Por: Luis Felipe Leprevost
Dias nublados
E os aromas da cozinha da chácara, a galinha de panela, a polenta, os bolos (de algum modo, ajudam na minha profissão) colados em mim por dentro. Os cheiros invadindo a casa, impregnando cortinas, toalhas, roupas de cama. Minha mãe, tia Ruth e Elza não saiam da cozinha. Na sala, esperavam as bocas, estômagos ávidos. Faziam o almoço de sábado sem nunca antes terem tido dores nas pernas. As galinhadas caipiras, a macarronada. Passavam a manhã preparando, depois nos assistiam na dança da devoração. Nas horas seguintes, voltavam à cozinha conviver travessas e panelas, ervas, molhos, pia, fogão à lenha. Depois, com a doença da minha mãe, isso mudou. Embora meu pai seguisse no intuito de manter a tradição dos almoços, para ele
sagrados.
Naquele sábado estávamos todos um pouco mais animados. Ainda assim um constante clima pesado no ar, escondendo-se atrás das cortinas. Era minha obrigação de filho esperar unido à família a decadência da mulher que me colocou no mundo e cuidou de mim. Apesar de quase não sair mais da cama, contente com minha rara presença, esforçou-se para sentar à mesa conosco. O médico tinha dado a ela pouco tempo de vida. Estava animada, conversou, fez graça. Sua risada, embora fraca, devolvia à casa uma aura acesa. Cabelos mal penteados, cheirava a Leite de Rosas. Fartamo-nos com a deliciosa posta acompanhada de spaghetti. Tia Ruth perguntou se queríamos mais. E meu pai, servindo-se de vinho
estou satisfeito.
Tadeu, Manoela e eu, quase em coro
também estou.
Minha mãe praticamente não tinha tocado na comida, mas também afastou o prato de si na direção da tia Ruth, sob os cuidados de meu pai
você não comeu nada, Gica.
estou sem apetite.
Tia Ruth raspou os restos de todos num único prato. E fez uma pilha, colocando o que continha os restos em cima dos demais. Então levantou para levar a pilha para cozinha. Então minha mãe
vou ajudar você.
não precisa, Gica.
sempre lavei a louça, não vai ser agora que você vai me dizer o que posso ou não fazer.
Meu pai tentou dissuadi-la. Não teve jeito. Ela seguiu tia Ruth. Manoela levantou e também foi para cozinha.
A cabeça de minha mãezinha não estava boa. Ela vinha tendo lapsos de memória, apagões. Irritava-se com facilidade. Na verdade, raras vezes lavara a louça. Quem fazia isso sempre era Elza, que naquele sábado não estava porque tinha ido ajudar na Festa da Uva. Minha mãe e tia Ruth também estariam na Festa, como acontecia todos os anos, não fosse a adversa circunstância que se impunha sobre a família. Passados alguns minutos, Manoela voltou afobada da cozinha. Minha mãe tinha desmaiado. Acorremos em sua direção. Tia Ruth estava agarrada a ela no chão de lajotas. Saia uma espuma branca de sua boca. Meu pomo-de-adão travou na garganta. Eu respirava ofegante. Meu pai carregou minha mãe no colo. Colocou-a com cuidado na cama do quarto deles, onde ele já não dormia mais. Desde que a doença fora diagnosticada e minha mãe passou a exigir cuidados especiais, ele se mudou para o cômodo que fora meu desde a infância e que estava vago desde que morar na chácara se tornou insuportável e me mudei para uma república, no centro, onde eu passava os dias fumando maconha e lendo. Isso há mais de quinze anos. Depois de ter passado no vestibular, PUC. À noite, ia para o Cursinho. Após as aulas, vagava sonâmbulo por becos, carente, acolhido pelo cimento dos corpos das putas, felizes, como os meus pais, por eu ter um estágio remunerado, num dos jornais da cidade. Tia Ruth abriu o armário, pegou um edredom e pôs sobre ela junto com o cobertor que já estava na cama. Olhei para Tadeu e ele chorava, apertando os olhos com as pontas do polegar e o indicador. Ele e meu pai foram para a sala. Ligaram para o Dr. Francisco. Manoela sentou na beira da cama e segurou as mãos da minha mãe. De vez em quando soltava uma das mãos e ajeitava a franja dela. Olhei fixamente para seus pés mal tratados, solas secas, unhas duras, varizes nas pernas. Tia Ruth fechou as janelas e acendeu o abajur. Saímos todos do quarto para deixá-la descansar. Meu pai ordenou
vá chamar a Elza.
Peguei a chave da caminhonete dele e fui. Aos outros, avisou
o Dr. já está vindo.
Meu pai foi até o armário da copa, pegou e abriu uma garrafa de vinho e começou beber. Ele nunca mais parou de beber aquela garrafa. Quando voltei com Elza minha mãe já estava morta. Tadeu consolava tia Ruth após ela ter ligado para o padre João. Elza com toalhas e uma bacia de água quente lavou minha mãe. De joelhos ao pé da cama tia Ruth rezou e gemeu de dor. Dr. Francisco chegou. Tarde demais para milagres. Meu pai disse com qual vestido preferia ver a esposa vestida. Manoela ajudou a vesti-la. Dr. Francisco assinou o laudo de óbito. Precisei sair de casa. Fiquei na varanda fumando. Padre João chegou, me deu os pêsames e entrou. Eu queria ajudar, mas não conseguia. Desejava ter feito algo por ela antes. Não fui atencioso. Não me dediquei. Não fiz o que pude. Todos deram o seu melhor. Manoela veio até mim e colocou a mão no meu ombro. Seus olhos um espelho, vi que ainda me considerava um monstro. Queria abraçá-la e soluçar. Mas não. Nem eu nem ela. Nada dissemos. Manoela fez um afago no meu ombro e voltou para dentro da casa. Por que eu não estava preparado? O que fazer com a necessidade de fazer as coisas diferentes se não sabemos para onde olhar, se escondemos o rosto dentro das mãos quando lágrimas escorrem, se não sabemos quando será positivo pôr as mãos no bolso ou depreciativo acariciar um cão? O que fazer se não temos aonde ir senão à merda?
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