quinta-feira, 1 de maio de 2014

Bruxelas

Chega em casa cansado. Eles dormem inocentes àquela hora noturna. Tira toda a roupa. Caminha até o chuveiro. Abre a torneira. Pingo algum de água desce pelo chuveiro. Ouve o ar arrulhando pelos canos secos. Aguarda alguns instantes. Há algumas dezenas de produtos no armário junto ao chuveiro. Aqueles que se fazem líquidos despertam o seu interesse selvagem. Quatorze vidros de Shampoo, condicionador, loção pós-banho, removedor de esmalte, o  perfume paraguaio, desinfetante sanitário, são esvaziados sem qualquer critério que pudesse responder à um último apelo da lógica vindo de sua cabeça fatigada. Ainda nu sem reparar na toalha de banho cuidadosamente dobrada sobre o armário a um dos cantos do banheiro avança para a porta que deixara aberta na entrada. Ganha as escadas e desce os degraus de dez patamares sem escorregar por algum tipo de milagre que protege os ébrios. No pátio do condomínio recebe o ar gelado daquela madrugada de inverno. Um casal de namorados que vem surgindo por detrás de um dos edifícios dá por sua presença. Avançam sob passos rápidos e desaparecem por detrás do último edifício daquela fileira de um total de vinte e dois.  Há ainda outras duas fileiras iguais acomodando prédios idênticos com apartamentos e cheios de pessoas a cada vez mais parecidas.  A consciência dessa semelhança é embaraçosa. No último domingo jantaram com os pais dela. Um casal feliz como se diz. Ele faz planos para o feriado e ela calcula os tostões para a casa na praia. Mas o velho morreu dois dias depois. Não se sabe ao certo. Há uma bactéria que agora não pode ser contida pelos antibióticos. Parece que a ciência foi vencida. Uma nova epidemia se descortina embora os jornais ainda não deem o alarde. Mas ele o sabe. Serie este o novo fato a conter a repetição indelével dos dias todos e das mesmas coisas desde o fim da era das revoluções? Esta pergunta se fez enquanto uma velha se detinha mais do que o razoável ante o corpo inerte de seu sogro. Ela viajara alguns milhares de quilômetros para estar aí. Não foi avisada pela família. Soube. Não disse nada a filha com quem morava na Bélgica havia quinze anos. Vestiu-se de luto apanhou o passaporte e foi direto ao aeroporto. Ao taxista ainda em Bruxelas respondeu, estou indo ao enterro do amor de minha vida. Euclides, agora, diante do carro, dá-se conta de que não trouxe as chaves. Se resigna enfim, andar nu tem lá os seus inconvenientes.

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