quarta-feira, 30 de abril de 2014

Da série #aartedoengodo: Como foi feita a capa da revista Época

O neojornalismo atual surgiu na revista Veja e foi seguido pela Folha a partir de meados dos anos 80. No meu livro “O jornalismo dos anos 90” analiso em detalhes esse estilo.
Trata-se de um produto típico dos grupos de mídia, onde se misturam alguns recursos jornalísticos, recursos de dramaturgia e de marketing. É o chamado show da notícia, com muito mais show do que notícia.
Consiste em levantar uma ou duas informações verdadeiras – mesmo que irrelevantes – e montar uma roteirização copiada da dramaturgia, misturando fatos inexistentes, meras deduções ou ficção pura, tudo devidamente embrulhando em um estilo subliterário típico dos tabloides. Depois, confere-se o tratamento publicitário adequado nas manchetes chamativas e no lead – em geral prometendo muito mais do que a reportagem entrega.
Esse estilo torto atingiu o auge nos escândalos produzidos entre 2006 e a campanha de 2010, como a invasão das Farcs no Brasil, os dólares transportados em garrafas de rum, o consultor respeitado que acabara de sair da cadeia, os 200 mil dólares levados em envelopes até uma sala do Planalto, o consultor que almoçou com Erenice e foi impedido até de levar caneta, para não gravar a conversa e aí por diante.

O caso Época

A capa da revista Época desta semana, no entanto, merece uma análise de caso à parte.
Em publicações respeitadas, separa-se a pauta do conteúdo publicado. A redação recebe dicas, denúncias, indícios. Aí prepara a pauta, que é o roteiro de investigações. O repórter sai a campo e procura fatos e testemunhas que comprovem ou desmintam as informações recebidas. E só publica o que é comprovável.
O jornalismo brasileiro contemporâneo desenvolveu um estilo preguiçoso. O repórter recebe as denúncias. Em vez de sair a campo e apurar, limita-se a publicar a pauta com o desmentido do acusado, sem apresentar nenhuma conclusão sobre se o fato relatado é verídico ou não.
A reportagem da Época tem 31.354 caracteres e segue esse procedimento. É bombástica. Na capa, vale-se da linguagem publicitária para vender um peixe graúdo. O leitor abre a revista e, de cara, depara-se com páginas e páginas recheada de fotos.
Quando vai a fundo na reportagem, encontra uma única informação relevante: o parecer do terceiro escalão do jurídico da Petrobras, recomendando não questionar na Justiça o resultado da câmara de arbitragem – que fixou o valor a ser pago pela Petrobras pelos 50% da Astra. Apenas isso.
É muito menos do que outras publicações vêm levantando no decorrer da semana. Uma informação que cabe em um parágrafo foi transformada em reportagem de várias páginas através dos seguintes recursos:
1.     8% do material descreve o uniforme da Petrobrás usado por Dilma Rousseff no lançamento do navio Dragão do Mar. Sobram 92%.
2.     21% é sobre a tentativa da Brasilinvest de se associar a Paulo Roberto Costa. No final do enorme calhau, fica-se sabendo que não houve associação nenhuma. Então para quê falar de algo que não aconteceu? Fica a informação falsa de que o Brasilinvest - que não tem nenhuma expressão no mercado -, é um dos maiores bancos de investimento brasileiro e que tentou fazer negócios em Cuba. Sobram 71%.
3.     5% é sobre um advogado que teria feito lobby para a Petrosul junto à Transpetro. No final do calhau tem a palavra dele, negando qualquer trabalho, e da Transpetro, negando qualquer medida. E nenhuma conclusão do repórter. Sobram 66%.
4.     11% do texto é sobre a compra da refinaria na Argentina. Joga-se no papel um amontoado de informações passadas pela Polícia Federal e recolhidas no São Google, sem uma análise, sem uma apuração adicional, sem uma conclusão sequer. Sobram 56%.
5.     6% do texto explica em linhas gerais o suposto escândalo Pasadena. É importante para contextualizar a questão, mas inteiramente feito em cima de informações públicas. Sobram 49%.
6.     15% para descrever uma lista encontrada com o doleiro Alberto Yousseff sem pescar uma informação relevante sequer. Sobram 35%.
7.     4% descreve a pendência judicial da Petrobras com a Astra, já divulgada pela mídia,  sem nenhuma informação adicional. Sobram 31%.
8.     7% é dedicado para o parecer de técnicos do jurídico recomendando não questionar a decisão da câmara de arbitragem na Justiça. É a única informação nova da matéria. O “furo” poderia ser dada usando 1% do espaço. Sobram 23%.
9.     23% para informar (com base em fontes em off) que a Astra queria a todo custo um acordo com a Petrobras. E atribui a decisão de ir para o pau ao então presidente da Petrobras José Sérgio Gabrielli. Mas qual o motivo? Como advogados ganharam honorários com a ação, logo o motivo foi montar uma jogada com os advogados.  Simples, não? Todas essas afirmações baseadas em suposições, ilações sem um reforço sequer em fatos ou em fontes em on. Em entrevista a veículos da Globo, o ex-Diretor de Gás Ildo Sauer – presente nas reuniões – afirmou que a diretoria executiva queria o acordo mas o Conselho recusou devido ao que se considerou arrogância dos executivos da Astra. As informações são desconsideradas, membros do CA não são ouvidos. Limitam-se a mencionar fontes em off para falar da simpatia e boa vontade dos executivos da Astra.
O leitor mais atilado fica com a sensação de ter comprado gato por lebre.

Fonte: Blog do Nassif
http://jornalggn.com.br/noticia/como-foi-feita-a-capa-da-revista-epoca

E por falar em mídia:

Vale a pena o documentário de Jorge Furtado:

https://www.youtube.com/watch?v=yQ0C7z4kfz8

O MERCADO DE NOTÍCIAS (94min, 2014)
Roteiro e Direção: Jorge Furtado

O MERCADO DE NOTÍCIAS é um documentário sobre mídia e democracia, que intercala depoimentos de treze jornalistas brasileiros com trechos da peça "The Staple of News", escrita pelo inglês Ben Jonson em 1625, quando do surgimento do jornalismo, e traduzida por Jorge Furtado e Liziane Kugland. A comédia de Jonson, montada e encenada especialmente para a produção do filme, revela sua espantosa visão crítica, capaz de perceber na imprensa de notícias, recém-nascida, uma invenção de grande poder e grandes riscos.

O filme traz entrevistas com importantes nomes do jornalismo brasileiro: Bob Fernandes, Cristiana Lôbo, Fernando Rodrigues, Geneton Moraes Neto, Janio de Freitas, José Robert Toledo, Luis Nassif, Leandro Fortes, Paulo Moreira Leite, Maurício Dias, Mino Carta, Raimundo Pereira, Renata Lo Prete.

www.omercadodenoticias.com.br

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