Ao contrário dos liberais-burgueses, os principais socialistas utópicos foram bastante sensíveis ao problema da emancipação das mulheres. Saint-Simon (1760-1825), na sua Exposição da Doutrina, escreveu: “Nós teremos que mostrar como a mulher, primeiro escrava, ou pelo menos em uma condição que se avizinha da servidão, se associa ao homem e adquire cada dia maior influência na ordem social e como as causas que determinam até aqui sua subalternidade estão se enfraquecendo sucessivamente, devendo enfim desaparecer e levar com elas esta dominação, esta tutela, esta eterna minoridade que ainda se impõem às mulheres e que seriam incompatíveis com o estado social do futuro que prevemos”.
Mas, sem dúvida, foi Fourier (1772-1837) que levou mais longe as formulações feministas. Entre outras coisas, argumentou que a “mudança de uma época histórica sempre se deixa determinar em função do progresso das mulheres em relação à liberdade, porque é aqui, na relação da mulher com o homem (...) que aparece de maneira mais evidente a vitória da natureza humana sobre a brutalidade. O grau de emancipação da mulher é a medida natural do grau de emancipação geral”. E, continuou, “ninguém fica mais profundamente punido do que o homem quando a mulher é mantida na escravidão”.
Infelizmente nem todos os socialistas foram favoráveis a conceder direitos políticos e sociais às mulheres. Dentro da esquerda talvez tenha sido Proudhon (1809-1865), o pai do anarquismo, aquele que mais se colocou contra as reivindicações femininas. Para ele a mulher era, sob todos os aspectos, inferior ao homem. Inclusive tentou expressar essa inferioridade em porcentagens pseudo-científicas. Pelos seus cálculos a mulher possuía apenas 8/27 da capacidade masculina.
Segundo Evelyne Sullerot, Proudhon chegou ao absurdo de “pregar uma seleção genética que permitisse eliminar as esposas más e formar uma raça de boas esposas disciplinadas, como se formava uma raça de boas vacas leiteiras. Aspirava a uma legislação que desse ao marido o direito de vida e de morte sobre sua mulher”. As idéias preconceituosas de Proudhon fariam carreira no movimento operário europeu.
Flora Tristan: feminismo e luta operária
Flora Tristan (1803-1844) foi uma das primeiras a compreender a íntima relação existente entre a emancipação dos trabalhadores e a emancipação das mulheres. Ela pode ser considerada uma socialista da fase de transição entre o utopismo e o marxismo. Ao contrário dos utópicos e antecipando-se à Marx e Engels, Flora via no proletariado o agente principal das transformações sociais e por isso mesmo gastou boa parte de sua vida tentando organizá-lo. Nisso residia sua originalidade.
Ela viajou para Inglaterra várias vezes e, em 1840, publicou “Um passeio por Londres”, onde descreveu a situação dos trabalhadores pobres e defendeu as prostitutas, o divórcio e direitos iguais para homens e mulheres. Em 1843 Flora publicou a obra "União Operária", defendendo a formação de uma poderosa organização de trabalhadores, que congregasse indistintamente, homens e mulheres, como instrumento de luta por melhores condições de vida e de transformação revolucionária da sociedade capitalista. Entre suas bandeiras estava o direito pleno à educação, direito de escolha do marido, direito ao divórcio, igualdade das mães solteiras e filhos ilegítimos diante das leis.
Na sua obra ela afirmou: “Mesmo o homem mais oprimido pode oprimir outro ser, que é sua própria mulher. A mulher é a proletária do homem”. Por isso conclamou: “Trabalhadores, em 1791 vossos pais proclamaram a imortal declaração dos Direitos do Homem, e graças aquela solene declaração sois homens livres e iguais perante a lei (...) O que toca a vocês fazerem agora é libertar aos últimos escravos que existem na França, proclame os Direitos da Mulher e empregando os mesmos termos que empregaram vossos pais digam: ‘nós, o proletariado da França (...) decidimos incluir em nossa Carta os direitos sagrados e inalienáveis da mulher’.”
Com seu livro nas mãos ela viajou por toda França propagando suas idéias. Ela buscava também convencer os trabalhadores que a manutenção das mulheres numa condição de indigência dificultava a sua própria luta contra os patrões e o governo. A ignorância das mulheres do povo, escreveu, “tem conseqüências funestas. Sustento que a emancipação dos operários é impossível se as mulheres permanecerem neste estado de embrutecimento”.
Numa carta escrita em 1844 a um amigo, o socialisto utópico Considérant, ela afirmou um tanto desolada: “Tenho quase todo mundo contra mim. Os homens porque peço a emancipação da mulher; os proprietários, porque reclamo a emancipação dos assalariados”. Flora morreu logo em seguida com apenas 41 anos de idade. O seu corpo não resistiu ao ritmo de trabalho que ela mesmo se impôs. Morreu deixando-nos uma das mais belas biografias de uma liderança socialista e feminista do século 19.
Marx, Engels e Bebel
As posições feministas destes socialistas teriam um forte impacto no pensamento de dois jovens revolucionários alemães: Marx e Engels. Ainda nos seus primeiríssimos artigos na Gazeta Renana, em 1842, Marx assumiu a defesa da mulher, particularmente quanto ao direito do divórcio. Rejeitou a idéia predominante de que o casamento deveria ser indissolúvel. Escreveu Saffiotti: “Ao casamento, enquanto conceito, Marx opôs o casamento como fato social e, como tal, ele nada tem de indissolúvel, pois os fatos sociais se transformam, perecem, são substituídos por outros”.
Nas suas obras de transição da juventude para a maturidade, Marx e Engels se interessaram mais diretamente pela questão da opressão da mulher. Esta preocupação já pode ser sentida em A Sagrada Família (1845) e nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos (1844). Nestas obras eles incorporam a idéia-força de Fourier de que “o grau de emancipação da mulher é a medida natural do grau de emancipação geral” e nos Manuscritos de 1844 escreveram: “A relação imediata, natural, necessária dos seres humanos é a relação do homem com a mulher (...) Eis por que, com fundamento nesta relação, se pode aquilatar o grau de desenvolvimento do homem”.
Mas o que os socialistas utópicos, e os jovens Marx e Engels, ainda não sabiam eram quais as bases da opressão feminina e os caminhos mais adequados para superá-la. Seria o materialismo-histórico que lhes permitiria decifrar o enigma da esfinge. O grande passo foi dado com a elaboração conjunta de A Ideologia Alemã (1846) e, posteriormente, do Manifesto do Partido Comunista (1848).
Na Ideologia Alemã, eles já afirmavam: “Esta divisão do trabalho, que implica todas estas contradições e repousa opor sua vez, sobre a divisão natural do trabalho na família e sobre a separação da sociedade em famílias isoladas e opostas umas às outras – esta divisão do trabalho implica, ao mesmo tempo, a repartição do trabalho e de seus produtos, distribuição desigual, na verdade, tanto quanto à quantidade como quanto a qualidade; onde a mulher e os filhos são os escravos do homem. A escravidão certamente muito rudimentar e latente na família é a primeira propriedade, que, aliás, corresponde já plenamente aqui à definição dos economistas modernos segundo a qual ela é a livre disposição da força de trabalho de outro”.
Assim, o primeiro passo para emancipação – e não o último - seria a incorporação da mulher no trabalho social produtivo. “Para que a emancipação se torne factível é preciso, antes de tudo, que a mulher possa participar da produção em larga escala social e que o trabalho doméstico não a ocupe além de uma medida insignificante”, afirmou Engels.
Este era apenas o primeiro passo, que capitalismo já começava a realizar. A superação definitiva desta opressão milenar se daria através de uma revolução social que transformasse os meios de produção, e a riqueza por eles produzida, em propriedade social. A revolução socialista limparia o terreno para que a libertação da mulher pudesse, finalmente, ser completada.
Sem dúvida, entre os marxistas, Augusto Bebel (1840-1913) foi o primeiro a se debruçar especificamente sobre o problema da emancipação da mulher. Ele publicou o livro "A mulher e o socialismo", em 1879. Dez anos depois, após o fim das leis contra os socialistas, fez uma ampla revisão e atualização do livro. Bebel era operário, autodidata e se tornaria o principal líder político da social-democracia alemã até sua morte em 1913, as vésperas da eclosão da I Guerra Mundial.
A eminente socialista e feminista alemã Clara Zetkin escreveu: “As debilidades teóricas e algumas lacunas científicas deste livro ficam reduzidas a nada se se comparam com sua grande importância histórica”. A principal virtude do livro foi ter se oposto a “equivocada conclusão de que a reivindicação da igualdade das mulheres deveria esperar a atuação de um futuro Estado (...) O principal dirigente do proletariado alemão proclamou a luta pela plena equiparação do sexo feminino como um componente da luta do proletariado e como uma tarefa do presente”.
Bebel reconheceu as especificidades das luta feminista, que permitiria unir as mulheres de várias classes em torno de algumas bandeiras. O conjunto do sexo feminino, escreveu, “sofre duplamente: de um lado sofre debaixo da dependência social dos homens, a qual se suaviza, porém não se elimina com a igualdade formal de direitos diante da lei, e, de outro lado, devido a dependência econômica em que se acham as mulheres em geral (...)”. Por isso, “as irmãs adversárias tem em maior proporção que o mundo masculino (...) uma série de pontos em comum ao qual podem dirigir sua luta (...)”.
No entanto, alertava que, para as socialistas, “não se tratava apenas de realizar a igualdade de direitos da mulher como o homem no terreno da ordem social e política existente, o qual constitui o objetivo do movimento feminino burguês, mas de eliminar todas as barreiras que fazem que o homem dependa do homem e, portanto, um sexo ao outro (...) Daí que quem persiga a solução total da questão feminina deve se unir a quem tem inscrito em sua bandeira a solução da questão social e cultural para toda humanidade, ou seja, os socialistas”.
Nem todos desposavam as opiniões avançadas de Bebel. Vários socialistas alemães eram contra colocar no programa partidário o voto feminino e a inclusão das mulheres no mundo do trabalho assalariado. Os Lassalianos, por exemplo, inverteram as teses dos socialistas utópicos ao afirmaram: “A situação da mulher só pode melhorar se se melhorar a situação do homem”.
Na sua história do movimento operário alemão, Eduard Bernstein descreveu uma assembléia da social-democracia berlinense que, em 1866, “superou o dilema teórico transferindo a emancipação da mulher ao Estado socialista do futuro e estigmatizando as aspirações ao trabalho feminino na indústria, já que as considerava um meio dos capitalistas conseguirem força de trabalho a preços mais baratos”.
Mesmo a corrente vinculada à Marx e Engels no interior da social-democracia alemã não seguia as indicações de seus mestres. O programa socialista de Eisenach (1869), elaborado por Wilhelm Liebknecht, estipulava apenas a necessidade de se conquistar o “sufrágio universal, direto e secreto concedido a todos os homens de mais de 20 anos”. O Programa de unificação entre lassalianos e marxistas, ocorrido em Gotha (1875), por proposta de Bebel, estabeleceria a bandeira: “Sufrágio universal, direto, secreto e obrigatório para todos os cidadãos com pelo menos 20 anos”. O fato de estar escrito apenas cidadão e não “cidadão e cidadã” deu margem à interpretações dispares.
A dúvida só foi resolvida quando, finalmente, o Programa de Erfurt (1891) estabeleceu explicitamente que o Partido social-democrata alemão deveria lutar “por direitos e deveres iguais de todos, sem exceção de sexo ou de raça” e pelo “sufrágio universal igual, direto e secreto para todos os membros do império com mais de vinte anos, sem distinção de sexo, em todas as eleições”. Por fim, propugnava a “abolição de todas as leis que, do ponto de vista do direito (...) colocam a mulher em estado de inferioridade em relação ao homem”.
Clara Zetkin: feminismo e revolução
Clara Zetkin (1857-1933) foi a primeira grande líder feminina (e feminista) do movimento socialista alemão e internacional. Em 1891 passou a ser redatora do órgão de imprensa feminina da social-democracia alemã, considerado o jornal feminista de maior influência na história. Em 1896 apresentou o seu famoso informe sobre a questão da mulher no Congresso do Partido em Gotha.
Neste congresso é possível observar ainda uma visão estreita sobre a questão da mulher, que seria superada posteriormente. Ali ela afirmou: “O princípio-guia deve ser o seguinte: nenhuma agitação especificamente feminista, apenas agitação socialista entre as mulheres. Não devemos por em primeiro plano os interesses mais mesquinhos do mundo da mulher (...) Nossa agitação entre as mulheres não incluem tarefas especiais”.
Em 1907 ocorreu, em Stuttgart, um congresso da Internacional Socialista. Nele Zetkin apresentou uma proposta de resolução que afirmava: “Os partidos socialistas de todos os países tem o dever de lutar energicamente pela conquista do sufrágio universal feminino (...) direito que deve ser reivindicado vigorosamente em todos os lugares de agitação e no parlamento”.
Neste conclave Zetkin, com o apoio de Lênin, combateu os socialistas austríacos e ingleses que tergiversavam na sua propaganda do sufrágio universal feminino. Eles defendiam uma tática gradualista na qual primeiro deveria ser garantido o voto masculino. Zetkin achava que neste ponto não poderia haver qualquer concessão e acabou sendo vitoriosa.
Mas na sua justificação sentiu necessidade de esclarecer que o “reconhecimento do direito de voto ao sexo feminino não suprime a contradição entre exploradores e explorados (...) Para nós socialistas, o direito de voto das mulheres não pode ser o objetivo final, diferentemente das mulheres burguesas, porém consideramos a conquista deste direito como uma etapa bastante importante no caminho que levará até o nosso objetivo final”. No congresso internacional ocorrido em 1910, em Copenhague, defenderia a realização de um dia internacional das mulheres.
Apesar das resoluções aprovadas nos seus congressos, a social-democracia não colocou no centro de sua ação a luta pelos direitos sociais e políticos das mulheres. Zetkin fazendo um balanço crítico a respeito da ação socialista escreveu: “A II Internacional tolerou que as organizações inglesas afiliadas lutassem durante anos pela introdução de um direito de voto feminino restrito (...) permitiu também que o Partido social-democrata belga e, mais tarde, o austríaco se negassem a incluir, nas grandes lutas pelo direito ao voto, a reivindicação do sufrágio universal feminino (...) que o Partido dos socialistas unificados da França se contentasse com platônicas propostas parlamentares para a introdução do voto da mulher (...) A II Internacional nunca criou um órgão que promovesse em escala internacional a realização dos princípios e reivindicações a favor das mulheres. A formação de uma organização internacional das mulheres proletárias e socialistas para uma ação unitária e decidida nasceu a margem de sua organização, de forma autônoma”.
Zetkin foi uma das poucas, ao lado de Rosa de Luxemburgo, a romper com a direção reformista do Partido Social-democrata alemão, após a eclosão da I Guerra Mundial, e a ajudar a organizar o Partido Comunista. Foi eleita membro do Comitê Executivo da Internacional Comunista e presidente do Socorro Vermelho, organização mundial de solidariedade às vítimas da reação e do fascismo. Quando Hitler assumiu o poder ela era deputada comunista no Reichstag e teve que se exilar na URSS, onde veio a falecer ainda em 1933. Seu corpo foi enterrado nas muralhas do Kremlin ao lado dos heróis da revolução.
Bibliografia
- Alambert, Zuleika, Feminismo: o ponto de vista marxista, Ed. Nobel, S.P., 1986.
- Álvares, José Gutiérrez – Mulheres Socialistas, Editorial Hacer, Barcelona, 1986
- Bebel, August – La mujer y el socialismo, Akal editor, Espanha, 1977
- Engels, F. – Do socialismo utópico ao científico, Ed. Global, SP, 1981.
- Marx, Engels e Lênin, Sobre a Mulher, Global editora, S.P., 1980.
- Saffioti, Heleieth I. B. – A mulher na sociedade de classe, Ed. Vozes, Petrópolis, 1976.
- Sullerot, Evelyne – Historia y sociología del trabajo femenino, Ed. Península, Barcelona, 1970.
- Zetkin, Clara – La cuestión femenina y la lucha contra el reformismo, Ed. Anagrama, Barcelona, 1976.
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