terça-feira, 29 de abril de 2014

Guapuruvu

O tempo deixou de ter o seu time usual para Euclides. Agora mesmo, enquanto observa a cidade pela janela do hotel, aquela folha que acabou de desprender-se dos ramos daquela árvore cujo nome ignora (diante de seus rotos conhecimentos de botânica)  parece cair em câmera lenta. O ar parece ter adquirido aquela resistência sólida. E à folha que viaja em direção ao asfalto, é quase impossível transpô-la. Há 2 semanas no hotel, Euclides não nutre interesse algum pelos seus assuntos habituais. Não faz planos para o futuro. Não assiste mais televisão. Não acompanha os fatos novos plantados pelos jornais e regados pela sociedade mesquinha. E, sobretudo, decidiu não falar mais. Tinha decidido poucos instantes antes de nos inserirmos em seus pensamentos com nossa curiosidade sombria, que não pensaria mais. Porém, por dois motivos, primeiro, pela completa impossibilidade de fazê-lo, e segundo pela absoluta ausência do que narrarmos, neste fado que vai se delineando, que essa súbita falta de nossa matéria prima mais substancial acarretaria, acabou decidindo que continuaria a pensar. Pelos menos por enquanto, ou até o fim desta narrativa, de modo que podeis ficar tranquilos quanto a quaisquer possibilidades de rescisão contratual no que atina ao fornecimento de pensamentos pela parte de Euclides. De todo modo a decisão tomada por
Euclides de não mais tornar a falar, a esta altura já é perene e irrevogável. Talvez caiba aqui alguma explicação mais ou menos necessária. Se calhar a alguém lembrar que Euclides até aqui não havia aberto a boca nem para dizer um mísero oi, devemos dizer então que enterreis por completo vossa esperança de ainda vê-lo, ou ouvi-lo, quem sabe, lê-lo, para aprimorar a expressão, falando. O tempo parara. Já haviam passado três semanas e meia, exatos 26 dias, desde o dia em que se instalara no hotel, quando enfim decidiu sair à rua novamente. Não diremos que eram nobres os motivos que o levavam a tanto. Na verdade, movia-o a simples necessidade de comprar determinados gêneros alimentícios, os quais, enfadado, o único funcionário do hotel, já relutava em comprar-lhe atendendo aos seus pedidos que agora vinham por escrito, posto que já não falasse. Nem bem dobrou a primeira esquina e Euclides protagonizou aquele que talvez seja o fato mais impactante desta obra. Dele falemos depois, deste fato. Importa saber o que se passava pela mente Euclidiana neste exato momento. Contrariando nossa exposição de motivos de 6 linhas atrás, Euclides viera à rua para observar de perto a folha que se soltara dos ramos no início deste capítulo, e que agora jazia inerte no asfalto quente, balançada vez ou outra pela brisa suave que soprava às dezesseis horas e doze minutos desta tarde de outono. É claro que existe uma forte hipótese de que não se trate exatamente da mesma folha cujo falecimento e queda Euclides assistiu à poucos instantes da janela do 5° andar do hotel. Mas ele não atina para isso. No sua mais profunda convicção foi esta a folha que enveredou-se há pouco rumo ao infinito, vindo deitar-se desfalecida no seu último leito de morte. O asfalto quente do calçadão da Av. Marechal Deodoro da Fonseca. Imbuído pelo mais sincero sentimento de compaixão ele então ajoelha-se. Afasta os outros cadáveres inertes, centenas, nos mais vários estágios de decomposição, e toma aquela em suas mãos, com imenso ar de cumplicidade. Outras semanas depois, quando recebeu o aviso de alta do hospital, rumou com sua cúmplice, no bolso esquerdo da camisa, para a biblioteca pública municipal. Com um volumoso livro de botânica nos braços, nomeou-lhe: Guapuruvu.

Nenhum comentário:

Postar um comentário