quarta-feira, 27 de junho de 2018

As mutações constitucionais no contexto brasileiro de crise da representação democrática

Por Anderson Ramos da Silva*

A mutação constitui desde a sua origem, um fenômeno difícil de definir, delimitar e codificar quanto a sua natureza, tendo em vista que envolve uma realidade, seja no domínio jurídico, seja no domínio dos fatos e que nesses dois domínios, a mutação quando ocorre produz, efetivamente, impactos incontornáveis em torno do método da interpretação constitucional, de legitimidade democrática e do principio da separação do poder (CANOTILHO, 2015).

A título de exemplo, no brasil, por força da ADIn 4477 e da ADPF 132, o Supremo Tribunal Federal considerou constitucional a união entre duas pessoas do mesmo sexo por força de uma interpretação constitucional expressa que dizia que o instituto de união estável envolveria apenas pessoas de sexo diferente (BRASIL, 2011). Portanto, visualiza-se, nesse caso, a operação de uma mutação constitucional.

Outro caso interessante é o RE 197.917/SP que se refere ao caso da proporcionalidade do número de vereadores. Foi decidido nesse caso que era inconstitucional o critério anterior para fixação máxima das câmeras municipais e muito embora fosse um RE proveniente de uma Ação Civil Pública, os efeitos dessa decisão foram vinculantes para todos os Estados da Federação e isso gerou uma reação imediata do legislativo que editou a emenda constitucional n° 58 detalhando o número de vereadores de acordo com o número de habitantes de cada município (BRASIL, 2014).

Acerca desses exemplos, sob o manto da atividade interpretativa e do controle da constitucionalidade, surge um fenômeno de criação jurisprudencial de normas materialmente constitucionais com cunho inovador, e, portanto, posicionadas no hemisfério das mutações constitucionais.

As alterações da constituição podem ter origens diversas para dizer como podem aparecer as mutações: a partir de costumes, de práticas constitucionais, de desuso das normas, disposições legislativas que contrariam a constituição, mas sem que haja oposição nessa contrariedade na medida em que vão se sedimentando e, finalmente, as fontes jurisprudenciais de viés interpretativo, sejam internas, sejam externas (CANOTILHO, 2015).

Nesse cenário, há 3 questões importantes para abordar: 1) Como definir e identificar, sob uma perspectiva dogmática uma mutação informal da constituição?; 2) Em que medida as mutações informais são constitucionalmente permissíveis? Portanto, tem haver com a temática dos limites jurídicos das mutações; e 3) Em que termos o fenômeno da mutação não abala a soberania popular no processo de produção de normas constitucionais e o princípio da separação do poder?

Inicialmente, antes de adentrar na resolução dos questionamentos acima deduzidos, o professor José Gomes Canotilho (2015) esclarece o conceito de mutação constitucional particularmente popular, tendo em vista sua simplicidade, na medida em que entende que as mutações constitucionais ou são ontogenéticas, portanto, advém da própria norma e no fundo constituem um ato legítimo de interpretação criativa da constituição a partir da própria norma. Ou são endogenéticas, ou seja, resultam de fora, portanto vem da realidade para chocar-se com a norma, assim, envolve uma criação silenciosa de normas diferentes das normas constitucionais, contrariam o problema normativo da constituição e, portanto, seriam inadmissíveis e inconstitucionais. Segundo o autor, isso acabaria por fraudar a constituição e seria uma via para a transição constitucional

No que concerne ao entendimento de Canotilho e acerca dos 3 casos acima abordados, nenhum desses se encaixa em uma ou outra realidade abordada pelo autor, pois em nenhuma das questões há uma violação da identidade da constitucional, conforme entende Canotilho, mas por outro lado, nenhuma das questões decorre de uma interpretação, ainda que evolutiva da constituição, pois dizem coisas que não estão lá e, portanto, é difícil ainda que por via analógica ostensiva fazer sentido.

No texto, objeto desse estudo, a mutação constitucional se insere no contexto de mudanças informais do texto da constituição, na medida em que trata o fenômeno da mutação constitucional como um “processo de acomodação do direito constitucional em uma realidade constitucional” (LOWENSTEIN, 1976, apud SACCHETTO, 2015). Em outra perspectiva, Hesse (1983) apud Sacchetto (2015), compreende a mutação constitucional como “uma interpretação diferente dos enunciados constitucionais em franca contradição com o seu texto”.

Mas essas definições ainda não conseguem uma diferenciação clara, entre mutação e interpretação evolutiva, sendo que esta última, advém de uma interpretação que se encaixa no âmbito da interpretação e, portanto, não são mutações. Por exemplo, a alteração no âmbito da realidade que envolvem modificação na aplicação da norma. Por outro lado, a descodificação de conceitos indeterminados, ou seja, as chamadas normas com “fórmulas” vagas e que envolvem uma intensa atividade concretizadora por parte do tribunal constitucional. Logo, se enquadra, em regra, no âmbito de uma interpretação evolutiva e não de uma mutação constitucional.

Muitas vezes há normas e princípios que remetem para valores morais e, portanto, quando a constituição integra valores de natureza moral, ela é interpretada a luz desses mesmos valores, ou seja, de uma ordem metajurídica fora da ordem jurídica.

Dessa forma, não há definições confortáveis sobre a mutação constitucional. Entretanto, a fim de dar uma definição provisória, Canotilho (2015) diz que são normas de conteúdo politicamente inovador, geradas e consolidadas pelos poderes jurídicos e jurisdicional à margem do processo formal de revisão, são aptas a produzirem efeitos materialmente ou imaterialmente decorrentes das obras constitucionais ou ainda, os efeitos que transformam o problema normativo das intepretações constitucionais ou surgem como forma inovadora ao texto da constituição.

Nesse sentido, a mutação constitucional nada mais é do que uma espécie de mutação normativa. E a mutação normativa não é nenhum privilégio do texto constitucional, a textura aberta é uma característica das normas, todavia, tendo em vista a sua natureza e o papel que desempenha, o texto constitucional é mais aberto que os demais e por isso é mais propenso a mutação. Logo, a mutação é produto da linguagem constitucional com fatores externos como os econômicos, culturais e sociais. Portanto, a linguagem constitucional aliada aos fatores externos, equivale à mutação constitucional.

Entretanto, a tarefa de identificação do fenômeno de mutação informal no caso concreto é um trabalho difícil e, portanto, uma das questões fundamentais, é tentar discutir o grau de inovação política que rodeia um processo, uma alteração de sentido de um preceito constitucional e dessa forma, traçar uma fronteira entre a mutação e a interpretação evolutiva.

O fato é que muitas vezes existem situações que foram codificadas como híbridas e que é extremamente difícil identificar precisamente essa fronteira. Há um exemplo dado por Ronaldo Dworkin (2006) que tem haver com uma interpretação por camadas ou capítulos e diz que o construtivismo norte americano, que é uma via para a mutação, envolve um conjunto de precedentes constitucionais de uma determinada matéria e que cada juiz, em relação a uma matéria vai acrescentando uma camada ou capítulo novo e, portanto, a norma vai evoluindo.

O problema surge quando procura-se saber quando um capítulo novo que se insere dentro de uma lógica de precedentes, deixa o campo da interpretação para passar para o campo da mutação constitucional. Logo, desfigurando, muita das vezes, a própria constituição e aquilo que foi o direito decidido de um determinado objetivo.

Isso mostra que o estudo de Dworkin nos dá uma lição, na medida em que visualiza-se que a mutação constitucional raramente é instantânea, pois elas vão evoluindo e se consolidando até se afirmarem. Portanto, a mutação constitucional envolve um processo lento, uma prática reiterada que se vai consolidando sem oposição, de modo que é difícil perceber a existência de mutações instantâneas da constituição.

Em uma outra perspectiva, tem-se as mutações puras e impuras, ou seja, constitucionais e inconstitucionais. Nesse cenário, Canotilho (2015) entende que a partir do momento em que uma mutação constitucional contraria a identidade da constituição e aquilo que é um consenso constitucional, terá uma mutação inconstitucional.

O esclarecimento é pertinente, mas deixa dúvidas se resolve certo tipo de situações que tem haver precisamente com normas que nascem nesse contexto, como por exemplo: mutações ou alterações da constituição que envolvam modificações de competência dos órgãos de soberania do Estado (Supremo Tribunal Federal, Senado e outros órgãos parlamentares), sendo que indaga-se se, quando de fato, uma decisão caminhar nesse sentido e um determinado órgão passar a exercer as competências do outro sem oposição, e a partir daí, criar-se-iam todas as hipótese constitucionais de uma mutação.

Todavia, com essa consolidação, a inconstitucionalidade parece difícil de ocorrer, na medida em que haja uma interiorização do fenômeno. Isso levanta o problema de mutações que nascem claramente em estado de inconstitucionalidade, mas que se perduram no tempo sem oposição e, após a sua sedimentação, há a perda da oportunidade para que ocorra essa sansão.

Uma outra questão tem haver com a fato da mutação estar mais próxima do poder constituinte e essa é a questão mais interessante do fenômeno: a mutação estar mais próxima do poder constituinte do que propriamente o poder de revisão, sendo que esse último implica em um processo pré estabelecido da alteração das normas constitucionais, ao passo que o poder constituinte é uma realidade existencial, uma realidade de fato.

Nesse sentido, as mutações emergem como fatos consumados, de modo que qualquer oposição consistiria em um intento puramente em vão. Portanto, tal como o poder constituinte é uma força da natureza, as mutações constitucionais nascem do universo dos fatos, mesmo através de atos jurídicos e sentenças e acabam no fundo, por serem impostos. Logo, essa realidade levanta um problema que não é o poder constituinte propriamente dito, mas é um poder constituinte sem povo e sem vontade democrática legitimadora.

Essa questão nos leva a última questão que é o princípio da separação do poder, e em que pese a sua jurisdição de cunho político, é um poder independente e imparcial, tendo em vista que objetiva defender a constituição de violações potenciais oriundas do legislador. A função da justiça constitucional é um poder de controle de constitucionalidade e a própria interpretação das normas constitucionais é uma realidade instrumental desse poder de controle (CANOTILHO, 2015).

Quando a justiça constitucional se inova politicamente e se afasta do problema político dos preceitos fundamentais para revelar normas que não foram decididas e que derrogam as normas, muitas vezes, já decididas, as transformam em alguma coisa que não tem correspondência no texto constitucional ou ainda, para editarem novos critérios de decisão a partir de princípios neutros, onde cabe um pouco de tudo (CANOTILHO, 2015). Com isso, surge a questão se a justiça constitucional exerce a sua função de maneira imparcial e a imparcialidade é um atributo precisamente da função jurisdicional.

Essa é uma questão que se coloca nos domínios dos poderes do Estado, tendo em vista que referido poder surge em razão da justiça constitucional e que tem última palavra relativamente a litígios que envolvem a alta política e envolvem a própria constituição, a qual não é controlável. Dessa forma, a justiça constitucional não está sujeita a controle. O único controle possível é a própria revisão constitucional, mas eventualmente nem isso no Brasil acontece, pois tem havido casos em que o STF declara a inconstitucionalidade das próprias emendas constitucionais, como por exemplo a EC 62/2009 por meio da ADIn 4357 e 4425 (BRASIL, 2015). Assim, quando existe um plano de tensão entre o legislativo e o poder jurisdicional tem sido o poder jurisdicional freado, tendo em vista que cabe ao poder constituinte a última palavra.

No que concerne relativamente a crise de representação, também objeto desse estudo, de maneira muito clara, em uma simples imersão no contexto político social brasileiro, visualiza-se que a crise não é tanto de representação política, embora ela exista, mas a crise é principalmente da falta de politização, ou seja, em vez de ficar no samba de uma nota só, que é o tema da corrupção, é abrir para discutir o significado das coisas, o motivo dos projetos, a razão dos erros e objetivamente, isso é repolitizar a sociedade brasileira.

Portanto, a mutação constitucional envolve um problema de criação constitucional à margem da própria constituição, envolve um problema de limitação da função jurisdicional porque não há qualquer alteração da constituição, ainda que em sede de mutação informal que não passa pelo tribunal constitucional, portanto, ou é originária dos poderes políticos, de modo que o tribunal constitucional poderá censurar essa alteração ou é originária do próprio tribunal constitucional. Com isso, surge um problema de limitação entre a função legislativa e a função jurisdicional, um problema de legitimidade democrática e há eventualmente, um problema a nível de separação de poder do consenso constitucional do que é separação do poder que poderia gerar riscos paras as bases do Estado Democrático e, portanto, o tratamento dessa temática poderá implicar na revisão do conceito de separação do poder tal como tem sido, de alguma forma, interiorizado e corporizado.

Referências

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 197.917 de São Paulo. Recorrente: Ministério Público Estadual. Recorrido: Câmara Municipal e Mira Estrela. Relator: Ministro Maurício Corrêa. Brasília, 24 de março de 2014. Disponível em: <https://http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=1631538//>. Acesso em: 17 jun. 2018.

______. Supremo Tribunal Federal. Ação Direita de Inconstitucionalidade 4277 do Distrito Federal. Requerente: Ministério Público Federal (MPF). Relator: Luiz Fux. Brasília, 5 de maio de 2011. Disponível em: http:<//http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=11872 >. Acesso em: 17 jun. 2018.

______. Supremo Tribunal Federal. Ação Direita de Inconstitucionalidade 4357 do Distrito Federal. Requerente: Conselho Federal Da Ordem Dos Advogados Do Brasil – CFOAB; Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB Relator: Luiz Fux. Brasília, 25 de março de 2015. Disponível em: http:<// http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=3813700>. Acesso em: 17 jun. 2018.

______. Supremo Tribunal Federal. Ação Direita de Inconstitucionalidade 4425 do Distrito Federal. Requerente: Confederação Nacional Da Industria. Relator: Luiz Fux. Brasília, 25 de março de 2015. Disponível em: http:<// http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=3900924>. Acesso em: 17 jun. 2018. 

CANOTILHO, José Gomes. Direito constitucional ambiental brasileiro. 6. ed. Saraiva, 2015.

DWORKIN, Ronald. O Direito de Liberdade: a leitura moral da constituição norte-americana. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

SACCHETTO, Thiago Coelho. As mutações constitucionais no contexto brasileiro de crise da representação democrática. e-Pública, Lisboa , v. 2, n. 1, p. 123-140, jan. 2015 . Disponível em http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2183-184X2015000100007&lng=pt&nrm=.pf&tlng=pt. acesso em 10 jun. 2018.

* Acadêmico da 10ª fase do Curso de Direito da Catolica de SC. Aprovado no XXIV Exame de Ordem.

terça-feira, 19 de junho de 2018

Nova lei liberando agrotóxicos: interessa a quem????

Atenção ao PL 6299 - Autor Blairo Blagi - Atual Ministro Agricultura do PP - no Governo Temer

Foram mais de 20 manifestações de comunidades científicas, entre elas o Instituto Nacional do Câncer, a Fiocruz e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)
https://noticias.uol.com.br/meio-ambiente/ultimas-noticias/redacao/2018/06/19/pesquisa-aponta-que-agrotoxicos-sao-causa-de-puberdade-precoce-em-bebes.htm

quarta-feira, 13 de junho de 2018

Veja meu bem, essas feridas da vida, Margarida

Fevereiro de 2006. Retorno de uma viagem a Brasília, primeira vez que voara de avião na vida, com uma dor incômoda no pescoço. O desconforto da viagem e uma noite mal dormida me levaram a crer que não era nada sério. A dor persistiu e se agravou. 


Logo não conseguiria mais virar o pescoço, atrapalhando gestos simples da vida como atravessar uma rua. Imaginando se tratar de algum problema menor procurei o hospital. Jovem com então 25 anos de idade eu não tinha plano de saúde. E adoecer não estava nos meus planos. 


Fui atendido pelo SUS. Por sorte todos os procedimentos foram muito rápidos e em meia hora já tinha conversado com médicos de três especialidades diferentes: o clínico geral que me atendeu primeiro. A pneumologista que estranhou a radiografia que apresentava um deslocamento em minha traqueia e me perguntou se eu havia engolido algo diferente. E por fim o oncologista para quem fui encaminhado e que me perguntou a idade, se já tinha filhos e se pretendia ter outros. Com a suspeita de um linfoma ele disse que me internaria imediatamente. Eu me recusei e fiz com que ele acreditasse que eu voltaria depois de pegar algumas roupas, uns livros e avisar minha família. Ele resistiu talvez imaginando que eu fosse capaz de alguma bobagem.

Não tinha esses registros na época, mas agora sei que o receio do médico oncologista que me atendeu era fundado. Estudos sugerem que as taxas de suicídio são 60% maiores em pacientes que recebem o diagnóstico de uma neoplasia. Essa taxa chega a 300% se a doença afetar os pulmões.

Mesmo sem conhecer esses dados suspeitei que as pessoas eventualmente pudessem tentar qualquer coisa contra si depois de um diagnóstico que possam imaginar terminal, me pareceu que era essa a preocupação do médico naquele momento. Isso em mim teve um efeito terrível.

Imaginei que minha situação fosse realmente grave – e era – mas tinha 90% de chances de cura. Porém, essa probabilidade de cura depende de uma serie de fatores. E de fato, se tratava daquela doença cujo nome muitas vezes evito proferir até hoje: Câncer.

No caminho do hospital até minha casa imaginei o pior. Eu tinha um caroço de aproximadamente cinco centímetros no pescoço que o medico me ajudara a identificar. Ele já estava fechando minha traqueia obstruindo a respiração. O simples exame de raio X indicava que meu mediastino estava tomado pelo tumor.

Naquele momento lembrei da personagem Macabéa, a triste datilógrafa de A Hora da Estrela de Clarice Lispector. Por alguma razão na hora de sua morte aquela personagem notou com felicidade uma erva daninha vencendo o asfalto. Enquanto dirigia para casa um VW Gol antigo apeguei-me também a pequenos detalhes como esse. O capim crescendo na beira da rodovia, as pessoas pedalando suas bicicletas, ou caminhando despreocupadas. Coisas que naquela altura imaginava que nunca mais teria oportunidade de fazer. Além disso imaginava que cicatrizes horrendas ficaram marcadas no pescoço para retirada dos tumores.

Ao chegar em casa narrei o diagnóstico para minha esposa e sogros e abracei meu filho que tinha então menos de seis meses de idade.

Apanhei minhas coisas e me dirigi ao hospital onde fui internado para realização de exames e início imediato do tratamento. Os exames confirmaram a suspeita do médico que agora sabia se tratar do oncologista Dr. Luis Carlos Stoeberl. Muito atencioso e preocupado autorizou a primeira quimioterapia mesmo antes de finalizados os trâmites burocráticos exigidos nestes casos.

Além das dores no pescoço eu tinha outros sintomas. Tosses fortes. Dificuldades de respiração. Inspirações profundas davam início a crises respiratórias intercaladas com muita tosse. Por todo o corpo tinha também uma coceira terrível que levou a deixar marcas na pele provocadas pelas unhas na ânsia de aplacar a comichão aguda que tomava todas as partes do corpo, em especial pernas, braços, e as costas. Esses sintomas, todos, simplesmente desapareceram depois da primeira seção de quimioterapia.

A quimioterapia é repleta de receios. Antes da realização da primeira sessão Dr. Luis avisou que meus cabelos cairiam e que em alguns casos a quimio poderia levar a esterilidade. Além disso alertou sobre os enjoos e sobre os cuidados com alimentação para reestabelecer o sistema imunológico que seria bombardeado com cada quimioterapia.

Entretanto, os cabelos não caíram, e ao fim de seis meses de tratamento eu sustentava uma barba digna de papai noel. A esterilidade não veio e isso tornou possível que Marina viesse ao mundo depois que recebi o diagnóstico de cura. Já os enjoos. Estes parecem inevitáveis. Porém, em nenhuma das sessões de quimio, ou depois delas, apresentei vômitos.

Durante o tratamento passei por cenas bizarras causadas por minha paranoia com a doença. Raramente saia de casa com medo de expor-me devido ao sistema imunológico debilitado. E quando saia, nas primeiras vezes, enchia-me de cuidados. Houve uma oportunidade em que sai para ir ao banco dirigindo meu VW Fusca 1984 em pleno dia de verão. Mantive todas as janelas fechadas. Usava casacos, um cachecol e um gorro. Tenho certeza que teria chamado a atenção de todos se saísse à rua com aquela indumentária. Felizmente, uma mínima noção do ridículo e o convencimento de minha família me levaram a deixar o cachecol e o gorro no carro. Não abri mão do casaco.

O pior momento do tratamento viria em meados de dezembro. Estava fazendo a penúltima sessão de quimioterapia. Havia implantado um cateter para receber as últimas quimioterapias em virtude de uma inflamação nas veias conhecida como flebite causada em reação as drogas da quimio. Nessa época meu tratamento não era mais custeado pelo SUS, e sim pelo plano de saúde da prefeitura onde iniciara há algumas semanas antes do diagnóstico.

Para economizar, a agulha que dava acesso ao cateter foi substituída por uma mais barata. Porém, essa agulha, por ser inadequada, agrediu o silicone do cateter permitindo uma infecção bacteriana. Essa infecção me colocou em uma cadeira de rodas. Com fortes febres, vômitos e uma fraqueza generalizada nesta altura temi que o pior pudesse ocorrer. Eu já não era capaz de sustentar o meu corpo e o simples gesto de levantar o braço parecia uma tarefa impossível. Era fim de ano. O acesso aos médicos era difícil. Mas a sorte parecia estar ao meu lado e minha internação coincidiu com o plantão do médico que me acompanhava. Depois de muitas idas se vindas ao hospital sem saber o que estava ocorrendo comigo, Dr. Luiz diagnosticou a infecção. Tratou-a, agendou uma cirurgia para extração do cateter e em algumas semanas recebi a última dose da quimioterapia em uma veia da perna. Já que as veias mais adequadas dos braços haviam todas secado em razão da flebite.

Recordo-me de fazer contato com meus pais nesse período por telefone e das saudades que sentia de pequenos atos da vida cotidiana, como sorver um café preto de minha mãe com meu pai e meus irmãos em uma dessas tardes de chuva.

Passado o tratamento segui fazendo o acompanhamento semestral. Por cinco anos carreguei comigo o medo de uma recidiva da doença. E confesso que somente depois de vencidos os dez anos do fim do tratamento passei a acreditar que estava completamente livre daquele mal.

Ao longo de todos estes anos tenho militado em uma ong que fundamos para divulgar os direitos dos pacientes oncológicos. A Sociedade Sem Câncer. Nesta ONG conheci pessoas incríveis como a querida Maria do Carmo que preside a entidade nos últimos anos levando na raça a luta por melhores condições aos pacientes.

Recentemente perdi uma pessoa muito querida vítima dessa doença. Quando a amiga Carol Chaves, muito jovem, passou por essa provação e solicitou-me que escrevesse sobre minha experiência relutei em fazê-lo com medo de reeditar os muitos sentimentos que acompanham esse diagnóstico para muitos ainda terrível. Ainda hoje é impossível falar disso por muito tempo sem um calafrio no abdômen e uma respiração que teima em descompassar-se.

Porém é assim. Ela veio e passamos por ela. Ela atravessou-nos. Varou de parte a parte cada centímetro, cada célula do corpo. Deixou cicatrizes que a maioria não conseguirá ver. Senão de perto. Bem perto. Para alguns terá deixado lições, para outros, traumas terríveis. Muitos sairão desse processo melhores do que eram. Outros não.

Eu sempre neguei a doença. Negava-a como se não fizesse parte de mim, senão como uma intrusa. Mas ela esteve aqui. Instalou-se. Desarticulou-me por completo. Depois dela veio o reinício. E decidi fazer as coisas de modo diferente. Menos trabalho. Menos tarefas. Aprendi a dizer não para muitas atribuições que me impunham.

Passaram-se de anos e vejo-me quase tão atribulado de tarefas e trabalho quanto antes. Naquele período que antecedeu meu adoecimento. Médicos e pesquisadores ainda não sabem ao certo o que causa o câncer. Sabe-se que é o mal do século e a doença que atinge três de cada quatro famílias nos Estados Unidos, por exemplo. Sabe-se que as taxas de adoecimento são maiores nos grandes centros urbanos, onde a vida é mais agitada e o tempo é matéria fugidia nas mãos de seus habitantes.

Agora, repensando minha história decido que é tempo de retomar o tempo pelas mãos. Tempo de viver bem. De viver com o mínimo para viver mais. Tenho tentado fazê-lo.

Espero que ao ler este breve relato alguma coisa também possa ser ressignificada em sua vida. Pela bem da vida. Que como aquela erva daninha da Hora da Estrela, teima em vencer o asfalto, o concreto para vicejar em verdes e claras horas de estio.

segunda-feira, 4 de junho de 2018

Em busca da felicidade

Em busca da felicidade. 

Para Aristoteles, em Etica a Nicômaco, e portanto, para os antigos, a felicidade estava na vida publica. Ela significava a "corrida" para imortalizar-se pelos seus feitos. 

Maquiavel, fixou para o homem medieval a busca pela glória, não importando os meios. 

E para os modernos? No que consiste a felicidade? Pequenos goles individuais e a realização pequeno burguesa na esfera privada, de que falou Máximo Gorki? Esta animação é muito ilustrativa!!!

Link: Felicidade