sexta-feira, 25 de abril de 2014
Um céu de margaridas negras
Euclides sonhava. Estava no céu. Um lugar florido de margaridas que floresciam e morriam a cada segundo. Milhares delas. O solo um imenso tapete de margaridas defuntas. Uma interminável planície branca. Por detrás de suas costas se estendia um longo filete de sangue a se perder no horizonte. Eram os pés de Euclides que sangravam. E com seu sangue Euclides maculava toda aquela alvura celeste. Em vão o sacrifício das margaridas. Ele estava ali. Com seu corpo sujo, com seu sangue imundo misturando-se às pétalas alvas. Sentia pairar sobre si o bafejo de mil anjos negros translúcidos acompanhando seus passos arrastados. No horizonte longínquo distinguia-se uma luz opaca, negra. A luz ao contrário do sol, irradiava escuridão. Lançando lampejos de sombra pela planície. A medida que avançava sentia suas pernas mais pesadas. Seus pés inchavam. Doíam e sangravam mais e mais a cada passo. O hálito dos demônios que pairavam sobre sua cabeça tornava a respiração insuportável. Náuseas hediondas invadiam-lhe o estômago. Sentiu o lençol ensopado de suor. O ar-condicionado estava desligado. O quarto extremamente abafado. Tateou no escuro o botão do abajur. Em vão ouviu o estalido da chave. Faltara energia elétrica. Com dificuldade alcançou a janela. A cidade inteira estava às escuras. Ponto algum de luz era observável. Um arrepio percorreu-lhe a espinha. Lembrou do sonho de que despertara. Aquela luz negra. E agora esta escuridão que envolvia a cidade. Uma angústia enorme instalou-se no seu peito. Desejou que amanhecesse imediatamente. Desejou profundamente poder ouvir os galos de seu vizinho Bonifácio anunciando a alvorada. Era estranho sentir isto agora. Antes, o cantar dos galos causava-lhe irritação. Perguntou-se como podia sentir falta de algo que outrora lhe desagradara tanto. Procurou por alguns instantes impor algum significado lógico para aquele sonho. Mas neste momento era impossível. A lembrança do ar imundo que respirara durante o sonho ainda causava-lhe náuseas. Na verdade ainda podia sentir aquele cheiro. Resolveu caminhar até o banheiro. Lavou o rosto como se quisesse se livrar de algo incômodo pegado à sua pele. Aos poucos em meio ao breu absoluto do cômodo apertado conseguiu distinguir seu rosto no espelho. A medida que esfregava a cara suas pupilas acostumavam-se à escuridão dilatando-se. Tomava a água com as mãos sentindo a liquidez atravessando-se-lhe entre os dedos e lançava-a no rosto como a uma bofetada sólida. Dava vazão a um desespero crescente. Um pavor enorme assenhorava-se de si e já não era capaz de distinguir o rosto no espelho, que tornava-se agora cada vez mais líquido e líquido. Seu reflexo agitava-se com as águas. Pequenas ondulações formavam-se naquela superfície vertical. Aos poucos a água vinha chocar-se contra a superfície fluidamente sólida do espelho. Até que já não pudesse manter abertos os olhos tamanha a ferocidade das ondas arremessando-se contra seu rosto. Vagas que pareciam engolir-lhe e ao cômodo inteiro arrebentavam agora contra seus braços circundados sobre a cabeça. Uma náusea bruta brotou-lhe do fundo dos intestinos e arremessou contra o espelho de um golpe um jato de vômito esverdeado. Entre o visco indolente escorrendo pela lâmina de vidro espelhado pode constatar no reflexo castanho de seus olhos parados, que a luz regressara.
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