segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Dois pesos, duas mídias: mensalão e propinoduto

Manipulação Midiática


A diferença no tom da cobertura do mensalão e da fraude em licitações do metrô é um exemplo concreto dos padrões de manipulações da grande imprensa brasileira.

Por João Monteiro

Em maio deste ano, a revista IstoÉ revelou que a empresa alemã Siemens foi ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) para denunciar o pagamento de propinas à diferentes governos do PSDB em São Paulo e no Distrito Federal. Em busca de penas menores, a empresa também denunciou um esquema de cartel nas licitações públicas para a superfaturação das obras e serviços na rede ferroviária, e na compra e manutenção de trens e metrôs metropolitanos com as empresas Alstom , Bombardier, CAF e Mitsui.

A superfaturação das obras chega em 30%, com o valor de R$ 577 milhões. Porém, documentos mostram pagamentos de propinas a agentes públicos ligados aos governos Covas (1995-2001), Alckmin (2001-2006) e Serra (2007-2010), e se corrigido o valor, as cifras podem chegar a R$ 11 bilhões.

Há oito anos, no mesmo mês de maio, o escândalo do mensalão causou uma das piores crises políticas dos últimos anos. O PT se viu nas mãos da oposição. A mídia, por sua vez, decretou: “É o maior caso de corrupção na história do país”. No entanto, em poucas tecladas em uma calculadora é possível concluir: os valores do recente escândalo tucano, que vem acontecendo há 18 anos, são equivalentes a, no mínimo, 70 mensalões.


Os padrões de manipulação da imprensa tornam-se evidentes. O historiador Eduardo Lira é um crítico feroz dos grandes conglomerados de comunicação no Brasil. Concentrada nas mãos de poucas famílias, a grande mídia sempre atuou de forma a proteger seus próprios interesses, de acordo com Lira. “Isso inclui proteger aqueles que são apoiados por ela, já que os mesmos garantem os privilégios dessa verdadeira máfia midiática”, diz.
Mesmo ganhando as manchetes, a visibilidade dada pela mídia ao propinoduto tucano parece passageira, já que a pauta vai sorrateiramente à segundo plano, enquanto o foco é novamente o julgamento do mensalão. “Os grandes veículos noticiaram porque não tinham mais como esconder, não com a IstoÉ colocando o assunto em sua capa por três vezes e a internet falando disso diariamente. Foi mais pra tentar passar uma imagem de imparcialidade, coisa que muita gente percebeu que a grande mídia não tem”, afirma Eduardo.
Chega de Sufoco
Ilustração para divulgação do ato contra o propinoduto em 14/08, em São Paulo.
(Fonte: Coletivo Arrua)
Se nos basearmos no passado é provável que o recente conluio tucano seja esquecido pela mídia, como foram tantos outros. Em meio às investigações, o governador fez, sem nenhum tipo de licitação, 5.200 assinaturas da revista Veja para serem destinadas às escolas públicas, semelhante às assinaturas já feitas com a Folha de S. Paulo e o Estadão. Visto isso, fica muito clara a troca de favores envolvida na negociação. Afinal, “como eu posso falar mal do meu maior cliente?”.
Com as investigações ainda sendo processadas pelo Cade, o caso deve ter novos capítulos em breve. Resta saber se a trágica novela será exibia em horário nobre.

Concursos Públicos Abertos - IBGE e 16 outros órgãos

Pelo menos 17 órgãos públicos abrem as inscrições na segunda-feira (30) e terça-feira (1º) para o total de 3.680 vagas e formação de cadastro de reserva em cargos de todos os níveis de escolaridade. Só no governo de Minas Gerais são 1.117 vagas. Os salários chegam a R$ 9.275,78 na Prefeitura de Maringá (PR).
Os órgãos que abrem as inscrições são os seguintes: Câmara Municipal de Alto Araguaia (MT), Câmara Municipal de Santa Rita de Minas (MG), governo de Minas Gerais, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo (IPT), Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Minas Gerais, Polícia Civil do Distrito Federal, Prefeitura de Araraquara (SP), Prefeitura de Bragança Paulista (SP), Prefeitura de Entre Rios do Oeste (PR), Prefeitura de Goiabeira (MG), Prefeitura de Itabirito (MG), Prefeitura de Maringá (PR), Prefeitura de Nova União (MG), Prefeitura de Pontes e Lacerda (MT), Prefeitura de Santa Rita de Cataguases (MG) e Universidade do Estado do Amazonas.
Fonte: Jus Brasil

IBGE: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/efetivo_abertos.shtm

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Indígenas montam site e contam sua versão da história em materiais didáticos

reprodução
A ONG Thydewá tem diversos projetos com o objetivo de empoderar os povos indígenas
Ainda nos primeiros anos da escola, quando as crianças têm seus contatos iniciais com a história brasileira, uma das perguntas propostas por muitos professores é “Quem descobriu o Brasil?”. A esta indagação, é comum que se espere que a criançada em coro responda “Pedro Álvares Cabral”.
Ao atribuir ao navegador português a descoberta do país, esta versão dos acontecimentos desconsidera as estimadas 5 milhões de pessoas que aqui viviam antes da chegada dos europeus. Para tentar minimizar este e muitos outros desrespeitos à cultura indígena, a ONG Thydêwá resolveu criar uma plataforma online para que os índios desenvolvam materiais didáticos que contem sua história e atualidade.
No site Índio Educa, é possível encontrar artigos a respeito de diferentes etnias e tribos brasileiras, todos escritos por indígenas. Os assuntos são diversos, e vão de aspectos históricos ao cotidiano. ”A época do índio sem voz está terminando. Este projeto tem o objetivo de empoderar o indígena para dialogar. Trabalhamos em cima dos preconceitos que existem, como pessoas que acham que eles ainda vivem nus”, conta o presidente da Thydêwá, Sebastian Gerlic.
A ideia surgiu em 2008, quando a Lei 11.645 tornou a temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena” obrigatória no currículo oficial da rede de ensino. Desde então, a ONG começou a reunir jovens indígenas interessados em produzir material de apoio a professores e alunos, e o Índio Educa foi lançado em 2011.
“Percebemos uma carência de material didático para dar subsídio a essas disciplinas. Então, chamamos indígenas que estão em universidades para formar um grupo de trabalho. Hoje o site tem 200 matérias provenientes de 10 etnias diferentes”, explica Gerlic.
O conteúdo do site é todo em formato de Recurso Educacional Aberto, com licença Creative Commons. Isso significa que o material pode ser utilizado e modificado por outras pessoas, como professores que queiram montar um conteúdo didático próprio.

sábado, 21 de setembro de 2013

Corrupção Privada


            Nas últimas semanas uma série de denúncias revelou um esquema de corrupção que drenava recursos do Sistema Único de Saúde - SUS. Trata-se de um estratagema utilizado por hospitais que fraudavam pedidos de internação enviados ao SUS através de Autorização de Internação Hospitalar (AIH). Entre os absurdos da fraude constavam internações de pacientes que já haviam morrido, realização de cesariana em homens e retirada da próstata em mulheres. Alguns dos hospitais envolvidos eram entidades privadas como a Clínica Santa Helena de Cabo Frio- RJ. A denúncia apontava que até 30% das AIH's enviadas ao SUS padeciam do mesmo problema de fraude. Alguns milhares de reais em recursos públicos desperdiçados, portanto.

            Neste caso, diferentemente de outros casos de corrupção, em que estão presentes dois agentes [corrupto e o corruptor], tem-se a presença isolada de um agente que enfeixa em si essas duas figuras do corrupto e corruptor, e que tomou a iniciativa de fraudar o Sistema Público de Saúde.  Este agente, é um agente privado. Em outros casos de corrupção muitas vezes verifica-se a presença dos dois agentes, de um lado o agente ativo corruptor que oferece a propina, ou algum tipo de vantagem na busca de fraudar os cofres públicos e de outro o agente passivo, geralmente servidor público, que propicia os meios necessários para a materialização da fraude. 


            O que impressiona é que em todas as análises, reflexões e críticas feitas aos episódios de corrupção o agente corruptor, o agente privado, é desconsiderado. Há algum tipo de blindagem que nos impede de ver que em todos os atos de corrupção há sempre a presença do agente privado, às vezes o indivíduo, em outras a empresa privada, que fartam-se do dinheiro público.  No caso destas últimas denúncias de desvios de recursos do SUS a incapacidade de enxergar a presença do agente privado aprofunda-se, e continuamos a apertar nossas vistas para tentar ver onde o sistema público é falho.

              Não se pode admitir que ele é sempre falho porque precisa conviver com interesses privados cuja lógica se resume àquela segundo a qual é débil aquele que não atinge o lucro nos seus balancetes, independentemente dos custos sociais que isso possa significar.


sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Organize suas finanças: Calculo de quitação antecipada - MP

Calculadora de quitação antecipada



O  
Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) criou e disponibilizou aos cidadãos em uma ferramenta on-line para calcular o valor de quitação antecipada de empréstimos e financiamentos. A calculadora on line foi desenvolvida pelo Centro de Apoio Operacional do Consumidor (CCO) em parceria com o Centro de Apoio Operacional de Informações e Pesquisas (CIP) e Coordenadoria de Tecnologia e Informação (COTEC), todos órgãos internos do MPSC.
 
O Código de Defesa do Consumidor garante o direito a redução proporcional dos juros e encargos financeiros em caso de quitação antecipada, seja total ou parcial, de empréstimos e financiamentos. No entanto, com a forma de cálculo mais complexa, apenas o fornecedor produz essa conta, desestimulando consumidores que tem dinheiro para quitar seus empréstimos ou simplesmente pretendem ver o valor da quitação de seus contratos. O objetivo principal é o de colocar o consumidor em situação de equilíbrio na relação de consumo quando for negociar o seu contrato com a instituição financeira.
 
Como exemplo, o cidadão que quiser adiantar alguma ou todas as prestações mensais do financiamento de sua motocicleta, poderá simular a quitação antecipada sabendo qual será a redução de juros. Importante: se o cidadão não conseguir preencher os campos, por exemplo, porque não tem a sua cópia do contrato que assinou, pode se inteirar dos seus direitos lendo as 10 dicas para não cair numa armadilha com empréstimo consignado e financiamentos.
 

Acesse pela imagem


Financiamento de Campanhas: A Bancada Empreiteira


http://reporterbrasil.org.br/gentrificacao/a-bancada-empreiteira/#vixe

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

DEIXE SANGRAR: Em busca de uma política de drogas no Brasil.

"Viver é negócio muito perigoso.” [1] Iniciamos com esta frase pretendendo mostrar que a atual política de drogas no Brasil como a entendemos não deve ser de todo a mais adequada pelo distanciamento do homem pelo homem enquanto ser e sua complexidade. Não há razão[2] na procura de socorro em modelos repressivos incriminadores no tocante às drogas (ilícitas). A justificativa da política proibicionista, ou seja, a ideologia de Defesa Social é algo incoerente, é sem sentido o Estado dispensar aos envolvidos com entorpecentes tratamento penal com a execução de penas cada vez mais severas e depois querer uma sociedade mais segura.

A prisão em si é paradoxal, é uma estrutura corroída. Todo o sistema prisional, de saúde, ou de infraestrutura vai ser sempre uma medida paliativa. Nem nos EUA, nem na Inglaterra, nem na Holanda, em nenhum lugar o sistema repressivo funciona como se idealiza, senão, como todos sabem tem efeito inverso. (Valois).   

Se historicamente os modelos repressivos são caracterizados pela extensão do poder de punir por meio de políticas maximalistas, o processo de descriminalização faculta visualizar os primeiros passos à obstaculizar os nefastos efeitos decorrentes da expansão da punitividade.
Procurar responder problemas difíceis com respostas simplificadas, evidente, não é a melhor saída, porém, a facilidade de inserção do discurso repressivo das drogas no cotidiano, com o desenvolvimento de cultura beligerante - de combate às drogas - é resposta fácil, conveniente, cômoda para maior parte da sociedade, qual não é alcançada pelas agencias punitivas, e de fácil aprovação social, por ser intrínseca ao ser humano. Assim, no cálculo utilitário entre ônus e bônus, os direitos individuais são apresentados, conforme afirma Salo de Carvalho, como ordinária mercadoria de troca passível de limitação, de obstaculização ou restrição, por mais ilusório que seja o produto de contraprestação (segurança).   
Ao analisar as políticas de intolerância (ou tolerância zero) adotadas pelas obsessões legislativas em coibir o prazer excessivo dos outros, Hitchens ganha voz de Zizec, que percebe espectro rondando o mundo ocidental e se refere às campanhas contra o fumo: o espectro do cigarro. Observa a disseminação de áreas de “não-fumantes”, como busca do ideal ascético de pureza, abstinência e tédio, do qual o sacrifício de liberdades públicas parece ser o preço a ser pago pelo consumo pasteurizado de segurança.

Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães[3] . Uma das benesses do direito é a diversidade de correntes teóricas, que são de livre discussão, desta forma o que está em debate já não é mais discurso tendencioso de direita ou esquerda e sim a salvaguarda de vidas humanas, o documentário “quebrando o tabu” é exemplo disso, com o ex-presidente do Brasil Fernando Henrique Cardoso, bem como, Jimmy Carter e Bill Clinton ex-presidentes dos Estados Unidos, entre outros, reconhecendo, que falharam em suas repressivas políticas de drogas, FHC observa que cada país deve independentemente discutir “quebrar o tabu” e encontrar seus próprios caminhos na sua política de drogas.
Contrapor os modelos tradicionais (de guerra) aos alternativos (pluralistas) desde o enfoque macrossociológico é o terreno investigativo arrimado pela Criminologia Critica. Para tanto, encontramos em Gilles Deleuze um modo figurativo de representar essa metamorfose de paradigma.

Parafraseando Deleuze quando entrevistado por sua ex-aluna Claire Parnet sobre a Gauche em seu abecedário: Poderíamos dizer: “a criminalização não tem nada a ver com defesa do bem social. Se me pedissem para definir o que é ser contrario à criminalização ou definir a descriminalização[4], eu o faria de duas formas. Primeiro, é uma questão de percepção. A questão de percepção é a seguinte: o que é ser pela criminalização? Ser favorável à criminalização é como um endereço postal. Parte-se primeiro de si próprio, depois vem a rua em que se está, depois a cidade, o país, os outros países e, assim, cada vez mais longe. Começa-se por si mesmo e, na medida em que se é privilegiado, em que se vive em um país rico, costuma-se pensar em como fazer para que esta situação perdure. Sabe-se que há perigos, que isso não vai durar e que é muita loucura. Como fazer para que isso dure? As pessoas pensam: ‘Os chineses estão longe, mas como fazer para que a Europa dure ainda mais?’ E ser desfavorável à criminalização é o contrário. É perceber... Dizem que os japoneses percebem assim. Não vêem como nós. Percebem de outra forma. Primeiro, eles percebem o contorno. Começam pelo mundo, depois, o continente... europeu, por exemplo... depois a França, até chegarmos à Rue de Bizerte e a mim. É um fenômeno de percepção. Primeiro, percebe-se o horizonte.”[5]

A transvaloração dos valores (Nietzsche) permite evidenciar que em matéria de drogas as proibições esforçam-se em ocultar o outro que desestabiliza. E para transcender a perversa moralização do cotidiano instituída pelo ideal de pureza abstêmia é necessário postura que permita a alteridade.
A fala do filosofo esloveno Zizek é trazida por Salo de Carvalho ao definir nova perspectiva moralizadora e antissecular, não seria fundamental à ordem de culpabilização demonizar “(...) o gozo excessivo e perigoso do outro, personificado no fato de acender ‘irresponsavelmente’ um cigarro e inalar com profundo prazer, em contraste com os yuppies cliptonistas que o fazem sem tragar (ou fazer sexo sem penetração ou comem sem gordura...)?[6]     

Para o Frances Gilles Deleuze:

“(...) Beber, se drogar são atitudes bem sacrificais. Oferece-se o corpo em sacrifício. Por quê? Porque há algo forte demais, que não se poderia suportar sem o álcool. A questão não é suportar o álcool, é, talvez, o que se acredita ver, sentir, pensar, e isso faz com que, para poder suportar, para poder controlar o que se acredita ver, sentir, pensar, se precise de uma ajuda: álcool, droga, etc. A fronteira é muito simples. Beber, se drogar, tudo isso parece tornar quase possível algo forte demais, mesmo se se deve pagar depois (...) percebe-se, cada vez mais, que quando se pensava que o álcool ou a droga eram necessários, eles não são necessários. Talvez se deva passar por isso, para perceber que tudo o que se pensou fazer graças a eles podia-se fazer sem eles. Admiro muito a maneira como Michaux diz: agora, tornou-se, tudo isso é... ele pára.(...)” 47



[1] Guimarães Rosa. Grande Sertão: Veredas
[2] Em sentido oposto é apresentada a hipótese: é o de se pensar que essas campanhas para parar de consumir droga licita/ilicita reafirma o desejo… qualquer um que tenha lido Freud sabe que sem limite não há pecado…. E assim a roda gira, e os nefelibatas colocam combustível fossil na máquina, seja humano, seja da folha... (Alexandre Morais da Rosa).
 [3]  Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas.
[4]  Importante não confundir descriminalização com “liberação”,  o Estado pode e deve regular espaços públicos aos usuários, bem como, políticas públicas de entorpecentes, nesse sentido, os limites do exercício do direito de consumir devem ser fixados pelo Estado. As fronteiras entre o que pode ser limitado encontra-se nos Direitos Fundamentais, dos quais a Liberdade é o pressuposto (Kant).  Discutir descriminalização não é correto, tem que se discutir por que se criminalizou.
[6] ZIZEC, O Espectro do Cigarro, p. 04, apud, CARVALHO, Salo de. A Politica..., p.303.

domingo, 15 de setembro de 2013

A política de drogas no Brasil e as novas ameaças




Por João Mendes e Herbert Toledo Martins

Em maio, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei (PL) que corresponde a um retrocesso secular. O PL n. 7.663/2010, do deputado Osmar Terra, atualmente PLC 37/2013 em tramitação no Senado Federal, ameaça reconduzir o Brasil ao início do século XX ao intensificar a fracassada “guerra às drogas”. Não obstante os importantes avanços na política sobre drogas mundo afora − a exemplo do Uruguai, que acaba de regulamentar o uso da Cannabis −, as supostas bases empíricas utilizadas pelo Parlamento brasileiro são dignas de um “museu de novidades”.

O deputado Terra1 insiste em apresentar números duvidosos sobre o cenário das drogas no Brasil. O deputado não explica, por exemplo, o fato de que de 2006 a 2012, após a Lei sobre Drogas n. 11.343, aumentou-se de três para cinco anos a pena por tráfico, mas o número de crimes de comercialização de drogas só tem crescido. Em 2006, o sistema carcerário tinha cerca de 10% de presos por tráfico de drogas; em 2012, já eram 30%. Estimam-se atualmente 160 mil presos. Esse argumento não explica por que se triplicou a população carcerária motivada pelas drogas sem que tenha havido diminuição do tráfico.

Para Loïc Wacquant, “a criminologia comparada demonstra que não existe, em lugar algum – nenhum país e nenhuma época –, uma correlação entre o índice de encarceramento e o nível de criminalidade”.2 O sistema penal-punitivo brasileiro só tem prendido os “acionistas do nada”,3 os descalçados, as mulas do tráfico.

Dessa maneira, de onde surge a “verdade” que o Parlamento brasileiro tenta fazer crer? Há consistência nesse “antídoto” que está sendo vendido como inquestionável e irreversível? Foucault4 afirmou que o discurso tido como verdadeiro “é, desde os gregos, aquele que responde ao desejo ou aquele que responde ao poder, o que é que, no entanto, está em jogo na vontade de verdade, na vontade de o dizer, de dizer o discurso verdadeiro – o que é que está em jogo senão o desejo e o poder...”. O discurso e a intensa defesa do deputado Terra parecem ter outras motivações que não estão explícitas em seus enunciados. Operam aí as categorias de “desejo e poder”. Desejo do quê? Poder sobre o quê? O “Estado-penitência”, que desinveste na proteção social para só “reencontrar” os sujeitos por seu braço policial – combinado isso com as cifras homéricas que o aparelho repressor faz girar –, produz uma “motivação” que harmoniza e naturaliza o desejo de “poder” (substantivo), transformando-o em desejo de prender.

O relator do PL é fisiologicamente vinculado às comunidades terapêuticas. Sancionada essa lei, numa só cajadada o “Estado-penitência” cumpre sua profecia autorrealizadora, a prisão: seja nas penitenciárias ou nas novas instituições totais de alcunha “comunidades terapêuticas” (CTs). Estas são uma fusão de manicômios, presídios e conventos. A participação do deputado Givaldo Carimbão como relator5 do PL gerou, no mínimo, um conflito de interesse, já que o parlamentar é presidente de honra da Frente Parlamentar Mista em Defesa das Comunidades Terapêuticas.6

Qual é o preço a ser pago pelo vendaval?

O custo financeiro por preso no Brasil é alto, e o impacto sobre o sistema prisional será ainda maior com o “endurecimento da pena” para o tráfico (que passará de cinco para oito anos de prisão) a partir da Lei Osmar Terra. É fácil concluir que gastamos muito e ineficientemente com o sistema prisional vigente. O custo médio mensal de um preso em instituições estaduais é de R$ 1.800. Considerando o tempo de pena atribuída ao crime de tráfico, tem-se que ao final do tempo mínimo da prisão o Estado terá desembolsado R$ 108.000. Considerando 30% dos 548.008 presos atuais, são aproximadamente 164.400 presos por drogas. Tais presos produzem um custo anual estimado em R$ 3.551.040.000. Somando os sessenta meses de cumprimento de pena dos presos por drogas tem-se a faraônica cifra de R$ 17.755.200.000,para algo que já se sabe não ser garantia de solução.

Como visto no quadro 1, o orçamento deverá ser acrescido de cerca de R$ 10 bilhões com a alteração da lei.

A política e os recursos para tratamento dos usuários de drogas no Brasil são ainda muito escassos. No Brasil, até 2011, a rede de Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps-AD) era composta de 258 unidades para tratamento de pessoas que fazem uso prejudicial de álcool e outras drogas. Calcula-se que exista um Caps-AD para cada grupo de 739.274 habitantes, ou aproximadamente 0,12 para cada grupo de 100 mil habitantes. Com o valor destinado ao pagamento de um ano dos presos por porte ou tráfico de drogas (R$ 3.551.040.000) os estados brasileiros custeariam 28,8 anos dos Caps-AD (ver quadro 2).

Esse serviço pode acolher até 190 usuários/mês distribuídos nas três modalidades de projeto terapêutico. O custo mensal de um usuário do Caps-AD chega a um oitavo do que se paga por um preso (ver quadro 3).

Considerando o custo/mês por preso e o custo/mês por usuário do Caps-AD – ainda que não se possa superpor a rede ao sistema prisional –, verifica-se que, além de ineficiente, o sistema prisional para usuários de drogas é caro e inadequado. Mesmo com evidências do equívoco dessa política proibicionista-policialesca, de tempos em tempos o Congresso Nacional revigora seu ar anacrônico.

Nova figura num quadro de tintas gastas

Contudo, uma nova figura surge nesse cenário: as comunidades terapêuticas, com direito a bancada parlamentar, pressão social e venda de uma imagem de “salvação” diante da maré de trevas. Sem dados precisos sobre quantidade ou localização, de certo quase a totalidade delas está vinculada a entidades religiosas cristãs.7 Esse fato gera um conflito, já que as CTs relutam contra a premissa da laicidade do Estado brasileiro.

A nova modalidade de “cura” trazida pelas CTs centra-se no internamento dos errantes e desviados. “A prática do internamento designa uma nova reação à miséria, um novo patético – de modo mais amplo, outro relacionamento do homem com aquilo que pode haver de inumano em sua existência.”8 O poder atribuído à Igreja fez dela a guardiã das boas práticas morais e do resgate das almas desgarradas. “A Igreja nada abandona do que a doutrina havia tradicionalmente concedido às obras, mas procura ao mesmo tempo atribuir-lhes um alcance geral e avaliá-las conforme sua utilidade para a ordem dos Estados.”9 Formou-se uma parceria quase inquebrável entre a necessidade do Estado de manter a “ordem” e a Igreja como aparelho ideológico para disseminar a práxis “terapêutica” com a finalidade de reengendrar o curso da vida dos loucos, devassos e errantes. O modus operandi das CTs está traçado desde o século XVI. Elas são a nova roupagem do velho jeito manicomial de tratar os desvios morais − novo modelito num manequim já gasto que atualmente sofre denúncias de abusos e violações a direitos fundamentais.10 O Conselho Federal de Psicologia constata o óbvio: em 68 CTs inspecionadas foram identificadas violações de direitos humanos mínimos e fundamentais.

A maioria das CTs no Brasil tem um “programa” que define a permanência dos internos variando de nove a doze meses de confinamento. Erving Goffman11 alertou para o fato de que “toda instituição tem tendência de fechamento”. Essas comunidades se consolidaram mediante regras morais abstratas e arbitrárias, tornando-se instituições totais, “um híbrido social parcialmente comunidade residencial, parcialmente organização formal”. Forjam-se como “estufas para mudar pessoas, cada uma é um experimento natural sobre o que se pode fazer ao eu”. Um mix de manicômio (para os entorpecidos, sem razão e sem autonomia), presídio (para privar do encontro com o proibido) e convento (pela aposta na conversão).

Após várias décadas clamando por recursos públicos, as CTs foram agraciadas com um edital de financiamento do governo federal que destina R$ 1.000 para cada leito de adulto e R$ 1.500 para leitos de adolescentes.12 Não bastasse o alto custo dos presídios, agora surge outro “serviço” destinado aos usuários de drogas cujo financiamento causa preocupação. O custeio de uma só vaga em CT equivale ao recurso necessário para o tratamento de 4,8 usuários num Caps-AD. Uma CT custa pouco mais da metade de uma vaga numa prisão (exatos 55%), mas custa 478% a mais que uma vaga no Caps-AD. Com esse recurso, o Caps-AD conseguiria alcançar 80% mais usuários que uma CT.

Cabe perguntar: o destaque dado pelo deputado Carimbão estaria motivado somente pelo desejo de ajudar?

Segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), a rede Caps-AD é insuficiente para a cobertura assistencial adequada. A incompleta introdução dos Caps-AD alimenta “as críticas a esse modelo, priva do acesso ao tratamento milhares de pessoas, em geral de baixa renda, que se veem obrigadas a recorrer a outras formas pouco efetivas, seguras e que respeitem os direitos humanos do dependente de álcool e outras drogas” (parágrafo 420).13 Dialeticamente, o sucateamento da rede Caps-AD gera expectativas financeiras para setores que podem se beneficiar com essa fragilização.

No já citado relatório do TCU verificaram-se fragilidades nas ações de tratamento quanto aos mecanismos de inclusão de usuários, seleção, fiscalização e controle das atividades desenvolvidas pelas CTs selecionadas pelo Edital n. 001/2010/GSIPR/Senad/MS. Constatou-se que cerca de 55% das CTs apoiadas financeiramente pelo governo federal não possuíam nem licença sanitária.

Há motivos para uma mudança paradigmática em rota radicalmente contrária ao que acena o Parlamento nacional. Contudo, o espectro conservador insiste em não recuar. Dizia Einstein: “Difíceis tempos esses em que é mais fácil quebrar um átomo que um preconceito”. A crença no modelo reclusivo para usuários de drogas não se sustenta nem convence seja qual for a hipótese das que aqui foram citadas.

Um país que possui uma dívida histórica decorrente do vilipêndio a direitos fundamentais de segmentos já vulnerabilizados pelas desigualdades sociais não pode aceitar passivamente essa reprodução do higienismo social típica dos séculos XIX e XX. Karl Marx dizia que “a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”. Uma política sobre drogas centrada na repressão e no encarceramento em massa é uma farsa.




João Mendes é Psicólogo pela UFPB, mestre em Linguística e Psicanálise, professor de Psicologia da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e coordenador do Centro Regional de Referência para Educação Permanente em Crack, Álcool e Outras Drogas.


Herbet Toledo Martins é 
Doutor em Sociologia pela UFRJ, professor do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e coordenador do Grupo de Pesquisa em Conflitos e Segurança Social (GPECS/UFRB).


Ilustração: Allan Sieber


Notas:
1 Osmar Terra, “Premissas erradas”, Folha de S.Paulo, 1o jun. 2013.
2 Loïc Wacquant, “A aberração carcerária”, Le Monde Diplomatique Brasil (site), 1o set. 2004. Disponível em: <www.diplomatique.org.br/print.php?tipo=ac&id=1169&PHPSESSID=099cbc670a7e8a6c998a4f532aaf76c9>.
3 Orlando Zaccone D’Elia Filho, Acionistas do nada: quem são os traficantes de drogas, Revan, Rio de Janeiro, 2007.
4 Michel Foucault, A ordem do discurso, Loyola, São Paulo, 2005.
5 Relatório do deputado Givaldo Carimbão sobre o PL n. 7.663/2010. Disponível em: <www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1049060&filename=PRL+1+PL766310+%3D%3E+PL+7663/2010>.
6 Instituição Padre Haroldo, “Frente Parlamentar Mista em Defesa das Comunidades Terapêuticas, Acolhedoras e Apacs vai promover um encontro nacional das comunidades terapêuticas de todo o Brasil”. Disponível em: <www.padreharoldo.org.br/site/secao.asp?i=39&c=212>.
7 Senado Federal, “Destinação de recursos públicos a comunidades terapêuticas esbarra na religião e em critérios médicos”, Em Discussão!. Disponível em: <www.senado.gov.br/noticias/Jornal/emdiscussao/dependencia-quimica/sociedade-e-as-drogas/recursos-publicos-comunidades-terapeuticas-religiao-medicos.aspx>.
8 Michel Foucault, A história da loucura na Idade Clássica, Perspectiva, São Paulo, 2005, p.52-53.
9 Ibidem, p.59.
10 Daniela Arbex, Holocausto brasileiro, Geração Editorial,São Paulo, 2013.
11 Erving Goffman, Manicômios, prisões e conventos, Perspectiva, São Paulo, 2001, p.22.
12 Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), Edital de Chamamento Público n. 1/2012. Disponível em: <www.obid.senad.gov.br/portais/OBID/biblioteca/documentos/Editais/329226.pdf> e >.
13 Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad), Relatório Operacional. Disponível em: <
http://portal2.tcu.gov.br/portal/page/portal/TCU/comunidades/programas_governo/areas_atuacao/saude/Relat%C3%B3rio%20-%20Pol%C3%ADtica%20Nacional%20Antidrogas_Parte%20II.pdf>.

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Setembro: é importante lembrar os golpes em Allende e Perón

Por FC Leite Filho


Os chilenos choram, neste 11 de setembro seus 40 mil mortos, o desmantelamento da educação, da saúde e da indústria, que ainda faz do salário médio ser dos mais baixos do mundo. Em nome da democracia e do moralismo, que dizia estar então sufocados, o general Augusto Pinochet, na crista de uma cruzada midiática nacional e internacional, montou uma ditadura militar e econômica, que começou com a morte do presidente socialista Salvador Allende, em pleno Palácio La Moneda. Passados exatos 40 anos do Golpe de 73 e mesmo tendo alcançada a democracia formal, desde 1988, o Chile ainda se encontra submetido ao mais draconiano neoliberalismo, como atestam as manifestações diárias de estudantes, trabalhadores, funcionários públicos e profissionais liberais.

Já a Argentina pós-peronista, sobretudo na última década dos Kirchner (Néstor e Cristina), soube se desvencilhar dessas amarras e parte para o desenvolvimento autônomo com inclusão social. Para entender esse processo, é importante recordar que, num mesmo mês de setembro, dia 16 e ano 1955, outro presidente progressista, o argentino Juan Domingo Perón, um general, mas eleito democraticamente em 1946 e 1952, foi deposto pela mesma sanguinária maré midiática, autodenominada “Revolução Libertadora” e sustentada pelos Estados Unidos, que um ano antes tinha derrocado o nacionalista brasileiro Getúlio Vargas.

É incontável o número de mortos desta primeira ditadura antiperonista (houve mais três depois dela): o massacre começou com três meses de antecedência do afastamento do general. Em artigo de 20 de setembro de 2011, eu alinhava alguns fatos, para o Café na Política: “Em 11 de junho daquele ano, dia de Corpus Christi, a igreja promoveu imensa manifestação popular nas ruas das principais cidades, principalmente na capital, Buenos Aires, para pregar a derrocada do governo. Pouco mais tarde, o Papa Pio XII decretaria a excomunhão de Perón, uma punição altamente temida, na época. Para responder à manifestação católica, os peronistas convocaram uma marcha sobre a Plaza de Mayo, em frente à Casa Rosada, sede do governo.

“Os golpistas, então já enquistados nos quartéis, particularmente da Marinha, a arma considerada mais elitista, despacharam 30 aviões para despejar 20 toneladas de bombas sobre a multidão, matando 364 pessoas e ferindo outras 700. Uma das bombas caiu sobre um bonde repleto de estudantes do 1o. grau, dizimando 40 crianças. Era o começo do golpe que iria desembocar nos levantes de 16 a 20 de setembro, matando outras 1.700 pessoas, bombardeando refinarias de petróleo e outros símbolos do nacionalismo, fatos determinantes do afastamento do presidente Juan Perón, que se asilou no Paraguai”. O artigo que escrevi na época tinha como propósito analisar a reeleição da presidenta Cristina Kirchner, concretizada em uma peronista convicta, e quão atual se mantinha o ideal daquele presidente, chamado de “ditador”e “corrupto” pela mesma mídia cujas campanhas resultaram naqueles morticínios.

Dizia eu que, ao contrário do Chile, a Argentina, a partir dos governos de Néstor e Cristina, iniciados em 2003, juntamente com outros presidentes progressistas da América Latina, o país voltou a se industrializar, o índice de desemprego caiu de 25% para 7%, os aposentados pasaaram a ter pensões mais dignas  e o desenvolvimento econômico, com inclusão, manteve-se num patamar médio de 7% (Acompanhe nos links abaixo os bombardeios e massacres da Plaza de Maio).

No mesmo artigo, também me referia ao legado de Perón: “Ao ser eleito presidente, com 56% dos votos, em 1946, Perón estatizou a rede ferroviária, a produção de gás, o Banco Central, a telefonia e empresas de eletricidade. A nova orientação política, com a regulamentação das importações, fez a indústria crescer, enquanto o emprego e os salários se multiplicaram, graças ao aumento do consumo. O salário mínimo passou a ser um dos mais altos do mundo, inclusive desenvolvido. Os trabalhadores, tanto do campo quanto das cidades, conquistaram direitos a aposentadoria, férias remuneradas, seguro médico e cobertura para os acidentes de trabalho.

“A mulher passou a ter direitos iguais aos dos homens, sobretudo no trabalho, naquele país em que elas não podiam sequer votar. Paralelamente, o governo industrializou o país com um programa agressivo no campo econômico, através da política de substituição de importações, implementando da indústria leve e investindo fortemente na agricultura, em particular na plantação do trigo, principal produto de exportação. Para compensar a carência de divisas do setor primário, a administração nacionalizou o comércio exterior, criando para isso, o Instituto Argentino de Promoção e Intercâmbio, mecanismo que propiciou recursos para as empresas, com ênfase na área da indústria pesada (siderurgia e geração de energia elétrica). O programa de educação e de saúde foi outra realização considerável do período. Era todo um arcabouço que permitiu ao país ingressar na área de alta tecnologia, inclusive com um projeto de desenvolvimento de energia a partir da fusão nuclear”.


Fonte: http://www.cafenapolitica.com/develop/?p=7519

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Como entender os sentidos do lulismo


O LULISMO NO BRASIL

Publicado Jornal ANotícia - 06 d setembro d 2013
Os cientistas políticos têm buscado entender o fenômeno político brasileiro da ascensão de Lula ao poder e as transformações provocadas no cenário nacional dos pontos de vistas social, político e econômico. Os Sentidos do Lulismo, livro de André Singer, pode ser considerado uma das análises sociológicas da política contemporânea 2002-2012 mais profícuas.
O autor desenvolve argumentos sustentando que o lulismo substituiu a velha polarização esquerda/direita por uma nova, entre ricos e pobres. Mas a conexão mais importante desse argumento se dá na comparação com o bonapartismo de O Dezoito Brumário, no qual Marx analisa o golpe de Estado de 1851. Talvez a passagem que assemelha as experiências seja aquela presente em Singer, de que “cada fração de classe pode cultivar o seu lulismo de estimação” e a frase de Marx : “Bonaparte gostaria de aparecer como benfeitor de todas as classes”.
Na política, disse Marx, não se pode dar a uma classe sem tirar de outra. “Bonaparte queria passar como o homem mais obligeant da França.” Para fazê-lo, tinha o apoio popular. A grande massa da nação francesa é constituída pela simples adição de grandezas equivalentes, mais ou menos como as batatas num saco formam um saco de batatas, por essa razão “incapaz de fazer valer seu interesse de classe em seu próprio nome [...] Não podem representar-se, têm que ser representados. Seu representante tem que aparecer ao mesmo tempo como senhor e como autoridade sobres eles”.
Na tradição da França, esse homem fora Napoleão, que realizou a ideia da classe mais numerosa do povo francês. Na tradição brasileira de que fala Victor Nunes Leal, no Coronelismo Enxada e Voto, esse ideal era traduzido nos “painhos” do PFL e, depois, do DEM, até que, segundo Singer, aparecesse Lula, para converter a massa que derrotara o PT em 1989 em base de sustentação.
Por Jeison Giovani Heiler, PROFESSOR UNIVERSITRÁRIO E CIENTISTA POLÍTICO
Disponível: http://wp.clicrbs.com.br/painelregional/2013/09/06/artigo-o-lulismo-no-brasil/?topo=84,2,18,,,84

Versão Completa do Artigo:



André Singer - "Os sentidos do lulismo – reforma gradual e pacto conservador"


Em resumo, o livro de Singer pode ser tido como análise sociológica da política brasileira contemporânea - 2002-2010 - sob a perspectiva da luta de classes. E, apertada síntese, pode-se dizer que o autor põe em cotejo as seguintes hipóteses1:

a) O lulismo é fruto, ou originador, de um deslocamento do subproletariado como fração de classe - Hipótese que deságua na comparação entre o lulismo e o bonapartismo de "O Dezoito Brumário" de Marx.

b) O estado sob o lulismo empreendeu um modelo de "arbitragem" entre as classes fundamentais, buscando o eterno ponto de equilíbrio, que poder-se ia comparar ao modelo rooseveltiano;


c) as mudanças do modelo podem ser entendidas como um reformismo fraco;
d) o lulismo substituiu a velha polarização esquerda/direita por uma nova polarização entre ricos e pobres.

Além disso o autor desenvolve outros argumentos que são mais marginais a estes sublinhados, como por exemplo, a idéia de que o lulismo não seria mero resultado de um contexto econômico favorável no cenário internacional - commodities, colapso de 2008. (2012, p. 176,7, 180) ou o argumento de que Lula não significou mero continuísmo do período FHC (2012, p. 181).


O argumento de que o lulismo engendrou o deslocamento de classe2 parece central ao livro e se conecta, de alguma forma, com todas as demais teses presentes. Dele decorrem a idéia de que o PT teria se tornado o "Partido dos Pobres" (2012, p. 34, 117) e de que o Bolsa Família e outras estratégias de transferência de renda (crédito consignado, valorização do salário mínimo, controle inflacionário) foram centrais para o sucesso do lulismo, apesar de vozes discordantes - Samuels, Hunder e Power (2012, p. 104).

Mas a conexão mais importante e imaginativa desse argumento se dá na comparação do lulismo ao bonapartismo do "O Dezoito Brumário" no qual Marx analisa o golpe de Estado de 1851, que derruba a república francesa e eleva Luís Bonaparte ao trono. Talvez a passagem que melhor assemelhasse as duas experiências seja aquela presente em Singer de que "Cada fração de classe pode cultivar o seu lulismo de estimação" (2012, p. 202) e a frase escrita por Marx entre 1851 e 1852 "Bonaparte gostaria de aparecer como benfeitor de todas as classes". (1969, p. 124).

Na política, disse Marx, não se pode dar a uma classe sem tirar de outra. "Bonaparte queria passar como o homem mais obligeant da França" Para fazê-lo tinha o amplo apoio popular de uma imensa massa de camponeses atomizada "A grande massa da nação francesa é constituída pela simples adição de grandezas equivalentes, mais ou menos como as batatas num saco formam um saco de batatas. (MARX, 1969, p. 115) por essa razão "incapaz de fazer valer seu interesse de classe em seu próprio nome [...] Não podem representar-se, tem que ser representados. Seu representante tem que aparecer ao mesmo tempo como senhor e como autoridade sobres eles" (idem, p. 116). Na tradição histórica da França esse homem fora Napoleão, encarnado no sobrinho que realizou a idéia fixa da classe mais numerosa do povo francês. Na tradição histórica brasileira de que fala Victor Nunes Leal no "Coronelismo Enxada e Voto" esse ideal era costumeiramente traduzido nos "painhos" do PFL e depois do DEM, até que, segundo Singer, aparecesse Lula, para converter a massa que derrotara o PT na eleição de 1989 (2012, p. 57) na sua base de sustentação política.

O argumento é elegante. E nos parece crível. Mas subsiste aberta a relação causal. Analisando-se por exemplo, a crescente perda de espaço eleitoral da direita conforme indicado por Meneguello3 e a concentração ao centro dos sistemas partidários como assevera Sartori, citado por Singer (p. 213) deixa de ser tão evidente essa causalidade. Já que estes fatores é que poderiam ter dirigido o eleitor empobrecido e pouco educado para o lulismo. O que, em termos práticos, reduziria a imagem de construção de uma maioria natural ao PT ao mesmo tempo que poderia suscitar outros discursos, que não necessariamente o lulismo, aos partidos concorrentes, por exemplo.

Desse argumento decorre diretamente o argumento segundo o qual a polarização esquerda/direita teria sido substituída pela nova antítese entre ricos e pobres (2012, p. 201).

A esse respeito entendemos que caberia perscrutar com mais profundidade se, efetivamente, foi o apoio do subproletariado que engendrou a sustentação social do PT durante o mensalão e a vitória eleitoral de 2006. Ou, se não parece mais correto o argumento de Boito (2007, 2012a, 2012b) para quem foi o apoio da burguesia interna, como fração de classe burguesa, que trouxe o apoio necessário à vitória eleitoral, já na eleição de 20024, mas principalmente na eleição pós-mensalão de 2006.


A aceitação de que esteve presente o apoio de uma fração da burguesia interna na eleição do PT, em alguma medida, pode minar os principais argumentos de Singer. Já que deixaria de ter sentido, por exemplo a superação da polarização esquerda/direita e sua substituição pela polarização entre ricos e pobres.

Por outro lado o argumento do Estado/Executivo como árbitro dos conflitos de classe parece-nos bastante acertado. Embora esteja ausente, em alguma medida, a idéia de que as classes burguesas também podem se apresentar em frações distintas, divididas por interesses divergentes.


Referências

SINGER, André Vitor. Os sentidos do lulismo: Reforma Gradual e pacto conservador. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras. 2012.

BOITO Jr, Armando. Estado e burguesia no capitalismo neoliberal, Revista de Sociologia e Política, n. 28, 2007, pp. 57- 75.

_______, Governos Lula: a nova burguesia nacional no poder, In Armando Boito Jr. e Andréia Galvão, Política e classes sociais no Brasil dos anos 2000. São Paulo: Editora Alameda, 2012

_______, As bases políticas do neodesenvolvimentismo. Texto apresentado no Fórum Econômico da FGV-SP edição de 2012. Disponível: http://eesp.fgv.br/sites/eesp.fgv.br/files/file/Painel%203%20-%20Novo%20 Desenv%20BR%20-%20Boito%20-%20Bases%20Pol%20Neodesenv%20-%20PAPER.pdf

MARX, Karl. O Dezoito Brumário e Cartas a Kugelmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1969.

1 As três primeiras hipóteses estão presentes, nominalmente, na página 28, a hipótese d, é apresentada na pagina 32.
2 Apesar de que, em alguma medida, a questão da relação causal fica em aberto, qual seja: foi o lulismo que engendrou o deslocamento do subproletariado ou foi o deslocamento desta fração de classe que engendrou o lulismo? (SINGER, 2012, P. 56)
3 Comunicação oral no I Seminário do Grupo de Pesquisa em Política Brasileira da UNICAMP, julho de 2013.
4 Uma evidência importante deste apoio encontra-se na identificação dos financiadores da campanha do PT em 2002 no qual figuram doações com cifras que alcançam R$ 1 milhão (Instituto Brasileiro de Siderurgia) repassadas por grandes empresas identificáveis na fração de classe classificada por Boito como Burguesia Interna. Na eleição de 2002 o candidato Lula declarou a arrecadação de R$ 21 milhões.

Anexo


quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Euclides nas ruas

Euclides habita as ruas de sua cidade. Aprendeu a conviver com a fome, com o frio, com os arrepios de medo, com a dor, com todas as ausências humanas presentes nos gestos indiferentes dos passantes. Aprendeu a mendigar do alimento: as migalhas, do dinheiro: as moedas, do afeto: os olhares das crianças e da vida: o prazer de esperar pela morte tranquila. A sujeira já introjetou-se em sua pele. O álcool no seu metabolismo. Pelas ruas Euclides assenhora-se de seu destino. Seus projetos de vida agora são passageiros, pontuais, de curtíssimo prazo. São cinco horas da manhã. Faz algum frio os primeiros coletivos passam carregados de operários, que mesmo sem saber, rumam para a manutenção do estado de coisas que alimenta a legião de miseráveis que tem optado pela vida a partir das ruas. Euclides sabe disso muito bem. Sabe que o coletivo que vai sumindo na curva é uma das formas pelas quais o sistema torna-o invisível. Não é necessário operar no centro do esquema financeiro para saber disso. Lá é que as coisas são menos visíveis ainda. Números que sobem e descem ao sabor do mercado, tão transparente quanto. Nas periferias do sistema as coisas começam a ficar mais aparentes. E as periferias avançam agora pelas ruas da cidade urbana adentro. Infiltram-se. Tomam prédios abandonados à especulação financeira. Formam cortiços. Ocupam subterrâneos, marquises, pontes, viadutos, prédios públicos. A periferia que avança sobre o centro, terminará por engoli-lo todo. É uma questão simples. De espaço. De geografia. De aritmética simples. A periferia mesmo com espaço para ser mais e mais periférica. Traz no seu núcleo uma vontade humana intrínseca de ser o centro. De aí estar. Daqui há pouco, não haverá coletivos suficientes para trazer lá das bordas do sistema as mãos, cérebros e braços, as bucetas que constroem as engrenagens do sistema. Euclides sorri satisfeito. Quando perceberem isso já será tarde. Tal como uma doença que se instala silenciosamente. Assim a periferia avança sobre as ruas. Eu sou a doença. Pensa Euclides. Sou infecto contagioso. Uma célula que sofreu uma mutação a ponto de perder por completo sua humanidade. Somente quando ocorrer uma hemorragia social suficientemente grande e debilitante perceberão a doença entranhada no sistema. Talvez demore. Talvez menos. Talvez consigam seguir remediando o corpo já claudicante da sociedade  até a sua completa exaustão. Mas o que sei eu, pensa Euclides. Esse filologismo todo também é bem pouco saudável. Saudável. Porque essa sociedade busca tanto pela saúde. Tem muita gente que só consegue apurar o olhar em tempos de enfermidades. A doença é que nos lembra de vez em quando, do quão finitos e insignificantes somos nessa merda toda. Olha esse cara. Ele passa por aqui correndo nesse horário todos os dias. Você viu o tênis que ele usava. Reparou no ipod. Na camisa com aquele signo famoso, daquela marca cara. Ele passa aí todos os dias. Acho que nunca me viu. Nunca parou para saber o que passa conosco. Nunca jogou uma moeda. Podia fazer uma diferença comer um pedaço de pão fresco uma manhã dessas, ou não, vai saber. Dia desses esse cara vai levar um tiro no meio da testa. Ou uma facada no baço. Os mais novos estão comentando. A questão é de justiça. Nada pessoal. Se não entregar o ipod leva. São as células lesadas avançando sobre as células sadias. Fisiologismo puro. Esse é o lado bom de se estar nas ruas. Estou seguro, porque já estou de certo modo infectado. Não posso morrer porque de certa forma já não vivo. Sobreviver não é viver. Viver tem prazer, tem lazer na vida. Na sobrevida só tem miséria. Não tem lazer não. Já se acorda pensando em como tirar a barriga do sufoco. O primeiro gole de cachaça é remédio pra aliviar o peso enorme da realidade sobre os ombros. É o óculos 3D que o miserável coloca pra ver as sarjetas se alargando. Para ver os sorrisos nos rostos, mesmo quando eles estão cerrados. Pra ver a poesia no asfalto. O vermelho e o amarelo no cinza dos muros e das paredes dos edifícios. A cachaça na rua não é luxo não. Faz parte do KIT básico de sobrevivência. Por isso não tem crime maior do que negar as moedas que vão garantir a pinga do de cada dia, tão necessária quanto as jóias, vestidos, carros, tecidos, celulares, bijuterias que saciam a fome consumista de todo mundo que ainda acha que tem algum tipo de vida. À felicidade é imprescindível o consumo. Que lhes entorpece os sentidos tanto quanto a cachaça. Que lhes torna o mundo mais tolerável, assim como o faz a cachaça entre os que habitam a rua. As ruas são veias abertas entre os centros urbanos. Somos infestações roendo o sistema por dentro. A cada dia mais próximos do sistema nervoso central. Mas ainda são cinco horas. Os minutos avançaram muito pouco enquanto Euclides pensava. A seu lado dormem Marcos e Braga. Engraçado pronunciar-lhes os nomes de batismo. Quando ainda tinham nomes e direitos civis. Resquícios de quando ainda eram ditos cidadãos. Marcos era um sujeito baixo com quase 60 anos. Braga tinha pouco mais de 40. Eram companheiros. Braga faturava um dinheiro bacana como Michê. Fazia programa com homens e mulheres. Conheceu Marcos em um programa. Não é que se apaixonaram, isso aí é um troço burguês. Nas ruas amor de resume a buceta ou pica. Marcos abandonou tudo e foi atrás da pica do Braga. Conta que deixou pra trás família, filhos, esposa, cachorro, e uma conta recheada nas ilhas virgens. É curioso pensar que algumas pessoas simplesmente ignoram que todos tem  alguma merda de uma história. As pessoas, mesmo as que habitam as ruas, não foram paridas por algum tipo de buceta cruel que as cuspiu inteiras e sujas debaixo de algum viaduto ou sob alguma marquise. Costumam ter uma porra de um nome e tudo. Yedo era esse outro cara. Nasceu em um família muito grande com outros doze irmãos. Agora ele ainda lembra do nome de cada um deles e tem detalhes sobre a personalidade de todos. Viveu no campo até perceber que ali teria uma vida plena de mediocridades, seu pai afogado em cachaça ao final de cada dia, sem ter mais nada a ver pela janela além de cebolas e cebolas. Com 18 anos descarrregava caixas em uma feira em Joinville. Mas sabia escrever o próprio nome no contracheque ao final de cada mês. Mas o que o retirou do campo não foi a vontade de ver o mar ou coisa que o valha. Foi a vontade grande de ver as bucetas dos puteiros da cidade. Dezesseis anos de idade e já sabia de cor o nome de umas oitenta putas diferentes. Tinha um lance assim. As putas se apaixonavam por ele. Nessa época não morava na rua ainda. Dividia as noites em quartos de pensão, puteiros e cabines de caminhão. As putas não eram as únicas que gostavam do seu rabo. A vida foi jogando com Yedo até que casou com L. Engravidar uma puta não obriga o sujeito a assumir grandes compromissos mas para Yedo essa era uma questão de fazer valer o pau que trazia no meio das pernas. Aí ele é que tornou-se caminhoneiro. Outras duas meninas vieram. E eles foram felizes por alguns anos. Até que L. se mandou com um cara numa terça-feira de chuva. Eles estavam em casa eram umas oito horas da noite. Um caminhão parou na frente da casinha alugada que tinham. Quando Yedo deu-se conta L. estava subindo na cabine. Ela não disse uma palavra. Ela não olhou pra trás Ela nem mesmo beijou as crianças. Ele ficou mais umas duas semanas com as crianças e se mandou também.  Aí é que ele passou a dormir nas ruas. Mas ninguém imaginaria que ele fosse morrer por ensolação, na calçada, no início de uma tarde de domingo, depois que os homens da prefeitura cortaram as árvores que faziam a sombra onde ele sempre dormia.



Ondas radioativas

Paixão pelas ondas05/09/2013 | 10h06

Surfistas de Fukushima enfrentam águas radioativas


JORNAL AN 06/09/2013

"Podemos parecer um pouco loucos, mas para nós, o importante são as ondas", disse surfista

Surfistas de Fukushima enfrentam águas radioativas Toru Yamanaka/AFP
As autoridades proibiram o surfe na praia de Toyoma durante o ano que se seguiu à catástrofe de Fukushima e liberaram a prática em março de 2012Foto: Toru Yamanaka / AFP

Areia branca, sol radiante, ondas imponentes. A praia de Toyoma é o cenário ideal para os surfistas, que se dedicam logo de manhã à prática deste esporte, não fosse pelo fato de que está a 50 km da acidentada usina nuclear de Fukushima.
- Podemos parecer um pouco loucos, mas para nós, o importante são as ondas - diz, sorridente, Yuichiro Kobayashi, enquanto observa uns 30 surfistas treinando, apesar das notícias inquietantes sobre a usina.
A Tepco, operadora da central de Fukushima, busca soluções para as 400 mil toneladas de água contaminada que se encontram sob a terra ou em tanques especiais, um volume que aumenta 300 toneladas a cada dia, mas da qual apenas uma pequena parte chega diretamente ao mar por falta de meios de bloqueio no momento.
A mesma empresa anunciou no domingo ter detectado níveis de radioatividade de 1.800 milisieverts por hora na usina, uma dose capaz de matar uma pessoa em quatro horas de exposição.
Surfista há 30 anos e militante de uma associação de proteção do litoral, Kobayashi leva regularmente amostras de areia e água do local para a Escola Técnica Superior de Fukushima para análise.
A água é segura, pelo menos para os padrões japoneses. Segundo os últimos resultados publicados antes do vazamento, um litro de água do mar continha 2,96 becquerels (Bq) de césio 137 e 3,27 de césio 134, o que representa uma taxa acumulada de 6,22 Bq por litro. As autoridades japonesas consideram a água própria para banho quando a radioatividade é inferior a 10 Bq de césio por litro.
- Fico preocupado, mas não a ponto de não surfar. Se tivesse que me preocupar com tudo o que como, onde vivo, ficaria muito estressado... Tento apenas não pensar demais - explica Naoto Sakai, 31 anos, que vai ao local pelo menos três vezes por semana para deslizar sobre as ondas.
As autoridades proibiram o surfe na praia de Toyoma durante o ano que se seguiu à catástrofe de Fukushima e liberaram a prática em março de 2012, quando consideraram que o pior da contaminação já tinha passado.
O litoral, no entanto, ainda guarda vestígios da onda gigante e devastadora, provocada por um terremoto de magnitude 9, como restos de casas destruídas, invadidas agora pelo mato. Desde a reabertura de Toyoma, os surfistas voltam pouco a pouco a um local que chegou a receber competições internacionais, mas que agora só é visitado pelos moradores.
A média de idade dos banhistas também aumentou, já que os estudantes, antes numerosos, agora não vão mais a esta praia. Toshihisa Mishina, 42 anos, voltou a surfar no ano passado, de alguma forma tranquilizado pelos níveis de contaminação publicados pela imprensa, mas proíbe que o filho de 12 anos o acompanhe.
- Fico preocupado com os mais jovens, porque se nós os expusermos (à radiação), isso poderá afetá-los na idade adulta - explica antes de entrar na água.
Dois anos e meio depois do pior acidente nuclear no mundo desde o de Chernobyl (Ucrânia), em 1986, as consequências são dramáticas para os comerciantes da região. Proprietário de uma loja de pranchas e roupas de surfe em Iwaki, onde fica a praia de Toyoma, Etsuo Suzuki calcula que o faturamento de seu negócio tenha caído pela metade.
Kobayashi, que também gerencia uma loja de material de surfe, espera impaciente os resultados das amostras analisadas após o último vazamento, mas só um cataclismo fará o cinquentão abandonar sua paixão.
- As ondas hoje não estavam boas - diz, sacudindo os cabelos grisalhos - Mas não importa, voltarei amanhã.
AFP