quinta-feira, 17 de abril de 2014

Euclides - V -

É costume acordarem bastante cedo todos os dias. Com dois galos, um ganizé e onze galinhas no pátio de casa às cinco horas da manhã as coisas já ficam um bocado agitadas na residência dos Gutier. A esta hora Bonifácio arrasta seu corpo débil e envelhecido para fora da cama. Com cinco ou seis passadas debruça-se sobre a soleira da janela, que amanheceu aberta como ocorre sempre nos dias quentes. Daí a algumas horas será possível avistar os edifícios do centro da cidade. Por enquanto a cidade esta recoberta por  uma densa neblina. O que, nos dias em que acorda de bom humor, dá a impressão a Bonifácio, de que é o mar coberto de uma espuma densa o que ele avista da janela. Muito embora não formule nestes exatos termos este pensamento. Na verdade Bonifácio pensa algo mais próximo disto: “Eita que te parece que choveu o mêsinteiro e a cidade se cobriu d' água”. O humor de Bonifácio, contudo, é o seu habitual. Dona Anastácia constata isso ainda da cama quando ouve os runhidos de Bonifácio que procura limpar a garganta e que termina com uma escarrada grosseira, no julgar de dona Anastácia, para fora da janela. Vez ou outra acontece de Bonifácio acertar sua escarrada nos galináceos do terreiro. O que causa alvoroço ainda maior já que o animal atingido passa a ser vítima de perseguição frenética dos outros que a esta altura já anseiam famintos pelo café da manhã. Quando enfim o estado de espírito matinal de Bonifácio já contagiou dona Anastácia esta resolve enfim sair também da cama e dirigir-se à cozinha. Somente depois que a água estiver fervendo na chaleira e que Bonifácio tiver sorvido o primeiro gole escaldante de chimarrão é que Dona Anastácia poderá cumprir com suas funções renais e de higiene pessoal no banheiro. Algo que Bonifácio, se lembrar de faze-lo, só o fará horas mais tarde, quando compelido pela água do mate que abasteceu sua bexiga. Bonifácio mal deitara de lado a cuia de chimarrão, satisfeito depois de uma chaleira inteira de água quente dividida com dona Anastácia, quando avistaram Euclides saindo de casa. Julgavam o vizinho como um sujeito bastante antipático. Ele jamais os cumprimentava, muito embora os visse todas as manhãs. Mesmo aos sábados e domingos, quando Euclides comparecia religiosamente ao escritório que mantinha no centro da cidade. Depois da terceira curva morro abaixo o vizinho desaparecia em meio ao nevoeiro, como se sua matéria se dissipasse evaporando para a atmosfera. Algo que Bonifácio e Anastácia traduziam mais ou menos assim. “Pronto, o home evaporo de novo”. Neste dia Anastácia perguntou a Bonifácio se deviam contar ao vizinho que sua esposa recebia visitas do encanador diariamente. “Não vai adiantar de nada, do jeito que o home é mole, não vai resolver de nada essa poucasemvergonhança. To bão de dar um jeito é eu mesmo nesse desfrute onde já se viu a mulhé faze uma coisa destas com um cabra que trabalha até em dia santo para colocar o feijão na mesa!” Dona Anastácia já estava acostumada com os blefes de seu marido. No entanto mais tarde quando a polícia bateu à sua porta perguntando pelo paradeiro de seu esposo, seus lábios trêmulos não souberam responder.

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