segunda-feira, 17 de novembro de 2014

O sono acabou - Revista PIAUI

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O sono acabou

Na sociedade 24/7, dormir é coisa para derrotados
por JONATHAN CRARY
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Quem já viveu na Costa Oeste da América do Norte deve saber que, em função das estações, todo ano centenas de espécies de pássaros migram para o norte e para o sul, perfazendo distâncias variadas ao longo da plataforma continental. O pardal-de-coroa-branca é uma dessas espécies. No outono, eles voam do Alasca até o norte do México; na primavera, voltam para o norte. Diferentemente da maioria dos outros pássaros, esse pardal tem a capacidade extraordinária de permanecer acordado por até sete dias durante as migrações, o que permite a ele voar e navegar de noite e procurar por alimento de dia, sem descansar.
Nos últimos cinco anos, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos gastou uma expressiva quantia de dinheiro para estudar essas criaturas. Com recursos do governo, pesquisadores de diversas universidades, notadamente em Madison, no estado de Wisconsin, têm investigado a atividade cerebral dos pássaros durante esses longos períodos de vigília, com a esperança de obter conhecimentos aplicáveis aos seres humanos, e descobrir como as pessoas poderiam ficar sem dormir funcionar produtiva e eficientemente.
O objetivo inicial é tão somente a criação do soldado sem sono – e o estudo dos pardais-de-coroa-branca constituiu uma fração de um amplo esforço militar para obter algum controle, mesmo que limitado, sobre o sono humano. Inspirados pela Darpa (Defense Advanced Research Projects Agency), divisão de pesquisas avançadas do Pentágono, diversos laboratórios estão conduzindo testes experimentais de técnicas de privação de sono, recorrendo a substâncias neuroquímicas, terapia genética e estimulação magnética transcraniana. O objetivo de curto prazo consiste em desenvolver métodos que permitam a um combatente ficar sem dormir por pelo menos sete dias, e, no longo prazo, duplicar esse período, preservando níveis altos de desempenho mental e físico. Os atuais meios de indução à insônia têm apresentado preocupantes déficits cognitivos e psíquicos – como a diminuição da atenção, por exemplo –, como ocorreu com o uso difundido de anfetaminas em grande parte das guerras do século XX e, mais recentemente, de medicamentos como o Provigil [modafinil]. Agora, em vez de investigar formas de estimular a vigília, a ciência pretende reduzir a necessidade de sono do corpo.
Por mais de duas décadas, a lógica estratégica do planejamento militar dos Estados Unidos tem procurado remover o indivíduo de algumas etapas do circuito de comando, controle e execução. Gastam-se incontáveis bilhões de dólares em sistemas de mira e assassinato robóticos e de operação remota, com resultados desanimadoramente evidentes no Paquistão, no Afeganistão e em outros lugares. Apesar das inúmeras reivindicações por novos paradigmas de material bélico, e ainda que os analistas militares com frequência imputem ao agente humano o fracasso de operações avançadas, a necessidade militar de grandes contingentes humanos não vai diminuir no futuro próximo.
Devem-se entender os estudos sobre privação de sono no contexto de uma busca por soldados cujas capacidades físicas se aproximarão cada vez mais da eficácia de aparatos e redes não humanos. O complexo científico-militar tem se dedicado à pesquisa de formas de “cognição ampliada” que prometem aprimorar a interação entre homem e máquina. Simultaneamente, as Forças Armadas têm financiado diversas outras áreas de investigação do cérebro, bancando inclusive o desenvolvimento de uma droga contra o medo. Haverá ocasiões em que, por exemplo, drones armados com mísseis não poderão ser empregados e esquadrões da morte de soldados resistentes ao sono e à prova de medo serão necessários para missões de duração indefinida. Como parte desses esforços, o experimento com os pardais-de-coroa-branca – apartados dos ritmos sazonais do meio ambiente da costa do Pacífico – deve auxiliar o projeto de impor ao corpo humano um modelo de máquina eficaz e resistente. A história mostra que inovações relacionadas à guerra são inevitavelmente assimiladas na esfera social mais ampla, e o soldado sem sono seria o precursor do trabalhador ou do consumidor sem sono. Produtos contra o sono, após agressiva campanha de marketing das empresas farmacêuticas, iriam se tornar uma opção de estilo de vida e depois, para muitos, uma necessidade.
Mercados 24/7 (abreviação para 24 horas por dia, 7 dias por semana) e infraestrutura global para o trabalho e o consumo contínuos existem há algum tempo, mas agora é o homem que está sendo usado como cobaia para o perfeito funcionamento da engrenagem.

No início dos anos 90, um consórcio espacial russo-europeu anunciou seus planos de construir e colocar na órbita terrestre satélites que refletiriam a luz do Sol para a Terra. O esquema exigia o encadeamento de vários satélites em órbitas sincronizadas com a do Sol, a uma altitude de 1 700 quilômetros, cada um deles equipado com refletores parabólicos retráteis, feitos de um material superfino. Quando completamente abertos, cada satélite-espelho, com 70 metros de diâmetro, teria a capacidade de iluminar uma área de 25 quilômetros quadrados da Terra com uma luminosidade quase dez vezes maior do que a da Lua.
Em princípio, o projeto visava fornecer iluminação para o trabalho industrial e a exploração de recursos naturais em regiões remotas com longas noites polares, na Sibéria e no leste da Rússia, permitindo atividade ao ar livre, noite e dia. Mas o consórcio acabou expandindo seus planos para a possibilidade de oferecer iluminação noturna a regiões metropolitanas inteiras. Calculando que os custos de energia da iluminação elétrica poderiam ser reduzidos, o slogan da empresa era “Luz do dia a noite toda”.
A oposição ao projeto surgiu de imediato e de diversas frentes. Astrônomos temeram que a observação espacial a partir da Terra fosse prejudicada. Cientistas e ambientalistas apontaram consequências fisiológicas prejudiciais tanto aos animais quanto aos humanos, uma vez que a ausência de alternância regular entre dia e noite interromperia vários padrões metabólicos, inclusive o sono. Associações culturais e humanitárias também protestaram, alegando que o céu noturno é um bem comum ao qual toda a humanidade tem direito, e que desfrutar da escuridão da noite e observar as estrelas é um direito humano básico que nenhuma empresa pode eliminar. De qualquer modo, direito ou privilégio, ele já está sendo violado para mais da metade da população do planeta, em cidades que estão permanentemente envoltas na penumbra da poluição e na intensa iluminação.
Defensores do projeto, todavia, afirmaram que tal tecnologia ajudaria a diminuir o uso noturno de eletricidade e que a perda da noite e sua escuridão seria um preço razoável, considerando-se a redução do consumo global de energia. Seja como for, esse empreendimento ilustra o imaginário contemporâneo, para o qual um estado de iluminação contínua é inseparável da ininterrupta operação de troca e circulação globais. Em seus excessos empresariais, o projeto é uma expressão hiperbólica de uma intolerância institucional a tudo que obscureça ou impeça uma situação de visibilidade instrumentalizada e constante.

Desde 2001, a privação de sono tem sido uma prática de tortura aplicada às vítimas de custódia extrajudicial e a outros presos. As circunstâncias em que um dos detidos em particular, Mohammed al-Qahtani, se viu envolvido foram amplamente divulgadas, ainda que não fossem muito diferentes do tratamento recebido por centenas de outros presos cujos casos não foram tão bem documentados. Al-Qahtani foi torturado de acordo com as especificações do que agora é conhecido como o Primeiro Plano de Interrogatório Especial do Pentágono, autorizado por Donald Rumsfeld.
Praticamente privado de sono durante os dois meses em que foi submetido a sessões de interrogatório que chegavam a durar vinte horas, ele ficou confinado em cubículos onde não podia deitar, iluminados com fortes lâmpadas e equipados com alto-falantes de onde saía uma música muito alta. A comunidade de inteligência das Forças Armadas se referia a essas prisões como dark sites [locais escuros], ainda que um dos locais em que Al-Qahtani esteve encarcerado tenha recebido o codinome Camp Bright Lights [Campo de Luzes Brilhantes]. Certamente não foi a primeira vez que norte-americanos ou seus colaboradores se valeram da privação de sono. De certo modo, é equivocado destacar a técnica – para Mohammed al-Qahtani e muitos outros, a supressão do sono era apenas parte de um programa maior de espancamentos, humilhações, reclusão prolongada e simulações de afogamento. Muitos desses “programas” para prisioneiros extrajudiciais eram elaborados sob medida por psicólogos de equipes de consultoria de ciência do comportamento, que se empenhavam em explorar vulnerabilidades emocionais e físicas que identificavam em cada um deles.
Aplica-se a tortura da privação do sono há muitos séculos, mas seu uso sistemático coincide historicamente com a disponibilidade de luz elétrica e a facilidade de ampliar o som de modo continuado. Utilizada rotineiramente pela polícia de Stálin nos anos 30, em geral era a primeira etapa do que os torturadores do NKVD [Comissariado do Povo para Assuntos Internos] chamavam de “esteira rolante” – a sequência ordenada de brutalidades, da violência gratuita que danifica irreparavelmente os seres humanos. Em experimentos, ratos morrem depois de três semanas de insônia. Em humanos, basta um período relativamente curto para tal prática induzir à psicose; após algumas semanas, surgem os danos neurológicos. A falta de sono acarreta um estado de extremo desamparo e submissão – é impossível extrair informações relevantes da vítima, que confessará ou inventará qualquer coisa. A negação do sono é uma desapropriação violenta do- eu por forças externas, é o estilhaçamento calculado de um indivíduo.
Sabe-se que os Estados Unidos estão envolvidos há tempos na prática de tortura, diretamente ou por meio de governos fantoches. O período pós-11 de Setembro, porém, notabilizou-se pela naturalidade com que veio à luz a prática, tida como apenas um procedimento entre outros. Pesquisas de opinião revelam que a maioria da população aprova a sevícia em algumas circunstâncias. As discussões na grande imprensa são unânimes em não qualificar como tortura a privação de sono; ao contrário, considera-se uma forma de persuasão psicológica tão aceitável quanto a alimentação forçada de prisioneiros em greve de fome. Jane Mayer relatou em seu livroThe Dark Side (2008) que o Pentágono justificava cinicamente a privação de sono alegando que soldados da divisão de elite seal da Marinha eram obrigados a participar de missões simuladas nas quais passavam dois dias sem dormir.
O tratamento dos assim chamados prisioneiros de “alto interesse” em Guantánamo e em outros lugares combinava métodos explícitos de tortura com controle absoluto sobre a experiência sensorial e perceptiva. Os detentos, confinados em celas permanentemente iluminadas, sem janelas, eram obrigados a usar vendas nos olhos e tampões nos ouvidos. Assim, luz e som eram sempre bloqueados quando os indivíduos eram conduzidos para fora, de modo a impedir a consciência do tempo ou de algum estímulo que identificasse seu paradeiro. Esse regime de privação dos sentidos muitas vezes se estende ao contato rotineiro entre prisioneiros e guardas – estes estão sempre inteiramente paramentados, de luvas e capacete com visores espelhados de acrílico, impossibilitando que se veja o rosto ou mesmo um pedaço de pele deles. São técnicas e procedimentos pensados para a indução a estados abjetos de submissão.

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O 24/7 é um tempo de indiferença contra o qual a fragilidade da vida humana é cada vez mais inadequada, e dentro do qual o sono não é necessário nem inevitável. Em relação ao trabalho, torna plausível, até normal, a ideia de trabalhar sem pausa, sem limites. Alinha-se com o inanimado, com o inerte ou com o que não envelhece. Enquanto exortação publicitária, decreta a disponibilidade absoluta – e, portanto, um estado de necessidades ininterruptas, sempre encorajadas e nunca aplacadas. A ausência de restrições ao consumo não é simplesmente temporal. Foi-se o tempo em que a acumulação era, acima de tudo, de coisas. Agora nossos corpos e identidades assimilam uma superabundância de serviços, imagens, procedimentos e produtos químicos em nível tóxico e muitas vezes fatal. A sobrevivência do indivíduo, em longo prazo, é sempre dispensável, se para tanto seja preciso contar, mesmo que indiretamente, com a possibilidade de entreatos sem compras ou o fomento delas. Da mesma forma, 24/7 é inseparável da catástrofe ambiental, dada a exigência de gasto permanente e desperdício sem fim para sua manutenção e a interrupção fatal dos ciclos e estações dos quais depende a integridade ecológica.
Em sua profunda inutilidade e intrínseca passividade, com perdas incalculáveis para o tempo produtivo, a circulação e o consumo, o sono estará sempre a contrapelo das demandas de um universo 24/7. O fato de passarmos dormindo um bom período da vida, libertos de um atoleiro de carências simuladas, subsiste como uma das grandes afrontas humanas à voracidade do capitalismo contemporâneo. O sono é um hiato incontornável no roubo de nosso tempo pelo capitalismo. A maioria das necessidades aparentemente irredutíveis da vida humana – fome, sede, desejo sexual e recentemente a necessidade de amizade – se transformou em mercadoria ou investimento. O sono afirma a ideia de uma necessidade humana e de um intervalo de tempo que não pode ser colonizado nem submetido a um mecanismo monolítico de lucratividade, e desse modo permanece uma anomalia incongruente e um foco de crise no presente global. Apesar de todas as pesquisas científicas, frustra e confunde qualquer estratégia para explorá-lo ou redefini-lo. A verdade chocante, inconcebível, é que nenhum valor pode ser extraído do sono.

Não surpreende que, em todo lugar, esteja em curso uma corrosão do sono, dada a dimensão do que está economicamente em jogo. Ao longo do século XX houve incursões regulares contra o tempo de sono – o adulto norte-americano médio dorme hoje cerca de seis horas e meia por noite, uma redução do patamar de oito horas da geração anterior e, por incrível que pareça, de dez horas do começo do século XX. Em meados do século passado, o conhecido provérbio de que “passamos um terço de nossas vidas dormindo” parecia uma certeza axiomática, uma certeza que continua sendo minada.
O sono é um lembrete ubíquo, ainda que despercebido, de uma pré-modernidade que jamais foi completamente superada, do universo agrícola que começou a desaparecer há 400 anos. O escândalo do sono é o enraizamento em nossas vidas das oscilações rítmicas de luz solar e escuridão, atividade e descanso, de trabalho e recuperação, erradicadas ou neutralizadas em outros âmbitos. O sono possui, claro, uma história densa, assim como tudo que é supostamente natural. Jamais foi algo monolítico ou imutável, e ao longo de séculos e milênios assumiu diversas formas e padrões. Nos anos 30, Marcel Mauss incluiu tanto o sono quanto a vigília em seu estudo de “técnicas corporais”, no qual mostrou que comportamentos aparentemente instintivos eram na verdade aprendidos de diversas maneiras por imitação ou educação. No entanto, ainda assim é possível supor que havia características comuns do sono na enorme diversidade de sociedades agrárias pré-modernas.
Em meados do século XVII, o sono se desligou da posição estável que ocupara nas concepções aristotélicas e renascentistas, hoje obsoletas. Sua incompatibilidade com noções modernas de produtividade e racionalidade passou a ser notada, e Descartes, Hume e Locke foram apenas alguns dos filósofos que desprezavam o sono por sua irrelevância para o funcionamento da mente e para a busca de conhecimento. Ele perdeu o valor em face do privilégio conferido à consciência e à vontade, a noções de utilidade, objetividade e ações em interesse próprio. Para Locke, o sono era uma interrupção lamentável, ainda que inevitável, das prioridades que Deus estabeleceu para os seres humanos: serem industriosos e racionais. No primeiro parágrafo do Tratado da Natureza Humana de Hume, o sono, como a febre e a loucura, é um obstáculo ao conhecimento. Em meados do século XIX, a relação assimétrica entre sono e vigília passou a ser caracterizada segundo modelos hierárquicos nos quais o sono era tratado como uma regressão a um modo inferior e mais primitivo, no qual era inibida a atividade cerebral supostamente superior e mais complexa. Schopenhauer é um dos raros pensadores que viraram essa hierarquia contra si mesma e afirmaram que apenas no sono pode-se encontrar “o verdadeiro cerne” da existência humana.
O status incerto do sono deve ser compreendido em relação à dinâmica particular da modernidade, que invalida qualquer organização da realidade em conceitos binários complementares. A força homogeneizadora do capitalismo é incompatível com qualquer estrutura inerente de diferenciação: sagrado–profano, carnaval–dia útil, natureza–cultura, máquina–organismo e assim por diante. Assim, tornam-se inaceitáveis quaisquer noções persistentes do sono como algo de certa forma “natural”. As pessoas continuarão a dormir, claro, e mesmo nas megalópoles em expansão haverá intervalos noturnos de relativo sossego. No entanto, o sono é agora uma experiência desvinculada de ideias de necessidade e natureza. Ao contrário, e como tantas outras coisas, é tratado como uma função variável, mas controlada, que só pode ser definida instrumental e fisiologicamente.

Pesquisas recentes mostram que cresce exponencialmente o número de pessoas que acordam uma ou mais vezes durante a noite para verificar mensagens ou informações. Uma figura de linguagem recorrente e aparentemente inócua é o sleep mode [modo de hibernação], inspirada nas máquinas. A ideia de um aparelho em modo de consumo reduzido e de prontidão transforma o sentido mais amplo do sono em mera condição adiada ou diminuída de operacionalidade e acesso. Ela supera a lógica do desligado/ligado, de maneira que nada está de fato “desligado” e nunca há um estado real de repouso.
O sono é uma afirmação irracional e intolerável de que não é irrestrita a compatibilidade de seres vivos com as forças supostamente irresistíveis da modernização. Um dos truísmos conhecidos do pensamento crítico contemporâneo é que não existem características naturais inalteráveis – nem mesmo a morte, segundo aqueles que preveem que em breve estaremos todos transferindo os dados de nossa mente para uma forma digital de imortalidade. Acreditar que existam quaisquer traços essenciais que distinguem os seres vivos das máquinas é, dizem-nos críticos célebres, ingênuo e delirante. Por que alguém protestaria, pode-se argumentar, se novas drogas nos permitissem trabalhar por 100 horas seguidas? Períodos de sono mais flexíveis e reduzidos não possibilitariam maior liberdade pessoal e organização da própria vida de acordo com necessidades e desejos individuais? Menos sono não permitiria mais oportunidades de “viver a vida ao máximo”? Alguém poderia contestar que os seres humanos foram feitos para dormir à noite, que os nossos corpos estão alinhados com a rotação diária do planeta e que comportamentos que reagem às estações e à luz do Sol existem na maioria dos organismos vivos. A resposta provavelmente seria: isso é uma bobagem new age perniciosa, ou pior, uma nefasta ânsia heideggeriana por alguma conexão com a Terra. No paradigma neoliberal globalista, dormir é, acima de tudo, para os fracos.
No século XIX, após os piores abusos no trato dos trabalhadores durante a industrialização europeia, os administradores das fábricas se deram conta de que seria mais lucrativo oferecer aos empregados módicas horas de descanso a fim de torná-los produtores mais eficazes e sustentáveis no longo prazo, como mostrou Anson Rabinbach em seu estudo sobre a ciência da fadiga. Mas nas últimas décadas do século XX e até o presente, com o colapso de formas controladas ou mitigadas de capitalismo nos Estados Unidos e na Europa, desapareceu a necessidade interna de repouso e recuperação enquanto componentes do crescimento econômico e da lucratividade. O tempo para descanso e regeneração dos seres humanos é simplesmente caro demais para ser estruturalmente possível no capitalismo contemporâneo.

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A desvalorização em longo prazo do trabalho vivo não faz do repouso ou da saúde prioridades econômicas. Hoje são pouquíssimos os momentos significativos na existência humana (com a exceção colossal do sono) que não tenham sido permeados ou apropriados pelo tempo de trabalho, pelo consumo ou pelo marketing. Em sua análise do capitalismo contemporâneo, Luc Boltanski e Ève Chiapello salientaram o leque de forças que valorizam o sujeito constantemente envolvido, operando, interagindo, comunicando, reagindo ou processando em algum meio telemático. Em regiões afluentes do planeta, dizem os autores, isso ocorreu em meio à dissolução de quase todas as fronteiras entre tempo privado e profissional, entre trabalho e consumo. Nesse paradigma de permanente conexão, o maior prêmio é conferido à atividade em si mesma, “estar sempre fazendo algo, movimentar, mudar – é o que confere prestígio, em oposição à estabilidade, muitas vezes sinônimo de inação”. Tal modelo de atividade não é uma transformação do paradigma anterior da ética do trabalho, mas um modelo de normatividade completamente novo, que demanda temporalidades 24/7 para sua realização.

Voltemos brevemente ao projeto dos satélites. Colocar na órbita terrestre enormes refletores de luz solar que eliminariam a escuridão da noite é meio ridículo, parece um projeto de tecnologia tosca, mecânica, saído dos livros de Júlio Verne ou da ficção científica do começo do século XX. Na verdade, as primeiras tentativas de lançamento fracassaram – em uma ocasião, os refletores não abriram corretamente, e em outra a presença de densas nuvens sobre a cidade escolhida para o teste impediu uma demonstração convincente de seu potencial. As pretensões de um tal programa nos trazem à mente um amplo conjunto de práticas pan-ópticas desenvolvidas nos últimos 200 anos. Isto é, remetem à importância da iluminação no modelo original do Panóptico de Jeremy Bentham, que propunha inundar de luzes os espaços a fim de suprimir as sombras e criar condições de controle graças à visibilidade completa. Mas por décadas outros tipos de satélites realizaram, de maneiras muito mais sofisticadas, essas operações de vigilância e coleta de informação. Um panoptismo modernizado se expandiu muito além das ondas visíveis de luz, em direção a outras regiões do espectro, para não mencionar os diversos tipos de escâneres não ópticos e sensores térmicos e biológicos.
Talvez o projeto do satélite deva ser compreendido como a perpetuação de práticas mais claramente utilitárias que tiveram início no século XIX. Em sua história da tecnologia de iluminação, Wolfgang Schivelbusch mostra como o desenvolvimento da iluminação pública por volta da década de 1880 atingiu dois objetivos inter-relacionados: reduziu antigas ansiedades a respeito dos perigos associados à escuridão noturna e expandiu a duração e, portanto, a lucratividade de muitas atividades econômicas. A iluminação noturna constituiu uma demonstração simbólica do que os defensores do capitalismo prometeram ao longo de todo o século XIX: seria a dupla garantia de segurança e ampliação das possibilidades de enriquecer, melhorando para todos, supostamente, o tecido da existência social. Nesse sentido, o triunfo de um mundo 24/7 é uma realização daquele projeto anterior, mas com benefícios e prosperidade que se acumulam sobretudo em favor de uma poderosa elite global.
O 24/7 mina paulatinamente as distinções entre dia e noite, entre claro e escuro, entre ação e repouso. É uma zona de insensibilidade, de amnésia, de tudo que impede a possibilidade de experiência. Parafraseando Maurice Blanchot, é tanto o próprio desastre quanto a consequência do desastre, caracterizado pelo céu vazio, no qual não se vê nenhuma estrela ou sinal, em que qualquer referência se perde e nenhuma orientação é possível. Mais concretamente, é como um estado de emergência, quando um conjunto de refletores é repentinamente aceso no meio da noite, aparentemente como resposta a circunstâncias extremas, mas que continuam acesos, transformados em condição permanente. O planeta é repensado como um local de trabalho ininterrupto ou um shopping center de escolhas, tarefas, seleções e digressões infinitas, aberto o tempo todo. A insônia é o estado no qual produção, consumo e descarte ocorrem sem pausa, apressando a exaustão da vida e o esgotamento dos recursos.

Último obstáculo – na verdade, a última das “barreiras naturais”, para usar a expressão de Marx – à completa realização do capitalismo 24/7, o sono não pode ser eliminado. Mas pode ser arruinado e despojado, e existem métodos e motivações para destruí-lo. Odano ao sono é inseparável do atual desmantelamento da proteção social em outras esferas. Assim como o acesso universal à água potável tem sido exterminado pela poluição e privatização no mundo todo, somadas à valorização comercial da água engarrafada, não é difícil vislumbrar, em relação ao sono, um semelhante processo de produção de escassez. Os abusos que ele sofre criam as condições de insônia nas quais o sono deve ser comprado – mesmo que paguemos por um estado quimicamente modificado que é apenas uma aproximação do sono real.
As estatísticas sobre o aumento do uso de soníferos mostram que, em 2010, compostos como Ambien (zolpiden) ou Lunesta (eszopiclone) foram receitados para cerca de 50 milhões de norte-americanos, e muitos outros milhões compraram outros tipos de produtos que induzem ao sono. Mas seria equivocado imaginar uma melhora nas condições atuais que permitiria às pessoas dormir profundamente e acordar refeitas. A essa altura, mesmo um mundo organizado de maneira menos opressiva dificilmente eliminaria a insônia.
O filósofo Emmanuel Lévinas é um dos muitos pensadores que tentaram compreender os sentidos da insônia no contexto da história recente. A insônia, afirma, é uma forma de imaginar a extrema dificuldade da responsabilidade individual diante das catástrofes de nosso tempo. Parte do mundo modernizado no qual vivemos é composta da visibilidade ubíqua da violência inútil e do sofrimento humano que ela causa. Essa visibilidade, em todas as suas formas híbridas, é um clarão que desestabiliza toda condescendência e impede a desatenção regeneradora do sono. A insônia corresponde à necessidade de vigilância, à recusa de ignorar o horror e a injustiça que assolam o mundo. É a inquietação do esforço de evitar ignorar o sofrimento alheio. Mas essa inquietação é também a ineficácia frustrante de uma ética da vigilância; o ato de testemunhar e sua monotonia podem se tornar mera resignação diante da noite, diante do desastre. Não é nem público nem completamente privado. Para Lévinas, a insônia sempre paira entre a introspecção e a despersonalização radical; não exclui o interesse pelo outro, mas tampouco oferece uma noção clara de um espaço para sua presença. É onde enfrentamos a quase impossibilidade de viver humanamente. A insônia deve ser distinguida do fardo da vigília, com sua atenção quase insuportável ao sofrimento e à enorme responsabilidade que ele impõe.

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Existem muitas afirmações de como a vida pública e a esfera de trabalho eram alienantes para a maioria das pessoas, como “Deus nos proteja da visão única e do sono de Newton”, de William Blake; “Sobre as nossas mais nobres faculdades se espalha um sonho repleto de pesadelos”, de Carlyle; e “O sono arrasta toda a nossa vida diante de nossos olhos”, de Emerson, até “O espetáculo expressa nada mais do que o desejo de sono da sociedade”, de Guy Debord. Seria fácil reunir centenas de outros exemplos dessa caracterização às avessas da parte desperta da experiência social moderna. Imagens de uma sociedade de adormecidos vêm da esquerda e da direita, da alta e da baixa cultura, e têm sido um elemento constante no cinema, de O Gabinete do Dr. Caligari aMatrix. Essas evocações do sonambulismo em massa têm em comum a associação de comportamentos rotineiros, habituais ou de quase transe, à debilitação ou redução das capacidades perceptivas. As teorias sociológicas dominantes, em sua maioria, sugerem que os indivíduos hoje vivem e agem, ainda que de modo intermitente, em estados que são enfaticamente distintos do sono – estados de autoconsciência nos quais o sujeito pode avaliar eventos e informações, na condição de partícipe racional e objetivo da vida pública ou cívica. Quaisquer posições que caracterizem as pessoas como desprovidas de iniciativa, autômatos passivos à mercê da manipulação ou do controle de seu comportamento, são em geral consideradas redutoras ou irresponsáveis.
Ao mesmo tempo, quase todas as noções de despertar político são consideradas igualmente perturbadoras, por sugerir um processo de conversão repentino e irracional. Basta lembrar o principal slogan eleitoral do partido nazista no começo da década de 30: Deutschland erwache! – Despertai, Alemanha! Mais remota historicamente é a Epístola de São Paulo aos Romanos: “Tanto mais que sabeis em que tempo estamos vivendo: já chegou a hora de acordar [...] deixemos as obras das trevas e vistamos a armadura da luz!” Ou, mais recente e enfadonho, o chamado das forças anti-Ceausescu em 1989: “Despertai, romenos, do sono profundo em que fostes colocados pelas mãos de um tirano.” Despertares políticos e religiosos são tratados em termos perceptivos, como uma habilidade recém-adquirida de vislumbrar, através de um véu, um estado verdadeiro das coisas, de discriminar um mundo invertido de outro que está na ordem correta, ou de recuperar uma verdade perdida que se torna a negação daquela da qual despertamos.

Odespertar – perturbação epifânica da insipidez entorpecida da existência rotineira – recupera a autenticidade em oposição ao ócio entorpecido do sono. Nesse sentido, ele é uma forma de decisionismo: a experiência de um momento redentor que parece interromper o tempo histórico, no qual um indivíduo se submete a um encontro transformador com um futuro até então desconhecido. Mas toda essa categoria de imagens e metáforas não condiz mais com um sistema global que nunca dorme, garantia de que nenhum despertar potencialmente perturbador seja necessário ou relevante. Se algo sobrevive da iconografia do pôr e do nascer do sol, é em torno daquilo que Nietzsche identificou como a demanda, formulada por Sócrates, por “uma permanente luz diurna da razão”.Mas desde os tempos de Nietzsche tem havido uma transferência enorme e irreversível da “razão” humana às operações 24/7 de redes de processamento de informação e à incessante transmissão de luz por circuitos de fibra óptica.
Paradoxalmente, para a subjetividade o sono é uma imagem sobre a qual o poder opera com a menor resistência política possível uma condição que não é passível de ser instrumentalizada ou externamente controlada – que evade ou frustra as demandas da sociedade de consumo global. Assim, não é preciso lembrar que os muitos clichês do discurso social e cultural dependem de um sentimento monolítico ou vazio do sono. Blanchot, Merleau-Ponty e Walter Benjamin são apenas alguns dos pensadores do século XX que refletiram sobre a profunda ambiguidade do sono e sobre a impossibilidade de encaixá-lo em qualquer esquema binário. O sono deve ser entendido em relação às distinções entre público e privado, entre o individual e o coletivo, mas sempre levando em consideração sua permeabilidade e proximidade. Penso sobretudo que, no contexto de nosso próprio presente, o sono pode representar a durabilidade do social, e pode ser análogo a outros pilares nos quais a sociedade poderia se escorar ou proteger-se a si mesma. O sono – estado mais privado e vulnerável de todos – depende crucialmente da sociedade para se sustentar.
Um dos exemplos vívidos da insegurança do estado de natureza no Leviatã de Thomas Hobbes é a vulnerabilidade de um indivíduo adormecido diante dos inúmeros perigos e predadores que se deve temer a cada noite. Assim, uma obrigação rudimentar da comunidade é oferecer segurança para aquele que dorme, não apenas contra perigos reais, mas – igualmente importante – contra a ansiedade que geram. A proteção daquele que dorme, por parte da comunidade, ocorre no interior de uma reconfiguração maior da relação social entre segurança e sono. No início do século XVII, ainda se podem encontrar resquícios de uma hierarquia imaginada que distinguia as capacidades sobre-humanas do senhor ou do soberano – cujos poderes oniscientes, ao menos simbolicamente, não sucumbiam às condições desabilitadoras do sono – dos instintos somáticos de homens e mulheres trabalhadores.
No entanto, em Henrique V, de Shakespeare, e Dom Quixote, nos deparamos tanto com a formulação quanto com o esvaziamento desse modelo hierárquico. Para o rei Henrique, a distinção relevante não é apenas entre sono e vigília, mas entre uma vigilância perceptiva mantida ao longo da “noite totalmente vigiada” e a sonolência profunda, bem como a “mente vazia”, do pequeno proprietário ou do camponês. Sancho Pança, de outro ponto de vista, divide o mundo entre aqueles que, como ele próprio, nasceram para dormir e aqueles que, como seu senhor, nasceram para vigiar. Em ambos os textos, ainda que subsistam as obrigações associadas à posição na hierarquia, existe uma consciência paralela da obsolescência e da persistência meramente formal desse modelo paternalista de vigilância.
A obra de Hobbes é um importante indício de uma transformação da garantia de segurança e das necessidades daqueles que dormem. Novos tipos de perigo substituíram aqueles que preocupavam Henrique e o senhor de Sancho Pança, e esses perigos são tratados em um acordo contratual não mais fundado em uma ordem natural de posições terrenas e celestes. As primeiras grandes repúblicas burguesas, assim como a comunidade imaginada por Hobbes, eram exclusivistas, pois existiam para servir às necessidades das classes proprietárias. Assim, a segurança oferecida àquele que dorme diz respeito não apenas à segurança física ou corporal, mas à proteção de sua propriedade e de seus bens enquanto está dormindo. Ainda, a ameaça potencial ao sono pacífico da classe proprietária viria dos pobres e dos indigentes, enquanto entre aqueles cujo sono cabia ao rei Henrique zelar estavam incluídos os inferiores, até mesmo o “escravo infeliz”. A relação entre propriedade e o direito ou privilégio de um sono tranquilo tem suas origens no século XVII e permanece em vigor nas cidades do século XXI. Os espaços públicos são agora totalmente planejados com a finalidade de impedir o sono, muitas vezes incluindo – com uma crueldade particular – o formato serrilhado de bancos e outras superfícies acima do chão que impedem que um corpo humano se deite sobre eles. O fenômeno disseminado, mas socialmente ignorado, dos sem-teto urbanos é sinal de inúmeras privações, mas poucas são mais agudas do que os riscos e inseguranças do sono desabrigado.
Em um sentido mais amplo, no entanto, o contrato que pretendia oferecer proteção a qualquer pessoa, proprietária ou não, foi quebrado há muito tempo. Na obra de Kafka encontramos a ubiquidade das condições que Hannah Arendt identificou como a ausência de espaços ou tempos nos quais pode haver repouso e regeneração. O romance O Castelo, a novela A Construção e outros textos trazem à tona a insônia e a vigilância obrigatória que acompanham as formas modernas de isolamento e alienação. Em O Castelo há uma inversão do antigo modelo de proteção soberana: aqui, a vigilância inútil e a vigília aflitiva do agrimensor marcam sua inferioridade e irrelevância para os funcionários sonolentos da burocracia do castelo. A Construção, uma história da redução da existência humana à busca obsessiva e ansiosa de autopreservação, é um dos retratos mais lúgubres, em toda a literatura, da vida como solidão, da qual se extirpou qualquer reciprocidade. É uma visão sombria da vida humana na ausência de comunidade ou sociedade civil, infinitamente distante das formas coletivas de vida dos recém-criados kibutzim pelos quais Kafka se sentia tão atraído.

Odesastre na fábrica de produtos químicos em Bhopal, na Índia, em 1984, expôs de forma terrível a absoluta falta de proteção ou segurança para os mais carentes. Pouco depois da meia-noite de 2 de dezembro, um vazamento de gases altamente tóxicos de um tanque de armazenamento precariamente mantido matou milhares de moradores da região – a maior parte deles dormia no momento do acidente. Outros milhares de pessoas morreram nas semanas e meses seguintes, e houve um número ainda maior de feridos ou inválidos para toda a vida. O desastre de Bhopal é até hoje a revelação definitiva do desacordo entre a globalização corporativa e a possibilidade
de segurança e sustentabilidade para as comunidades humanas. Nas décadas seguintes, a insistente negação de responsabilidade ou de justiça em relação às vítimas pela empresa Union Carbide confirma que o próprio desastre não pode ser tratado como um acidente e que, no contexto das operações corporativas, as vítimas eram inerentemente supérfluas.
Decerto as consequências teriam sido igualmente horríveis se o acidente tivesse ocorrido durante o dia, mas o fato de ter acontecido à noite ressalta a vulnerabilidade sem par da pessoa adormecida em um mundo do qual desapareceram ou foram enfraquecidas antigas garantias sociais. Diversos pressupostos fundamentais a respeito da coesão das relações sociais se aglutinam em torno da questão do sono – na reciprocidade entre vulnerabilidade e confiança, entre exposição e proteção. É crucial a dependência da guarda de outros para a despreocupação revigorante do sono, para um intervalo periódico no qual se está livre de temores, e para um esquecimento temporário “do mal”. À medida que se intensifica a corrosão do sono, pode-se compreender melhor como a solicitude essencial em relação àquele que dorme não difere qualitativamente da proteção exigida por formas mais imediatamente óbvias e agudas de sofrimento social. 

http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-96/tribuna-livre-da-luta-de-classes/o-sono-acabou

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