quarta-feira, 17 de junho de 2020

Safiras Verdes


 Parte I

Fosse certo como era que o vôo atrasaria teria escolhido a trajeto de ônibus. Agora Euclides ouvia com uma curiosidade distante o relato do colega. “Não entendo por que ele está fazendo isso. Acho que deve estar com dinheiro de sobra. Ele simplesmente não quer mais atender aos clientes. Só nesta semana já é o terceiro que ele deixa plantado esperando no escritório”. Ao que parece o relato referia-se a um advogado outrora brilhante e altamente rentável em crise. O sujeito acumulava clientes abandonados nos últimos meses.  O narrador era um juiz aposentado. Depois de muitos anos de pretorado agora dedicava-se ao escritório de advocacia. Mas ao que tudo parecia indicar o sócio não andava mais correspondendo às expectativas.  Refletia sobre a decisão do advogado em crise examinando inconscientemente que também nutria uma certa vontade de abandonar o próprio trabalho para lançar-se em uma jornada mais estimulante. Perguntava-se: o que estaria desviando a atenção daquele homem? Mulheres! Pensou quase que instintivamente. Iria sondar a esse respeito perguntando ao narrador seu amigo juiz quando notou a aterrissagem daquele monomotor deplorável.  Soube pelo amigo que se tratava de um Cessna 208 B Grand Caravan. Quando descobriram que aquele seria o seu veículo de transporte os 15 passageiros que ainda aguardavam o voo que atrasara entreolharam-se com uma cumplicidade perplexa. “Querem que voemos nisso daí?” Perguntava retoricamente incrédula uma loira alta na faixa dos 50 anos. Uma adolescente que ainda não completara seus dezoito, por sua vez, parecia em êxtase “Vamos voar em uma relíquia, não acredito”. Quando já estavam no pátio ela foi a primeira a dirigir-se ao piloto “Posso fazer uma selfie na cabine de comando?” Mas a maioria acompanhava a opinião da loira, e examinavam ainda incrédulos cada detalhe da aeronave. “Alguns terão que viajar no chão. E preciso de um voluntario para ir deitado no cockpit” anunciou o piloto trajado em uma camisa florida como que saído de um filme surrealista. O que mais o impressionou foi a maneira indulgente como os passageiros, um a um, foram tomando seus lugares até que um sujeito gordo com os seus quase 2 metros ocupou lentamente com seu corpanzil junto ao piso da aeronave o lugar que lhe indicava o piloto entre um mal disfarçado sorriso de escárnio. Como uma voz resgatando-lhe de um sonho idílico, Maurício, o seu amigo juiz, finalmente disse, convicto, e com efeito, tranquilizando a todos “Não se preocupem, eu já pilotei um destes por muitos anos, é muito seguro. Confiem em mim, embora projetado para 15 passageiros pode levar tranquilamente até 20 pessoas.” E dizendo isso tomou o derradeiro lugar que restava vago na aeronave.

II

Com fortes golpes de enxada o piloto fracionava a carne escura do carneiro que serviria de jantar aos famélicos passageiros. Depois, quando notou que era observado com uma já conhecida cara de espanto que lhe dirigiam os ocupantes encostou a ensanguentada ferramenta em um canto da aeronave e continuou a operação com um cutelo pequeno. Parecia contrariado por ter que se desfazer de uma ferramenta mais eficaz. No seu íntimo Euclides travava uma batalha encarniçada. Debatiam-se um misto de terror e um apetite voraz que impelia-o para aquele carne escura, suculenta, saborosa, macilenta, apodrecida, malcheirosa. Súbito um forte tranco. Seguido de um estalo seco. A cabeça do piloto chocara-se contra o teto. Mauricio não vacilou nem um segundo e sobriamente dirigiu-se ao cockpit onde instalou-se de chofre. Os passageiros não cessavam de consultar os olhos uns dos outros como que em uma tentativa infatigável de confirmar a verossimilhança daqueles fatos insólitos. Em instantes o experiente juiz convertera-se em um hábil acrobata desviando-se em piruetas, mergulhos e rasantes dos sólidos troncos amazônicos que circundavam o pequeno Cessna.

III

“O garimpo já não rende o mesmo que antigamente”. “Apenas os mais teimosos ainda conservavam-se no acampamento em meio a prostitutas e indígenas”. Essa é uma outra forma de contar isso pensou Euclides enquanto ouvia a Loira conversando com um sujeito muito alinhado, com uma barba à Clint Eastwood.
Do outro lado amarrado a uma maca estava o piloto, com uma faixa amarrada na cabeça e alguns passageiros. Entre eles alguns garimpeiros falavam em levar uma certa quantidade de ouro à Santarém. Daí teriam que pegar uma conexão ao Rio onde pagariam um preço justo pelas pepitas e safiras que exibiam. Uma delas tinha o tamanho de uma bola de tênis. Mauricio no lado mais oposto desta cena examinava a Aeronave em busca de possíveis avarias. Nenhuma. O pouso fora perfeito. Nem mesmo um arranhão nota-se na fuselagem do frágil Cessna.

IV

A aeronave dava pequenos saltos no solo levantado poeira. Atrás dela corriam desesperados três garimpeiros. Na atmosfera um velho e cumplice olhar reinava. Os passageiros pareciam comunicar-se por telepatia. Os garimpeiros reclamavam para si o pequeno monomotor. Porém Mauricio furtivamente conseguira instalar-se na aeronave e em um momento de distração durante a cesta do garimpo conseguira dar a partida. Ao barulho do motor os garimpeiros saiam de suas cabanas trôpegos, atropelando-se, correndo aos trancos na tentativa vã de conter a máquina que a esta altura já ganhava velocidade sobre o terreno arenoso naquela curta clareira na mata. Nem mesmo tinham certeza de que a decolagem seria possível. E com os olhos fixos na aeronave os passageiros, agora abandonados à própria sorte pareciam impelir o avião com a própria respiração que dirigiam como um sopro para as asas daquele pássaro de lata.

V

Uma vez instalado na linha do horizonte os passageiros retidos na floresta já não podiam mais distinguir o que era pássaro, o que fora lata. Seus cabelos converteram-se em folhas, galhos, musgo, líquen, cipó. Aquele olhar de dezessete anos rolou da cova dos olhos para dormitar no solo, duas safiras verdes em flor. Euclides apoiando a picareta nos ombros dirigiu seus passos para a margem do Rio Nhanderu~. Havia pepitas por garimpar. Era um tempo novo.

Um comentário:

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