Fosse
certo como era que o vôo atrasaria teria escolhido a trajeto de ônibus. Agora
Euclides ouvia com uma curiosidade distante o relato do colega. “Não entendo por
que ele está fazendo isso. Acho que deve estar com dinheiro de sobra. Ele simplesmente
não quer mais atender aos clientes. Só nesta semana já é o terceiro que ele
deixa plantado esperando no escritório”. Ao que parece o relato referia-se a um
advogado outrora brilhante e altamente rentável em crise. O sujeito acumulava
clientes abandonados nos últimos meses.
O narrador era um juiz aposentado. Depois de muitos anos de pretorado agora
dedicava-se ao escritório de advocacia. Mas ao que tudo parecia indicar o sócio
não andava mais correspondendo às expectativas. Refletia sobre a decisão do advogado em crise examinando
inconscientemente que também nutria uma certa vontade de abandonar o próprio
trabalho para lançar-se em uma jornada mais estimulante. Perguntava-se: o que
estaria desviando a atenção daquele homem? Mulheres! Pensou quase que instintivamente.
Iria sondar a esse respeito perguntando ao narrador seu amigo juiz quando notou
a aterrissagem daquele monomotor deplorável.
Soube pelo amigo que se tratava de um Cessna 208 B Grand Caravan. Quando
descobriram que aquele seria o seu veículo de transporte os 15 passageiros que ainda
aguardavam o voo que atrasara entreolharam-se com uma cumplicidade perplexa. “Querem
que voemos nisso daí?” Perguntava retoricamente incrédula uma loira alta na
faixa dos 50 anos. Uma adolescente que ainda não completara seus dezoito, por
sua vez, parecia em êxtase “Vamos voar em uma relíquia, não acredito”. Quando já
estavam no pátio ela foi a primeira a dirigir-se ao piloto “Posso fazer uma
selfie na cabine de comando?” Mas a maioria acompanhava a opinião da loira, e
examinavam ainda incrédulos cada detalhe da aeronave. “Alguns terão que viajar no
chão. E preciso de um voluntario para ir deitado no cockpit” anunciou o piloto
trajado em uma camisa florida como que saído de um filme surrealista. O que
mais o impressionou foi a maneira indulgente como os passageiros, um a um, foram
tomando seus lugares até que um sujeito gordo com os seus quase 2 metros ocupou
lentamente com seu corpanzil junto ao piso da aeronave o lugar que lhe indicava
o piloto entre um mal disfarçado sorriso de escárnio. Como uma voz
resgatando-lhe de um sonho idílico, Maurício, o seu amigo juiz, finalmente
disse, convicto, e com efeito, tranquilizando a todos “Não se preocupem, eu já
pilotei um destes por muitos anos, é muito seguro. Confiem em mim, embora
projetado para 15 passageiros pode levar tranquilamente até 20 pessoas.” E
dizendo isso tomou o derradeiro lugar que restava vago na aeronave.
II
Com
fortes golpes de enxada o piloto fracionava a carne escura do carneiro que
serviria de jantar aos famélicos passageiros. Depois, quando notou que era observado
com uma já conhecida cara de espanto que lhe dirigiam os ocupantes encostou a
ensanguentada ferramenta em um canto da aeronave e continuou a operação com um
cutelo pequeno. Parecia contrariado por ter que se desfazer de uma ferramenta
mais eficaz. No seu íntimo Euclides travava uma batalha encarniçada.
Debatiam-se um misto de terror e um apetite voraz que impelia-o para aquele
carne escura, suculenta, saborosa, macilenta, apodrecida, malcheirosa. Súbito
um forte tranco. Seguido de um estalo seco. A cabeça do piloto chocara-se
contra o teto. Mauricio não vacilou nem um segundo e sobriamente dirigiu-se ao
cockpit onde instalou-se de chofre. Os passageiros não cessavam de consultar os
olhos uns dos outros como que em uma tentativa infatigável de confirmar a
verossimilhança daqueles fatos insólitos. Em instantes o experiente juiz
convertera-se em um hábil acrobata desviando-se em piruetas, mergulhos e rasantes
dos sólidos troncos amazônicos que circundavam o pequeno Cessna.
III
“O garimpo já não rende o mesmo que antigamente”.
“Apenas os mais teimosos ainda conservavam-se no acampamento em meio a
prostitutas e indígenas”. Essa é uma outra forma de contar isso pensou Euclides
enquanto ouvia a Loira conversando com um sujeito muito alinhado, com uma barba
à Clint Eastwood.
Do outro lado amarrado a uma maca estava
o piloto, com uma faixa amarrada na cabeça e alguns passageiros. Entre eles alguns
garimpeiros falavam em levar uma certa quantidade de ouro à Santarém. Daí
teriam que pegar uma conexão ao Rio onde pagariam um preço justo pelas pepitas
e safiras que exibiam. Uma delas tinha o tamanho de uma bola de tênis. Mauricio
no lado mais oposto desta cena examinava a Aeronave em busca de possíveis
avarias. Nenhuma. O pouso fora perfeito. Nem mesmo um arranhão nota-se na fuselagem
do frágil Cessna.
IV
A
aeronave dava pequenos saltos no solo levantado poeira. Atrás dela corriam
desesperados três garimpeiros. Na atmosfera um velho e cumplice olhar reinava.
Os passageiros pareciam comunicar-se por telepatia. Os garimpeiros reclamavam
para si o pequeno monomotor. Porém Mauricio furtivamente conseguira instalar-se
na aeronave e em um momento de distração durante a cesta do garimpo conseguira dar
a partida. Ao barulho do motor os garimpeiros saiam de suas cabanas trôpegos,
atropelando-se, correndo aos trancos na tentativa vã de conter a máquina que a
esta altura já ganhava velocidade sobre o terreno arenoso naquela curta clareira
na mata. Nem mesmo tinham certeza de que a decolagem seria possível. E com os
olhos fixos na aeronave os passageiros, agora abandonados à própria sorte
pareciam impelir o avião com a própria respiração que dirigiam como um sopro
para as asas daquele pássaro de lata.
V
Uma
vez instalado na linha do horizonte os passageiros retidos na floresta já não podiam mais
distinguir o que era pássaro, o que fora lata. Seus cabelos converteram-se em
folhas, galhos, musgo, líquen, cipó. Aquele olhar de dezessete anos rolou da cova dos olhos
para dormitar no solo, duas safiras verdes em flor. Euclides apoiando a picareta nos
ombros dirigiu seus passos para a margem do Rio Nhanderu~. Havia pepitas por
garimpar. Era um tempo novo.
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