terça-feira, 10 de abril de 2012

Amor




O Amor Bate na Aorta


Cantiga de amor sem eira
nem beira,
vira o mundo de cabeça
para baixo,
suspende a saia das mulheres,
tira os óculos dos homens,
o amor, seja como for,
é o amor.


Meu bem, não chores,
hoje tem filme de Carlito.


O amor bate na porta
o amor bate na aorta,
fui abrir e me constipei.
Cardíaco e melancólico,
o amor ronca na horta
entre pés de laranjeira
entre uvas meio verdes
e desejos já maduros.


Entre uvas meio verdes,
meu amor, não te atormentes.
Certos ácidos adoçam
a boca murcha dos velhos
e quando os dentes não mordem
e quando os braços não prendem
o amor faz uma cócega
o amor desenha uma curva
propõe uma geometria.


Amor é bicho instruído.


Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que corre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem,
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.


Daqui estou vendo o amor
irritado, desapontado,
mas também vejo outras coisas:
vejo beijos que se beijam
ouço mãos que se conversam
e que viajam sem mapa.
Vejo muitas outras coisas
que não ouso compreender...


Carlos Drummond de Andrade



Os Três Mal-Amados

João Cabral de Melo Neto

Joaquim:

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

As falas do personagem Joaquim foram extraídas da poesia "Os Três Mal-Amados", constante do livro "João Cabral de Melo Neto - Obras Completas",Editora Nova Aguilar S.A. - Rio de Janeiro, 1994, pág.59.

Extraído: http://releituras.com/joaocabral_malamados.asp

3 comentários:

  1. Dois monstros da poesia falando desse troço que ensaiamos definir sem nunca poder alcançar a essência.

    Patch Adams, um médico norte-americano, perguntou certa vez em uma entrevista ao roda-viva: "Qual a sua estratégia do amor?" Em suma: não temos uma estratégia do amor. Mas temos na ponta da língua uma estratégia para o futebol. Não há algo de errado aí?

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  2. Não sou doutora,tampouco fiz mestrado,sou apenas uma assalariada,mãe,esposa e estudante,mas em todos esses setores utilizo a obra-prima de amar;e sigo as seguintes regras: Ame sem medir quanto isso irá lhe custar,se você esta disposta a realizar algo,ame o que vai fazer,e não faça o possível,mas sim o seu melhor.O principio do amor é o respeito.Dedique a Amar todos que estão a sua volta,seus filhos,seu cônjuge,seu chefe,o lixeiro,seu vizinho,seus clientes,seu irmão,seu colegas.Amar é dar o seu melhor,não importa a quem, é ser tolerante com os erros do próximo,é perdoar com sinceridade as franquezas,é ensinar os que lhe pedem,é sorrir mesmo quando se quer chorar,sabendo que as lagrimas só trarão triteza a quem te ama.È estender a mão mesmo que não lhe peçam.Amar é ser gentil no transito,na fila do banco,e com os colegas em sala.(mesmo quando vc tem vontade de esganar algumas "matracas").Se conseguírmos fazer isso,o mundo com certeza será melhor!!!!!Eu estou tentando!!!!!

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  3. Vivi, seu depoimento é emocionante. É mais do que urgente que o amor seja colocado entre as prioridades do nossa existência. Afinal, talvez precisamos exercitar um pouco mais a lembrança de nossa finitude terrena. Então, independentemente da crença ou não de um plano superior, não faz qualquer sentido viver sem atentar para esta possibilidade que faz do gênero humano este acontecimento cósmico que não se repete, e faz de cada indivíduo um ser cheio de possibilidades e portador de histórias únicas. É preciso amar. É preciso pensar em estratégias do amor. É preciso que nos lembremos a cada minuto do quanto somos insignificantes e miseravelmente limitados. E de que tudo somente pode fazer sentido quando a existência terrena é encarada como uma possibilidade compartilhada.

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