Dussel inicialmente chamou a atenção do público presente para a relevância da noção do Bom Viver, uma vez que é um conceito fundamental dos chamados povos originários da região, assim como tem tido presença em maior ou menor grau nos discursos dos governos da Bolívia, do Peru e do Equador. Segundo o pensador argentino, a análise dos povos originários “pressupõe uma ruptura epistemológica radical dentro do pensamento moderno e do marxismo, pressupõe uma descolonização epistemológica”. Nesse sentido, parafraseou o presidente boliviano Evo Morales, que, quando se refere à revolução supostamente em curso na América Latina, se refere a uma revolução “não violenta, sucessiva, não democrática, mas social-democrática, uma revolução cultural, não limitada às artes, mas num sentido integral que abarque toda a atividade humana: as atividades agropecuárias, a política, as relações sociais, até a economia”.
Entrando especificamente no debate sobre o poder, Dussel afirmou que “a esquerda em geral que tem criticado o poder, incluindo o Estado, não tem tido o cuidado de tratar o poder não como algo que se tem, mas como algo que se exerce e reside única e exclusivamente no povo, portanto não se toma, se fortalece ou se debilita. O poder do Estado é um poder delegado. Toda a América Latina, exceto Honduras, Chile, Colômbia, México, está em mãos de governos de centro-esquerda, ainda que seja cinco graus à esquerda, alguns mais outros menos, mas estão no poder. Então a responsabilidade do intelectual já não é só a crítica da política. Isso é fácil. É preciso passar ao “poder obediencial”, em palavras de Evo Morales e que também dizem os zapatistas ao mencionar o “mandar obedecendo”. O que fez Evo Morales foi governar obedecendo ao povo. A responsabilidade dos intelectuais hoje em dia é oferecer uma teoria positiva da política para os que exercem o poder em nome do povo, para iluminar os governantes. Como posso pedir a Evo Morales que dissolva o Estado? Claro, cuidado, é preciso saber o que significa. Isso é um postulado e um postulado é o que pode ser pensado teoricamente, mas empiricamente é impossível porque é uma ideia regulativa. Eu aceito, mas isso é uma ideia regulativa. O Estado não é essencialmente burguês”.
Para sustentar a ideia de que o Estado existiu antes da própria modernidade capitalista, Dussel tomou como exemplo o Egito (em outras ocasiões já utilizou o Império Inca como exemplo), já que foi uma realidade há mais de cinco mil anos, por ter tido uma classe e uma burocracia. Não era um Estado burguês, era um Estado tributário. Segundo o autor argentino, “o Estado não é mais que uma instituição. O problema é como se lida com ele. Não podemos ser ingênuos: não é tão fácil administrar o Estado ou se responsabilizar por ele; é preciso redefini-lo e interpretá-lo de outra maneira; é preciso estar atento e rejeitar a concepção liberal do Estado que nos mantém como meros indivíduos isolados mediante um contrato […] se não aceitarmos o indivíduo e no seu lugar existir a comunidade, estaremos rejeitando o Estado liberal desde o princípio. Eu não parto do Estado liberal e burguês, mas preciso sim de uma macro-distribuição que seja poder obediencial a mando do povo. A dissolução do Estado como organização empírica e mediada é muito próxima da proposta de [Robert] Nozick, da extrema direita, para que o Estado esteja nas mãos das transnacionais e da iniciativa privada. Para que precisamos do exército? Temos mercenários. Para que precisamos da polícia? Temos segurança privada. Isso diz a extrema-direita…e diz a extrema-esquerda também”.
Portanto, “uma coisa é a dissolução do capital e, além disso, a construção de um novo sistema, e outra coisa é a dissolução do Estado e a desaparição da política. E foi a posição de Marx. Dentro do socialismo real, no começo eu achava que o problema era Stalin, depois percebi que era de Lenin e depois que era do próprio Marx. Marx tinha uma visão negativa da política. E tinha uma visão positiva do social. O elemento econômico-social é fundamental, mas a sociedade tem que bombardear o Estado”. Seguindo a mesma linha de pensamento, Dussel indica um problema: “depois da revolução, começa a batalha da política e começa a verdadeira discussão. Daí começa a se falar de democracia, participativa e representativa, ambas articuladas. Não pura participação, porque se gera caos. E não pura representação, que está corrompida em todo o mundo, mas a representação que é julgada a partir da participação. No bairro, nas assembleias de bairro, aí tem democracia direta, nos reunimos cara-a-cara, discutimos a questão da segurança comunitária, do esgoto, da luz elétrica, tudo. Mas quando passamos ao município, já tem que haver uma organização participativa-representativa. Se necessita certa profissionalização do político. O perigo é a burocracia, pior que isso, é inevitável”.
Em sua primeira intervenção, o argentino concluiu que “a experiência liberal, a experiência europeia, norte-americana, não serve para nós. Temos que partir da experiência do que nossas revoluções estão construindo. Temos que ser muito duros quando nos propõem doutrinas que não foram descolonizadas epistemologicamente e que ainda acreditam na modernidade, e não enxergam além da modernidade, como nos mostra o “bom viver” dos povos originários”.
John Holloway
Holloway tem um ponto de partida radicalmente diferente. O acadêmico irlandês disse que sua visão do Estado atual, baseado no capitalismo, está provocando “um tsunami de destruição e morte e essa dinâmica está chegando a proporções que ameaçam a existência da humanidade, por estar baseado na injustiça, na violência e na exploração, coisa que é visível no campesinato, na destruição das cidades, das terras pela atividade mineira e na própria crise mundial. Se quisermos entender a sociedade e o que está acontecendo com ela, então temos que começar com a categoria de capital, não como uma categoria econômica, mas como um conceitualização dinâmica do assalto em que nos encontramos. O problema para nós não é só como melhorar os níveis de vida de muita gente – o que é importante – mas o mais importante é romper com essa dinâmica de morte. Será que já não podemos? Eu me rejeito a aceitar a destruição da humanidade”.
Para ele, “o Estado não é qualquer instituição. O Estado é uma forma de organização social que se desenvolve historicamente e que tem duas características fundamentais: de excluir ou expropriar e de reintegrar. Quero dizer com isso que o Estado é um produto do desenvolvimento histórico. Com o desenvolvimento do capitalismo, se desenvolve o Estado, como instância amparada na lei, amparada nos capitalistas, amparada no econômico pela primeira vez. E o mais importante é que o Estado incorpora em si mesmo uma separação entre a sociedade e a sua própria organização, isto é, o Estado é a separação de um grupo de funcionários da população. E desconfiamos da responsabilidade desses funcionários para organizar a sociedade, respeitando a separação do econômico e do político e obviamente o capital e os capitalistas”. Além disso, para Holloway, “o Estado capitalista moderno é essencialmente excludente e essa exclusão do resto da sociedade começa com as tradições, a linguagem, a forma de vestir, o comportamento de quem forma parte do Estado, com o único fim de controlar a vida social da população. Quando digo que NÃO através do Estado, não estou dizendo que a organização social não seja importante: é essencial, mas o Estado é uma forma de organização particular desenvolvida historicamente para excluir a população do controle social das suas próprias vidas. Minha impressão do processo boliviano é de uma revolução expropriada. Uma revolução que já não era propriedade dos revolucionários”.
Holloway agregou que “num segundo momento, o Estado nos reintegra, nos reconcilia com a reprodução do capitalismo, com a reprodução dessa dinâmica de morte. Simplesmente porque a existência do Estado depende da reprodução do capital. Para ter renda, o Estado, através dos impostos, depende da acumulação de capital, incluindo os salários dos professores universitários. Não quero dizer com isso que não se possa realizar mudanças significativas através das estruturas do Estado […] mas essas mudanças ocorrem paralelas à transformação do sujeito em objeto da política estatal, convertendo as vítimas em pobres, convertendo os rebeldes em cidadãos, afastando-nos da perspectiva de romper com a dinâmica do capital. Alguns líderes propõem a destruição do Estado burguês, mas propõem fazê-lo através da construção de um Estado comunal. Essa é uma expressão totalmente contraditória, porque o Estado exclui e a comuna inclui. Então, falar de Estado comunal ou de Estado soviético é ocultar uma contradição que temos que reconhecer. No caso da URSS, tratou-se de ocultar a supressão dos soviets, dos conselhos, das comunas”.
Dessa forma, “o Estado canaliza as lutas sociais. Obviamente isso nos deixa com o problema de que, se não for através do Estado, então como podemos mudar o mundo? A resposta ainda não sabemos. Por isso estamos aqui discutindo. Não temos as respostas, mas temos as experiências de pessoas que estão criando outra lógica de existir, viver e criar um Bom Viver […] Se o capitalismo é o “mau viver”, o “bom viver” é algo contrário a esse sistema que domina. É preciso ver as experiências e respeitá-las. E criticá-las, como forma de demonstrar nosso respeito. Ainda que possam parecer tontas, essas experiências estão cheias de fendas (gretas), de gente que diz NÃO a esse sistema. Existem milhões de formas de fazer isso”.
Réplica de Enrique Dussel
Em sua réplica, o autor argentino foi taxativo: “o problema da política é o poder, não a questão do trabalho. É o domínio sobre o trabalho que é exercido a partir do poder. Esse é outro problema. E outro problema que Marx não tratou. Marx não teve tempo de escrever outros três tomos sobre o Estado. Mas é preciso fazê-lo. Então, o tema do Estado não tem tanto a ver com a economia, mas com a política. A política determina a economia e vice-versa, mas não é a mesma coisa. O Estado por natureza não deve excluir. Exclui quase sempre quando se burocratiza e a burocratização é praticamente inevitável. Como se luta contra isso? Institucionalizando a participação pela primeira vez na história. Nunca se organizou a participação articulada à representação. A democracia liberal é puramente representativa. Leiam John Stuart Mill em 1860 em Observações sobre a democracia representativa”.
Ele rebateu as observações de Holloway sobre o Estado dizendo que não aceita a definição do Estado como essencialmente excludente. Dussel se pergunta: “qual o trabalho dos intelectuais? Trabalhar com movimentos sociais de base, dar suporte e auxiliar movimentos, mas eleições, governantes, etc., se diz que tudo isso está “corrompido por natureza”. Então, isso o intelectual não interpela. O que acontece então? Se são corruptos e não quero ser corrupto, não interpelo. Mas no final das contas os corruptos continuam trabalhando na política. A conclusão é que o México está destruído. A extrema-esquerda não quer se meter na política eleitoreira…e quem vai salvar o país? A extrema-esquerda acusa quem não entende de política, mas a entrega aos corruptos. E fazem isso com muita força, com o argumento moralista de que estão destruindo a política […] Não aceito essa visão negativa da política”.
Dussel abordou os movimentos sociais no México e indicou outro problema: “os movimentos mais honestos, mais idealistas, melhores, não estão dispostos a fazer política. Se não fazem política, estão entregando; e se entregam são responsáveis diante da história. A política é realismo com princípios éticos, deve ter alternativas anticapitalistas, tudo bem. Mas vamos solucionar o problema da política criando falanstérios a la Saint Simon? Criando grupos cooperativos em muitas partes do país e que somados todos consigam transformar o México? Nunca vão fazer isso. Nunca fizeram isso na história. É mais provável que 15 ou 20 grupos tenham uma ideia clara das coisas e façam política, façam que o povo participe e se organize e daí consigam uma transformação ao longo do tempo […] Vivemos um momento-chave no país. Se fosse só um problema teórico, não me entusiasmaria tanto, mas é um momento político real”.
Tréplica de John Holloway
Brevemente, Holloway mais uma vez sustentou que não entende quando se diz que o Estado não deveria ser essencialmente excludente. Segundo o irlandês, “parece realmente um liberalismo puro, mas é um liberalismo puro fora da realidade. Os mecanismos da democracia representativa excluem, um corpo de funcionários de tempo completo exclui necessariamente. Temos como desafio urgente apropriar-nos do mundo, ocupar o mundo como nos propõem os movimentos Occupy, não só como expressão da nossa dignidade como humanos, mas também como expressão da nossa responsabilidade. Porque realmente não tem sentido dizer que vamos assumir nossa responsabilidade entregando-a ao Estado, aos funcionários e aos políticos. Não tem sentido! Porque é isso o que o Estado nos habilita a fazer. No melhor dos casos, o Estado nos diz: “não se preocupem. Vão para casa e nós vamos nos ocupar dos problemas. Nós somos gente boa, somos profissionais. Não se preocupem! Não estou atacando López Obrador, nem Chávez, nem Morales. Estou dizendo que essa simplesmente não é a nossa política! Nossa política não é uma política de entrega de responsabilidades, mas de assumir nossa responsabilidade, de mudar o mundo a partir do lugar em que nos encontramos, aqui e agora de todas as formas que possamos! Trata-se de unir movimentos para criar um contra-tsunami para abrir outro mundo e um futuro para a humanidade”.
Os movimentos sociais em risco de reproduzir o capitalismo, alerta Luis Tapia [2]
Os movimentos sociais latino-americanos correm o risco de continuar reproduzindo a lógica capitalista e terminar controlado e dominando os operários, camponeses e indígenas que os integram. Esse foi o alerta feito por Luis Tapia, quem expôs o exemplo do atual presidente do país, Evo Morales, como alguém que chegou a esse cargo sob a bandeira do movimento indígena, mas que agora “se transformou no pior inimigo deles”.
Ele agregou que o caso da Bolívia é exemplar, pois os indígenas nesse país passam por um processo de substituição, e essa experiência deve ser levada em conta para evitar que aconteça o mesmo com outros movimentos sociais latino-americanos. Tapia afirmou que o caso de Evo Morales é especial porque o mandatário tem origem aymara, mas fez sua carreira numa região indígena quéchua. No entanto, em nenhum momento da sua vida política reivindicou sua origem indígena, porque fazia parte de um sindicato de produtores de coca.
Por isso, tinha uma identidade mais camponesa, que também nunca assumiu, inclusive antes de ganhar as eleições presidenciais no país. Quando chegou ao poder, isso mudou, porque no exterior foi criada a percepção de que era o primeiro presidente indígena, mas isso foi midiatizado porque convinha, apesar de Evo Morales nunca ter organizado assembleias indígenas; ele pertence a uma mestiçagem relacionada com o mercantilismo, não com a cosmovisão dos povos originários desse país.
Tanto assim que o Movimento Alternativo Sindical e o Movimento ao Socialismo, que é o partido de Evo Morales, por um tempo foram defensores da soberania nacional e num momento de crise dos demais movimentos sociais, a população boliviana votou no MAS. “O que aconteceu depois é que o MAS teve um projeto de monopólio do poder político, gerou uma nova burocracia política que tem origem popular (seus membros) foram dirigentes sindicais ou de algum outro setor, mas de origem aymara ou quéchua, o que lhes dá um forte poder simbólico, pretendendo monopolizar a representação dos indígenas mas afastando-os do governo”, indicou o acadêmico.
Atualmente o poder na Bolívia tem uma representação indígena. Alguns ministros foram “convidados” a ser ministros, deputados ou secretários, mas esse convite “vem de cima” e eles não são eleitos por uma base social e também não possuem vínculos com suas culturas”, destacou.
“O MAS boliviano se centrou na construção de um poder político, num Estado no sentido amplo, mas expulsou gradualmente os indígenas ao ponto de se enfrentar com eles”, afirmou Tapia. “E isso tem a ver com seu projeto econômico. Acho que hoje o MAS não é nem sequer um partido nacionalista porque seu plano de governo são hidrelétricas, represas e rodovias para conectar o Pacífico com o Atlântico e que favorecem fundamentalmente o capital brasileiro. O conteúdo do atual governo está subordinado ao Estado e à geopolítica do Brasil, e aí também não tem nacionalismo”, sublinhou.
Disse que a Bolívia também não é um Estado plurinacional porque, nos compromissos que o governo de Evo Morales consolidou com o Brasil, existe a intenção de conseguir poder econômico e político, mas de origem externa, nunca interna. “Há dois anos estamos enfrentando essa contradição: uma ajuda externa para o atual governo do Brasil e um distanciamento interno, o que tem feito com que o conteúdo do atual governo seja invadir territórios indígenas”, apontou.
Notas:
[1] Parte do diálogo entre Holloway e Dussel foi traduzido da página do evento.