Euclides habita
as ruas de sua cidade. Aprendeu a conviver com a fome, com o frio, com os
arrepios de medo, com a dor, com todas as ausências humanas presentes nos
gestos indiferentes dos passantes. Aprendeu a mendigar do alimento: as
migalhas, do dinheiro: as moedas, do afeto: os olhares das crianças e da vida: o
prazer de esperar pela morte tranquila. A sujeira já introjetou-se em sua pele. O
álcool no seu metabolismo. Pelas ruas Euclides assenhora-se de seu destino. Seus
projetos de vida agora são passageiros, pontuais, de curtíssimo prazo. São
cinco horas da manhã. Faz algum frio os primeiros coletivos passam carregados
de operários, que mesmo sem saber, rumam para a manutenção do estado de coisas
que alimenta a legião de miseráveis que tem optado pela vida a partir das ruas.
Euclides sabe disso muito bem. Sabe que o coletivo que vai sumindo na curva é
uma das formas pelas quais o sistema torna-o invisível. Não é necessário operar
no centro do esquema financeiro para saber disso. Lá é que as coisas são menos
visíveis ainda. Números que sobem e descem ao sabor do mercado, tão
transparente quanto. Nas periferias do sistema as coisas começam a ficar mais
aparentes. E as periferias avançam agora pelas ruas da cidade urbana adentro.
Infiltram-se. Tomam prédios abandonados à especulação financeira. Formam
cortiços. Ocupam subterrâneos, marquises, pontes, viadutos, prédios públicos. A
periferia que avança sobre o centro, terminará por engoli-lo todo. É uma
questão simples. De espaço. De geografia. De aritmética simples. A periferia
mesmo com espaço para ser mais e mais periférica. Traz no seu núcleo uma
vontade humana intrínseca de ser o centro. De aí estar. Daqui há pouco, não
haverá coletivos suficientes para trazer lá das bordas do sistema as mãos,
cérebros e braços, as bucetas que constroem as engrenagens do sistema. Euclides
sorri satisfeito. Quando perceberem isso já será tarde. Tal como uma doença que
se instala silenciosamente. Assim a periferia avança sobre as ruas. Eu sou a
doença. Pensa Euclides. Sou infecto contagioso. Uma célula que sofreu uma
mutação a ponto de perder por completo sua humanidade. Somente quando ocorrer
uma hemorragia social suficientemente grande e debilitante perceberão a doença
entranhada no sistema. Talvez demore. Talvez menos. Talvez consigam seguir
remediando o corpo já claudicante da sociedade até a sua completa exaustão. Mas o que sei eu, pensa Euclides. Esse
filologismo todo também é bem pouco saudável. Saudável. Porque essa sociedade
busca tanto pela saúde. Tem muita gente que só consegue apurar o olhar em
tempos de enfermidades. A doença é que nos lembra de vez em quando, do quão
finitos e insignificantes somos nessa merda toda. Olha esse cara. Ele passa por
aqui correndo nesse horário todos os dias. Você viu o tênis que ele usava.
Reparou no ipod. Na camisa com aquele signo famoso, daquela marca cara. Ele
passa aí todos os dias. Acho que nunca me viu. Nunca parou para saber o que
passa conosco. Nunca jogou uma moeda. Podia fazer uma diferença comer um pedaço
de pão fresco uma manhã dessas, ou não, vai saber. Dia desses esse cara vai
levar um tiro no meio da testa. Ou uma facada no baço. Os mais novos estão
comentando. A questão é de justiça. Nada pessoal. Se não entregar o ipod leva.
São as células lesadas avançando sobre as células sadias. Fisiologismo puro.
Esse é o lado bom de se estar nas ruas. Estou seguro, porque já estou de certo
modo infectado. Não posso morrer porque de certa forma já não vivo. Sobreviver
não é viver. Viver tem prazer, tem lazer na vida. Na sobrevida só tem miséria.
Não tem lazer não. Já se acorda pensando em como tirar a barriga do sufoco. O
primeiro gole de cachaça é remédio pra aliviar o peso enorme da realidade sobre
os ombros. É o óculos 3D que o miserável coloca pra ver as sarjetas se
alargando. Para ver os sorrisos nos rostos, mesmo quando eles estão cerrados.
Pra ver a poesia no asfalto. O vermelho e o amarelo no cinza dos muros e das
paredes dos edifícios. A cachaça na rua não é luxo não. Faz parte do KIT básico
de sobrevivência. Por isso não tem crime maior do que negar as moedas que vão
garantir a pinga do de cada dia, tão necessária quanto as jóias, vestidos,
carros, tecidos, celulares, bijuterias que saciam a fome consumista de todo
mundo que ainda acha que tem algum tipo de vida. À felicidade é imprescindível
o consumo. Que lhes entorpece os sentidos tanto quanto a cachaça. Que lhes
torna o mundo mais tolerável, assim como o faz a cachaça entre os que habitam a
rua. As ruas são veias abertas entre os centros urbanos. Somos infestações
roendo o sistema por dentro. A cada dia mais próximos do sistema nervoso
central. Mas ainda são cinco horas. Os minutos avançaram muito pouco enquanto
Euclides pensava. A seu lado dormem Marcos e Braga. Engraçado pronunciar-lhes
os nomes de batismo. Quando ainda tinham nomes e direitos civis. Resquícios de
quando ainda eram ditos cidadãos. Marcos era um sujeito baixo com quase 60
anos. Braga tinha pouco mais de 40. Eram companheiros. Braga faturava um
dinheiro bacana como Michê. Fazia programa com homens e mulheres. Conheceu
Marcos em um programa. Não é que se apaixonaram, isso aí é um troço burguês.
Nas ruas amor de resume a buceta ou pica. Marcos abandonou tudo e foi atrás da
pica do Braga. Conta que deixou pra trás família, filhos, esposa, cachorro, e
uma conta recheada nas ilhas virgens. É curioso pensar que algumas pessoas simplesmente
ignoram que todos tem alguma merda de uma
história. As pessoas, mesmo as que habitam as ruas, não foram paridas por algum
tipo de buceta cruel que as cuspiu inteiras e sujas debaixo de algum viaduto ou
sob alguma marquise. Costumam ter uma porra de um nome e tudo. Yedo era esse
outro cara. Nasceu em um família muito grande com outros doze irmãos. Agora ele
ainda lembra do nome de cada um deles e tem detalhes sobre a personalidade de
todos. Viveu no campo até perceber que ali teria uma vida plena de mediocridades,
seu pai afogado em cachaça ao final de cada dia, sem ter mais nada a ver pela
janela além de cebolas e cebolas. Com 18 anos descarrregava caixas em uma feira
em Joinville. Mas sabia escrever o próprio nome no contracheque ao final de
cada mês. Mas o que o retirou do campo não foi a vontade de ver o mar ou coisa
que o valha. Foi a vontade grande de ver as bucetas dos puteiros da cidade.
Dezesseis anos de idade e já sabia de cor o nome de umas oitenta putas
diferentes. Tinha um lance assim. As putas se apaixonavam por ele. Nessa época
não morava na rua ainda. Dividia as noites em quartos de pensão, puteiros e
cabines de caminhão. As putas não eram as únicas que gostavam do seu rabo. A
vida foi jogando com Yedo até que casou com L. Engravidar uma puta não obriga o
sujeito a assumir grandes compromissos mas para Yedo essa era uma questão de
fazer valer o pau que trazia no meio das pernas. Aí ele é que tornou-se
caminhoneiro. Outras duas meninas vieram. E eles foram felizes por alguns anos.
Até que L. se mandou com um cara numa terça-feira de chuva. Eles estavam em casa
eram umas oito horas da noite. Um caminhão parou na frente da casinha alugada
que tinham. Quando Yedo deu-se conta L. estava subindo na cabine. Ela não disse
uma palavra. Ela não olhou pra trás Ela nem mesmo beijou as crianças. Ele ficou
mais umas duas semanas com as crianças e se mandou também. Aí é que ele passou a dormir nas ruas. Mas ninguém
imaginaria que ele fosse morrer por ensolação, na calçada, no início de uma
tarde de domingo, depois que os homens da prefeitura cortaram as árvores que faziam
a sombra onde ele sempre dormia.
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