos e vejo-me quase tão atribulado de tarefas e trabalho quanto antes. Naquele período que antecedeu meu adoecimento. Médicos e pesquisadores ainda não sabem ao certo o que causa o câncer. Sabe-se que é o mal do século e a doença que atinge três de cada quatro famílias nos Estados Unidos, por exemplo. Sabe-se que as taxas de adoecimento são maiores nos grandes centros urbanos, onde a vida é mais agitada e o tempo é matéria fugidia nas mãos de seus habitantes.

Agora, repensando minha história decido que é tempo de retomar o tempo pelas mãos. Tempo de viver bem. De viver com o mínimo para viver mais. Tenho tentado fazê-lo.

Espero que ao ler este breve relato alguma coisa também possa ser ressignificada em sua vida. Pela bem da vida. Que como aquela erva daninha da Hora da Estrela, teima em vencer o asfalto, o concreto para vicejar em verdes e claras horas de estio.

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