Euclides acaba de despertar de uma noite
conturbada. Os jornais que lhe serviram de cobertor durante a noite jazem
espalhados pela calçada. Ele observa, encostado na parede enquanto mastiga um
pão seco, como o senhor alinhado, de gravata clara num terno muito escuro, pisa
com força sobre a manchete de capa da principal folha de notícias da cidade. O
jornal data quinze dias atrás. Euclides imagina quantas discussões deve ter
gerado aquela matéria, agora pisada com desprezo por aquele íntegro senhor. No
seus nascedouro, a repórter jornalística deve ter discutido com o editor, ou o
que o valha, que por interesses políticos-comerciais não deve ter achado
oportuna a adoção de diferentes rumos para aquela matéria. Euclides jamais
saberá, mas fora exatamente o que ocorrera. Depois de uma série de
recomendações e restrições a repórter fora liberada para cobrir aquele
espinhoso assunto. Ainda no carro, sentia o vento nos cabelos e imaginava o
quanto era bom viver numa nação livre. O motorista ao seu lado ganhava 1/5 do
seu salário que representava o piso da categoria de jornalistas e por seu turno
não compartilhava dos mesmos pensamentos. Na verdade seu semblante fechado e
suas respostas monossílabas às perguntas e comentários da repórter deviam-se
muito mais às preocupações com contas e títulos a pagar do que à imaginada
natureza fria que lhe atribuía agora a colega de trabalho. Ela conseguira
autorização do chefe para tratar daquele assunto que era um calo na
administração. A Secretaria de Moda e apresentação social. Haviam denúncias de
desvios de recursos públicos. O Secretário de Moda usava uma fábrica de
calcinhas de fachada e através de laranjas estava engordando a própria conta
bancária. Assim no entender da repórter haviam duas mentiras a serem
esclarecidas. A questão da falsa fábrica de calcinhas e a de que laranja não
engorda. Ela, portanto, estava eufórica. Seriam dois furos de reportagem em
apenas uma matéria. O editor recomendara-lhe que não tocasse no nome do
Secretário nem mesmo envolvesse a Secretaria de Moda nos fatos. A instrução era
para que se ativesse à malfadada fábrica de calcinhas apenas. Entretanto, mesmo
depois de haver repassado esta recomendação ao suposto dono da fábrica de
calcinhas o sujeito não conseguia completar uma única frase sem mencionar o
nome do secretário e de ainda umas duas dúzias de outros funcionários da Secretaria
de Moda. Esta foi a razão e motivo de outra discussão entre si e o Editor
Chefe. Com energias renovadas por três sucos de laranja que a repórter tomara
no caminho de volta. Ele vociferava contra ela argumentando que se publicasse
aquela matéria o jornal seria fechado com certeza, não pela censura, que esta
graças a Deus não existia mais neste pais democrático, mas pela falta de
recursos, já que a Prefeitura era a principal cliente e patrocinadora daquela
folha. Helena ainda buscou argumentar, mas ao final se rendeu aos fortes e
práticos motivos de seu redator. Assim a
matéria de capa que agora era lambuzada também pelo suco de laranja de uma
menininha distraída que tropeçou num dos buracos da absolutamente imperfeita
calçada, não contou com muito mais além de uma foto da nova linha de calcinhas
lançada pela Secretaria de Moda anunciando a contratação de uma nova e mais
eficiente fábrica deste tão fino artigo. A denuncia de superfaturamento. Em uma coluna lateral, ainda na capa, um manchete secundária tentava atrair atenção para uma nova pesquisa sobre as propriedades calóricas da laranja. Com um sorriso nos lábios Euclides puxa para si uma
folha de jornal disposto a ler a coluna de tiras, única que jamais envelhece, permanecendo incólume, enquanto os outros fatos se deterioram pelo tempo
ou pelos homens que lhes contradizem a cada minuto.
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